Análise Arkade: Mergulhe fundo na loucura e insanidade de Call of Cthulhu
“A maior condescendência que se pode encontrar no mundo, acho eu, é a incapacidade da mente humana de correlacionar todos os seus conteúdos. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a negros e infinitos mares, e não está determinado que devamos viajar para muito longe. As ciências, cada uma enveredando por seus próprios caminhos, até o presente momento, nos causaram pouco dano; mas algum dia, a reunião de conhecimentos dissociados revelará perspectivas tão aterradoras da realidade, e da nossa fragilidade dentro dela, que ou enlouqueceremos diante da revelação ou fugiremos da luz para nos escondermos na paz e segurança de uma nova era das trevas.”
– O Chamado de Cthulhu, H.P. Lovecraft
A obra de H.P, Lovecraft é sem dúvida alguma um verdadeiro tesouro da humanidade, tanto que suas criações influenciaram o mundo inteiro de diversas formas diferentes, seja na literatura, na música, na fantasia, no cinema e inclusive nos RPGs de mesa e nos video-games. E dessa forma, um dos mais tradicionais RPGs de mesa ganha uma adaptação para o mundo digital, trazendo uma aventura que mergulha na loucura e desespero. E assim, abra seus sonhos e venha conosco conferir nossa análise completa de Call of Cthulhu!
Uma jornada pela loucura e os mistérios do universo
Call of Cthulhu coloca o jogador no controle do detetive particular Edward Pierce, um ex-soldado sobrevivente da Primeira Guerra, que sofre de stress pós-traumático e de alcoolismo, que é constantemente atormentado por terríveis pesadelos com estranhas imagens.
Ele acaba aceitando o trabalho de investigar a estranha morte da pintora Sarah Hawkins, que morreu em um incêndio junto de sua família na isolada e misteriosa ilha de Darkwater, uma antiga e decrépita ilha de pescadores de baleia. E nessa estranha ilha há uma forte conexão com os estranhos pesadelos que atormentam Pierce, o que o faz decidir ir a fundo nesse caso.
A ilha de Darkwater é um desesperador e desolado lugar, povoado por pescadores bêbados, contrabandistas no auge da Lei Seca dos Estados Unidos e estranhas figuras relacionadas a antigos e enlouquecedores cultos. E nesse lugar Pierce deverá afogar-se nos perigos e na insanidade que reside nas sombras, para buscar pela verdade por trás da morte de Sarah e de seus estranhos pesadelos.
Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn
Call of Cthulhu é um game de investigação e aventura com elementos de RPG e terror. Sua missão é descobrir a verdade sobre Sarah através de investigações em diversos lugares e conversas com personagens. A progressão do game acontece de forma linear através de capítulos, cada capítulo dentro de algum lugar importante para a investigação. Seja no porto da cidade, dentro de um galpão abandonado e etc.
Sendo um game com foco em investigações, o progresso se dá pela quantidade de pistas que o jogador coleta sobre o caso. Ser detalhista faz toda a diferença, pois sempre há itens ou documentos com informações úteis escondidos nos cenários. Quanto mais informações você coleta, mais opções de diálogos e ações terá com personagens. Por exemplo, fazer um personagem ser mais cooperativo com você, caso você descubra algum detalhe importante sobre suas vidas, ou usar isso contra eles, se assim desejar.
Quanto mais você descobre, e principalmente quanto mais você se envolve com ocultismo, mais a sanidade de Pierce é afetada. A sanidade é um fator que numa visão superficial parece não ter uma verdadeira função, mas há sim, apesar de ser sutil. Se você não se envolver muito com ocultismo, a sanidade de Pierce não será muito afetada, porém ele não terá uma visão mais clara sobre a verdade cósmica em que está envolvido.
E se você se envolver demais com ocultismo, perdendo assim sanidade, você compreenderá melhor o mundo, bem como terá opções novas de diálogo com os personagens, mas mudará a forma com que Pierce entende acontecimentos comuns. Apesar disso, não há reais consequências para o estado de sanidade do personagem em termos de gameplay e progressão, exceto em alguns momentos chave.
“Não está morto o que pode eternamente jazer. E após estranhos éons mesmo a morte pode morrer”
Call of Cthulhu possui um excelente roteiro, com plot twists bem encaixados e interessantes, ainda que um ou outro sejam fáceis de se prever. Mas o grande ponto alto do game é a excelente forma com a qual a obra de Lovecraft é incorporada na narrativa. Não se trata somente de uma história que meramente usa as ideias e personagens criados pelo lendário autor, mas sim as incorpora de forma muito bem feita.
É claro que isso é perceptível mais para quem lê os contos de Lovecraft, pois quem já conhece a obra original poderá notar pequenas sutilezas que fazem toda a diferença na ambientação. Como os cultistas entoando o cântico de invocação de Cthulhu, a profecia de retorno do próprio, que apesar de ter algumas novas informações inseridas, é o mesmo do conto, além de muitas outras coisas que se eu contar, vou tirar a graça.
Ainda há muitas referências a outros contos de Lovecraft, sutilmente escondidos em documentos e objetos, seja o nome de algum personagem que apareceu em algum outro conto, ou algum objeto ou menção sobre criaturas de outros contos, aos Grandes Anciões e etc. O game conseguiu criar uma atmosfera poderosa, principalmente para quem já é familiarizado com os contos.
Investigação com elementos de RPG
Call of Cthulhu é um game de investigação em primeira pessoa, que usa um pouco do que é visto em Amnesia: The Dark Descent. Como o foco do game é em investigação, a maior parte do tempo você estará explorando cenários em busca de informações e pistas. O gameplay é bem simples, você pode andar, correr, se agachar, interagir e utilizar um lampião a óleo ou isqueiro para poder enxergar no escuro. O lampião se esvazia com o tempo, dessa forma, é sempre bom ficar de olho em latas para reabastecer. O isqueiro fornece luz sem necessidade de reabastecer, mas oferece muito menos iluminação do que o lampião.
A sanidade é um recurso de gameplay, ao estilo de Amnesia. Se você olhar diretamente para coisas sobrenaturais, Pierce ficará apavorado, respirando profundamente e tremendo, o que revela sua posição para inimigos. Ele também fica apavorado ao se esgueirar por espaços apertados ou se esconder em armários. Mas no fim das contas, essa perda de sanidade em tempo real não é algo que realmente afete a jogatina. Basta apenas que o jogador saia de seu esconderijo ou não olhe diretamente para os perigos para recobrar a calma, sem penalidades.
A base do gameplay é a interação com objetos, livros, itens e pequenos puzzles para poder juntar informações suficientes para poder prosseguir. Uma das formas de investigação do game é a reconstituição de cenas. Pierce possui o estranho dom de recriar acontecimentos ao observar detalhes no ambiente. Ao chegar em um local onde isso é possível, as bordas da tela ficarão esbranquiçadas, indicando-o que é possível montar uma reconstituição.
Durante a reconstituição, o cenário fica sem cor e apenas os pontos de interesse ficam coloridos. O jogador deve então interagir com eles, o que montará a cena dos acontecimentos naquele local, com projeções dos personagens que estiveram presentes durante a ação. O quanto de pistas o jogador conseguirá encontrar nessas partes dependerá da forma com a qual o jogador evolui os atributos de Pierce.
E aqui entram os elementos de RPG. Primeiramente, conforme o jogador avança no game, ganha pontos de habilidade para melhorar o personagem. Pierce possui 7 atributos diferentes: Visão, para poder enxergar objetos e itens no cenário com mais facilidade; Eloquência, para ter mais facilidade em conversar e manipular personagens; Força, tanto força física como agressividade em conversas; Psicologia, para entender melhor as motivações dos personagens em suas ações; Investigação, para decifrar com mais clareza as pistas e destrancar cadeados. E por fim, os dois últimos atributos, que só são evoluídos ao se encontrar itens especiais, como livros ou objetos: Medicina, para entender mais sobre remédios e diagnósticos de vítimas; e Ocultismo, que é o seu conhecimento sobre os segredos mais sombrios, e que afetam sua sanidade.
Dependendo da forma como o jogador evoluir esses atributos, o caminho pode se abrir de formas um pouco diferentes. Com pouca visão, você não encontrará muitos itens importantes, chegando ao final sem ter pleno entendimento de tudo, por exemplo. Com bastante psicologia, você tem mais opções de diálogo que podem facilitar sua interação com personagens, e etc.
Chegando então nas opções de diálogos. Certas opções geram a mensagem de que elas serão lembradas posteriormente e terão consequências, apesar de na realidade poucas dessas decisões terem real impacto. Todas as suas decisões influenciam seu relacionamento com os personagens, porém poucas dessas decisões tem influência direta na progressão. O game possui quatro finais diferentes, sendo que dois deles são habilitados somente se você agir de uma forma específica em um determinado momento da aventura.
Apesar de no fim o sistema de escolhas não ter um peso tão grande quanto poderia, e diferentes jogatinas em geral não se desviarem muito em seus caminhos, elas geram situações ligeiramente diferentes, que permitem que o jogador acumule diferentes tipos de informação e tenha diálogos diferentes com os personagens.
Audiovisual
Call of Cthulhu tem um visual bonito, apesar de simples. Os personagens e principalmente os cenários possuem visuais que evidenciam o clima de terror e loucura que domina a aventura, criando uma ambientação e atmosfera muito bem feita. Apesar disso, há alguns defeitos no visual, como algumas animações de personagens muito “duras” e alguns glitches gráficos que aparecem nos cantos das telas quando você vira a câmera, mostrando linhas ou formas brancas, como se o cenário estivesse renderizando enquanto você olha para os lados.
Apesar disso, as texturas do game são bem feitas, dando um pouco mais de realismo ao visual do game, com muita sujeira, sangue e tripas de peixes mortos empesteando os cenários, uma neblina suave que cria um clima soturno, sem ser inconveniente e etc. Já quando se trata de situações perigosas, é aqui que o visual atinge seu auge, com seres de visual grotesco que o jogador deverá encarar.
A parte sonora do game é excelente, a dublagem do game, em inglês, é muito bem feita, aliado ainda a cutscenes bem cinematográficas que transmitem a loucura que Pierce enfrenta de uma forma bem satisfatória. As músicas também contribuem muito para o clima, apesar da maioria das áreas transmitirem apenas sons ambientes, criando climas serenos e intensos, dependendo da situação.
O game possui menus e legendas em português brasileiro, com um ótimo trabalho de dublagem, apesar de alguns errinhos aqui e ali.
Conclusão
Call of Cthulhu é uma aventura muito interessante e envolvente, mesmo que seja um tanto curta, podendo ser finalizada em poucas horas, mesmo com o jogador procurando todos os itens e documentos escondidos. O game é ainda melhor para os fãs da obra de Lovecraft, que reconhecerão seus elementos e referências, deixando tudo muito divertido.
Apesar de possuir elementos de terror e RPG, o game é um adventure de investigação, com uma progressão mais calma e focada em exploração ao invés de resolução de puzzles ou sequências de fuga ou furtividade. É um game para se jogar de forma calma, absorvendo sua história e seus mistérios, com um enredo muito interessante de se acompanhar até um de seus quatro finais, fazendo a jornada valer a pena!
Call of Cthulhu está sendo lançado hoje, dia 30 de outubro, com versões para PC, Playstation 4, Xbox One e Nintendo Switch.