Análise Arkade: Beyond Two Souls (PS3) – um estrelado drama sobrenatural
Ellen Page e Willem Dafoe. Você deve estar acostumado a ver estes nomes nos créditos de grandes filmes de Hollywood, certo? Pois esta talentosa dupla estrela o dramático Beyond Two Souls, e você confere nossa análise completa desta super produção na sequência!
Antes de começarmos esta análise, devemos fazer um retrospecto da Quantic Dream, produtora do game. Sediada na França, a empesa tem em seu currículo jogos bem pouco convencionais como Omikron, Fahrenheit e Heavy Rain.
O que todos estes jogos têm em comum? Bom, para começar, todos eles são extremamente cinematográficos, e justamente por isso, são chamados por aí de “interactive movies” (filmes interativos), onde o jogador assiste bastante coisa, interage com personagens, soluciona mistérios e pode afetar o rumo da trama com suas escolhas.
Os personagens criados pela Quantic Dream são extremamente humanos, e geralmente estão envolvidos em tramas complexas, precisando tomar decisões difíceis que podem afetar a vida não só do protagonista, mas também de personagens secundários. Entre escolhas banais (do tipo “que roupa vestir”) até outras bem tensas (do tipo “qual método utilizar para amputar uma parte de seu corpo”) – os games da Quantic Dream estão o tempo todo colocando o jogador em xeque.
Dito isso, se você já jogou algum destes títulos anteriores, vai se sentir em casa aqui. Novamente, temos uma trama densa, personagens interessantes e muitos comandos contextuais no estilo quick time events, tudo misturado para nos contar de maneira cinematográfica a história de Jodie Holmes.
Jodie (interpretada por Ellen Page) é uma garota que possui um “algo a mais”: ela é acompanhada desde o início de sua vida por Aiden, ser que é rotulado pelo jogo como uma “entidade” que vive no “Infraworld”. Na prática, Aiden é um espírito, que está ligado à Jodie e é capaz de se comunicar com ela e interagir com o mundo físico.
Este “talento” de Jodie se mostra um verdadeiro karma para a garota, que aterroriza seus pais com suas habilidades e, ainda criança, acaba sendo mandada para um laboratório governamental especializado em estudar fenômenos estranhos. Lá, ela conhece o doutor Nathan Dawkins (Willem Dafoe) e seu assistente, Cole Freeman (Kadeem Hardison), que acabam se tornando seus tutores e companheiros.
As habilidades de Jodie e Aiden acabam chamando a atenção da CIA, que a coloca em um programa especial de treinamento onde ela otimiza tanto suas capacidades físicas quanto espirituais, e utiliza suas habilidades em arriscadas missões em diversas partes do mundo.
Dizer mais do que isso seria spoiler, e considerando que este é um jogo onde o que realmente interessa é a trama, melhor pararmos a sinopse por aqui. Porém, saiba saiba que o que foi apresentado aqui é um panorama muito básico da vida de Jodie: no decorrer do game, acompanhamos diversas fases de sua vida – criança, adolescente, adulta – e vamos muito além de laboratórios e da CIA no decorrer das quase 10 horas de campanha.
Além disso, Beyond Two Souls é um jogo que oferece diversas possibilidades, pois as suas escolhas afetam o andamento da trama. Algumas escolhas não geram grandes consequências, mas certas decisões que você deve tomar são extremamente tensas, especialmente na reta final do jogo.
Com isso, quero deixar claro que estou analisando o jogo do jeito que o experimentei, e tudo o que for dito aqui é fruto da minha experiência durante a campanha. No seu jogo, coisas diferentes podem acontecer, de acordo com suas escolhas e com a maneira como você supera (ou não) alguns desafios.
Embora acompanhemos o amadurecimento de Jodie, a trama do game acontece de maneira não linear, ou seja, em um capítulo você está controlando a Jodie criança, no outro ela pode já estar adulta, para depois vir um episódio que retrata sua juventude. Você vai controlar Jodie em diferentes fases de sua vida, mas sempre de maneira não cronológica.
Este é um recurso narrativo bem comum, mas aqui particularmente eu achei que esta não foi a melhor escolha. Muitas coisas ficam veio vagas, e diversas vezes a conexão entre um capítulo e outro não é muito clara, ou este link demora para acontecer, o que acaba deixando o jogador meio perdido.
Nos casos extremos é fácil sacar – os acontecimentos da Jodie criança obviamente se passam antes dos da Jodie adulta -, mas você irá controlar as diferentes Jodies mais de uma vez, e muitas vezes a aparência da personagem não muda tanto para nos dar uma pista: a Jodie criança protagoniza mais de meia dúzia de capítulos, que são jogados fora de ordem, intercalados com capítulos de outros momentos da vida dela, igualmente embaralhados.
Curiosamente, na tela de loading do jogo os títulos dos capítulos vão sendo agrupados cronologicamente, então se você por ventura não tiver certeza de “quando” se passou tal fato, uma olhada mais atenta à tela de loading pode ajudar a resolver o quebra-cabeça que a narrativa não linear constrói. Esta definitivamente não é a maneira mais prática de se localizar, mas ajuda.
Porém, mesmo que a desconstrução narrativa seja meio confusa, ela possui seus méritos. Por exemplo: em determinado momento você passa por uma cena bem intensa de perseguição, com Jodie fugindo de diversos policiais. Só bem mais tarde você joga o que vem “antes” desta cena (cronologicamente falando), e quando estas “pontas soltas” se unem de forma coerente, temos revelações que são de “explodir a cabeça”!
Em outros casos, você só entende plenamente a personalidade de certos personagens depois de conhecê-los em diferentes momentos de suas vidas. Problemas pessoais, traumas e outros fatos afetam o comportamento dos personagens, e acompanhar estas mudanças é algo muito legal, e ilustra o cuidado e a atenção aos detalhes que a Quantic Dream teve.
Apesar disso, acho que se o recurso fosse utilizado um pouco menos – para pontuar as principais reviravoltas na trama, por exemplo – teríamos uma história mais coesa e bem amarrada. Do jeito que tudo é apresentado “fora de ordem”, as vezes fica difícil entender por que diabos Jodie está enfrentando mercenários na Somália ou se encontra em alguma outra situação estranha.
No geral, achei a trama meio enrolada em alguns momentos, um pouco mirabolante em certos pontos e confusa em outros, mas o resultado final é uma boa história de amadurecimento, aceitação e superação. O final do jogo me surpreendeu positivamente, mas lembre-se que estamos falando de um jogo que possui vários finais diferentes, mas acredito que todos possuem sua própria carga de dramaticidade e tensão.
Além de ser fragmentada, a trama de Beyond Two Souls também pode parecer confusa por passear por diversas temáticas diferentes. Em um jogo só, você passará por temas como: sobrenatural, ficção científica, suspense, espionagem, ação, com espaço até para romance e uma pincelada nas questões éticas que envolvem a ciência, o poder e quem o controla.
O lado sobrenatural, aliás, traz ótimas referências à obras clássicas que abordam o tema. A presença de Aiden faz televisores saírem do ar, naquela incômoda tela de estática que ficou famosa no filme Poltergeist. Em outro momento, Jodie pode usar “seus poderes” para se vingar de alguns “amigos” no melhor estilo Carrie – A Estranha.
Essa mistura toda torna Beyond Two Souls um jogo mais variado do que os outros títulos da Quantic Dream. Se com a Jodie criança o máximo de perigo que você vai encarar são coleguinhas bullyes e os “monstros” que surgem no meio da noite, a Jodie adulta terá que se infiltrar em instalações secretas, eliminar mercenários, coletar dados confidenciais, confrontar entidades sobrenaturais e muito mais.
Esta variedade também se aplica à jogabilidade: não se engane, este é mais um jogo repleto de quick time events e ações de contexto. Porém, como Aiden não está preso ao plano físico, ele pode passear pelos cenários, atravessar portas e paredes e acessar lugares que seriam impossíveis à Jodie.
Um detalhe inusitado é que Beyond Two Souls pode ser jogado em modo cooperativo offline: um jogador controla Jodie, enquanto o outro assume o comando de Aiden. Não tive a oportunidade de testar o coop para esta análise, mas é um adendo interessante, pois possibilita que os jogadores discutam e ponderem sobre as decisões.
Ainda que Aiden permaneça o tempo todo ligado à Jodie por uma espécie de “cordão umbilical espiritual”, ele possui muito mais liberdade. No controle da entidade você pode interagir com diversos objetos, apagar lâmpadas, quebrar vidros, abrir gavetas, acionar mecanismos e, claro possuir os corpos de outros personagens!
Claro que a coisa não é assim tão liberal: pelo bem da narrativa, Aiden só pode interagir com certos objetos, e possuir NPCs em situações específicas. Quando você está no plano espiritual (o Infraworld), você pode enxergar a aura das pessoas. Pessoas com aura azul não podem ser molestadas por Aiden. Se a aura for de cor laranja, você pode possuir o corpo daquela pessoa e controlá-la para que ela faça algo por você. Já se há um brilho vermelho ao redor de um indivíduo, significa que você pode matá-lo direto do Infraworld.
No comando de Jodie, também temos uma boa variedade, visto que, depois de adulta, ela é uma agente da CIA treinada e pronta para o que der e vier. Os quick time events seguem um padrão mais discreto, que deve virar tendência: os tradicionais comandos na tela só aparecem quando são realmente necessários. No geral, quando você pode interagir com um objeto, um discreto ponto branco aparece sobre ele, bastando você empurrar o direcional analógico direito para que haja a interação.
Já nos momentos de pancadaria e ação, temos um sistema que é um pouco complicado de início, mas funciona: sempre que Jodie inicia uma ação – como socar, chutar, pular, esquivar – o jogo entra em uma breve câmera lenta. Você deve observar o movimento corporal de Jodie, para então empurrar o analógico na mesma direção, permitindo que ela complete o movimento.
Por exemplo: se Jodie começa a se abaixar para escapar de um soco ou galho, você deve mover o analógico para baixo, para que ela complete o movimento. O mesmo princípio vale para outros tipos de movimento, como um comando para cima para saltar, e para os lados para porradas e/ou esquivas. A coisa fica meio complicada em ambientes muito escuros (como a já mencionada cena de perseguição na floresta), onde fica difícil enxergar com clareza a movimentação da protagonista.
Se você por ventura falhar em alguns destes quick time events, não se desespere: Beyond Two Souls é um jogo que não possui “Game Over”. Mas calma, isso não quer dizer que o jogo é ridiculamente fácil. Em uma esperta sacada de roteiro, sempre que alguma situação ou obstáculo não é superado, o jogador vai parar em outra “cena”, e terá que se virar para prosseguir.
Voltando à já mencionada cena da perseguição na floresta: se você conseguir despistar os tiras e escapar, maravilha, o jogo prossegue normalmente. Porém, caso você seja apanhado, terá que passar por um desafio extra, onde Jodie está algemada dentro de um carro de polícia. Este tipo de ramificação pode acontecer em diversos momentos, sempre atrelado ao sucesso (ou fracasso) do jogador no cumprimento de certos objetivos.
Isso explica o colossal roteiro de mais de 2 mil páginas do jogo que ajudou na divulgação do game. Embora a história seja relativamente longa, um bom terço deste roteiro deve ser voltado somente para estes fatos secundários que podem (ou não) aparecer para cada jogador.
Como nem só de ação se faz um jogo da Quantic Dream: existem vários capítulos tranquilos, e um dos mais bacanas é o The Dinner, onde Jodie tem um jantar romântico com um affair. As escolhas aqui são simples, mas bacanas, e suas decisões afetam diretamente os rumos que o jantar toma.
Em termos técnicos, não há muito o que dizer: o jogo é incrivelmente bonito, e possui um departamento de áudio primoroso. O talentoso elenco entrega interpretações inspiradas, e a captura de movimentos transporta as feições dos atores para o mundo digital do game de maneira extremamente competente.
A evolução da tecnologia é notável: a textura da pele, o brilho dos olhos,as rugas, os pelos e as linhas de expressão, tudo foi transportado para o game com maestria, e os personagens só parecem “falsos” com determinadas expressões mais ousadas. Heavy Rain já era impressionante em 2010, e Beyond Two Souls consegue ser ainda mais incrível agora.
Com Beyond Two Souls, David Cage e a talentosa equipe da Quantic Dream dão mais um grande passo no que diz respeito à captura de interpretação no mundo dos games. A qualidade dos modelos, da interpretação e das dublagens é incrível, o que ajuda muito na criação de empatia.
A câmera funciona muito bem com os dois personagens: com Jodie, ela se posiciona sempre às costas da protagonista de um jeito que parece meio torto, mas sempre te mostra tudo o que você precisa ver. Com Aiden, assumimos uma perspectiva em primeira pessoa, e os objetos ficam transparentes quando passamos por eles. Quando estiver na parte do trem, experimente sair do vagão com Aiden: você irá se surpreender com o exterior, com a chuva pesada que cai e a paisagem noturna que passa rapidamente ao seu redor.
A trilha sonora (produzida pelo premiado Hans Zimmer) também se destaca, pontuando momentos de tensão e sumindo por completo quando o jogador precisar ouvir os sons ambientes, que por sinal também são de primeira. Tudo neste jogo é grandioso e tem uma aura cinematográfica que lhe cai como uma luva.
Não posso julgar a qualidade das dublagens e legendas em português porque, como você talvez já esteja sabendo, a Sony cometeu uma pequena gafe e trouxe o primeiro lote do game sem a prometida localização. Como isso pode ser um problema para muita gente, sugiro que se informe bem antes de comprar (a versão realmente localizada traz um adesivo na capa, avisando das dublagens e legendas em PT-BR). Em tempos de #PS4K, esta foi uma das mancadas da Sony em solo brasileiro.
Em resumo, Beyond Two Souls é um jogo extremamente caprichado, que encontra força em seu elenco estrelado para contar uma história confusa e um pouco viajada (e com alguns clichês), mas que se mantém interessante. Você inevitavelmente será fisgado pela trama, e vai querer saber como ela termina.
Este não é um jogo irretocável, mas com certeza é uma experiência diferenciada, cinematográfica e envolvente.Como os demais jogos da Quantic Dream, Beyond Two Souls deve dividir os jogadores entre os que amam e os que odeiam. Para saber em qual grupo você se encaixa, só há um jeito de saber: jogando.