Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

26 de agosto de 2021
Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

A temática agrícola, se é que esse termo faz algum sentido, nunca esteve tão em evidência como agora, mesmo que há alguns anos os “jogos de fazendinha” tenham feito tanto sucesso em consoles, PCs, dispositivos mobile e redes sociais, como a já clássica Colheita Feliz.

Só pra citar aqueles em maior evidência, o gênero agrega milhares de fãs fiéis em produções como Harvest Moon, Stardew Valley, Story of Seasons, sem contar o fenômeno do título mais recente da franquia Animal Crossing: o já tradicional e mais realista Farming Simulator. Ou até o inesperado e recente Sakuna: Of Rice and Ruin. Contudo, logo nos primeiros minutos, fica evidente que Garden Story não tem nenhuma relação com essas produções, salvos alguns elementos estéticos.

Porque então uma introdução que referencia algo sobre o qual este texto não trata? O motivo, prometo, é justo. Com a profusão de produções das mais ambiciosas às mais criativas, é natural que vendo alguma imagem ou vídeo do jogo, imaginemos que em algum momento teremos aquela mecânica de cultivo já bastante sedimentada.

Vou deixar claro que não é disso que Garden Story trata, o que significa que entusiastas ou detratores do modelo podem ter a certeza de que esse não é o caso aqui. Portanto, para o bem ou para o mal – o que depende da sua expectativa – esse game se apropria de outras referências bem mais, digamos, tradicionais.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

Uma uva contra a podridão

Garden Story é, resumidamente, um tradicional RPG em tempo real com visão superior (como nos clássicos Final Fantasy e The Legend of Zelda da era 8/16 bits) onde acompanhamos a trajetória de Concord, uma uva jovem e inexperiente que acaba sendo chamada à aventura inesperadamente para assumir o papel de guardião e assim salvar o mundo daquilo que se convencionou chamar de Rot (“podre” ou “podridão”em tradução livre), numa verdadeira estrutura narrativa baseada na jornada do herói.

Organizado em quatro grandes ciclos – Spring Hamlet, Summer Bar, Autumn Town e Winter Clade – que representam não só as óbvias estações sazonais como também regiões desse mundo fantástico com seus próprios costumes e características, Garden Story traz tudo o que se pode esperar de jogos dessa natureza: o jogador, ao assumir o papel principal, precisa explorar os cantos do mundo na busca por revelar mistérios, encontrar recursos para evoluir seus equipamentos e solucionar puzzles enquanto enfrenta perigos, inimigos corrompidos e armadilhas mortais.

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A narrativa é organizada em alguns ciclos menores dentro dessas grandes fases, e o tempo é marcado pela passagem dos dias. Assim, temos dois tipos de missões a serem contempladas: as tarefas principais, que pertencem a linha base da jornada de Concord e que podem ser cumpridas no tempo adequado ao jogador, e as atividades de comunidade, onde nosso herói é chamado pelos moradores de cada região.

Desta forma, o personagem é chamado a ajudá-los no seu dia-a-dia, seja eliminando inimigos de um certo tipo, arrumando cercas, buscando e trazendo ingredientes ou consertando pontes. Em outras palavras, o mundo está em real perigo, mas nem por isso devemos deixar nossos vizinhos desamparados.

Ainda que, tecnicamente, as missões secundárias sejam opcionais, na prática não é bem assim. Primeiro porque realizá-las rende, ao final do dia, a evolução do nível da própria região em diferentes aspectos, algo que não demora a trazer benefícios diretos, como novos produtos disponíveis nas lojinhas e novos cantos a serem explorados.

Segundo porque, como todo mundo que já experimentou games desse estilo sabe, realizar tarefas corriqueiras significa acumular recursos, dinheiro, experiência, e naturalmente se preparar melhor para os perigos que se aproximam.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

É nesse quesito que o jogo pode engasgar um pouco em relação ao ritmo da aventura, uma vez que essas atividades mundanas não são lá muito criativas e inevitavelmente caem na repetitividade. Ajudar a reativar uma ponte ou a melhorar uma biblioteca são momentos bem legais, mas quando repetidas uma dezenas de vezes, acabam perdendo um pouco do sentido e da graça.

Essa redundância, claro, depende da objetividade do jogador em buscar a solução das atividades centrais da aventura, mas mesmo com foco bastante determinado, será necessário dar algumas voltas a mais do que o desejado pelo mundo, enfrentar os mesmos monstros vezes repetidas, adicionando uma barriga para uma campanha não tão densa assim.

No geral, as quatro grandes regiões podem ser superadas em uma campanha próxima das 20 horas, e confesso que mesmo tendo gostado muito desse tempo ao lado de Concord, algo perto da metade disso já seria bastante satisfatório sem que perdêssemos nada da experiência proposta. É uma história bastante fofa, inocente até, mas se alonga demais na necessidade da repetição de ciclos e da coleta de recursos básicos.

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Tão simples e tão complexo

Nas diversas camadas do gameplay, Garden Story traz sistemas bastante simples, como a movimentação e o combate baseado em ataques com a espada, a marreta ou a vara de pescar (na verdade, ela é mais que isso, mas é melhor jogar para descobrir o porquê) e o acúmulo de recursos como vidro, poções, madeira, pedra e outros. Enfrentar os inimigos, aliás, é das tarefas mais simplistas, com um botão de ataque e… só. Claro que vai ser necessário usar a função com alguma criatividade depois, mas nada que passe muito do convencional.

A coisa muda de figura na camada mais profunda do uso e gerenciamento de poções e habilidades. No primeiro, há diferentes tipos que podem ser armazenados em garrafas distintas, e cada qual, alem de recuperar a barra de vida, tem alguns efeitos extras. No outro, ao invés de termos power ups ou configurações complexas em armaduras, amuletos ou coisas do tipo, nossas melhorias permanentes (pelo menos até decidirmos trocá-las) estão ligadas à memórias desbloqueadas ao final do dia.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

Sabe aquela recomendação saudável de que dormir ajuda a sedimentar nossa aprendizagem e nossas memórias permanentes? Aqui acontece algo mais ou menos parecido, só que um pouco mais místico. Ao cumprir alguns pré-requisitos, liberamos pedaços de lembranças de guardiões do passado na mudança de um dia para o outro e, ao acioná-las em uma quantidade limitada de slots, ganhamos (ou perdemos) alguns atributos, como estamina, barra de HP, sorte para achar itens raros, etc.

Soma-se a isso a possibilidade de melhoria dos nossos equipamentos de ataque e de defesa no comércio local, normalmente utilizando dinheiro acumulado ao vencer inimigos e uma quantidade específica de um certo elemento.

O problema é que nosso inventário é bastante limitado, o que atrapalha, e muito, no acúmulo dessas riquezas naturais. Não é raro ter que abandonar espólios de uma investida pelo mundo simplesmente porque não cabem na mochila. Piora o fato de que cada item ocupa um slot, sem aquela função comum de que itens do mesmo tipo podem se juntar.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

Ou seja, se você coletar 15 gravetos, poderá não ter espaço para elementos mais raros. Não ajuda o fato de que deixar as coisas no chão para pegar depois é impossível, já que ao sair de uma área, os itens lá são zerados.

Mesmo com a possibilidade, lá pela metade do jogo, de construir mais baús mágicos onde tudo o que se coloca lá pode ser resgatado em outro baú (no melhor estilo Resident Evil) a coisa não melhora muito, e fatalmente será necessário ficar indo e voltando para suas bases mais do que o necessário só para descarregar os bolsos, ou repetir mais dias do que preciso só para ter os recursos mínimos para uma certa melhoria ou construção.

Completar uma região, portanto, está diretamente ligado a explorar os cantos escondidos, cumprir as tarefas, melhorar o nível do local, encontrar NPCs com algumas demandas e, ao final, adentrar uma boa e velha masmorra com quebra-cabeças um pouco mais elaborados que os do mundo comum e, na última sala, enfrentar o chefão podre, fonte dos problemas.

Ainda que eles sejam um pouco mais trabalhosos do que a média da jornada, não há aqui grandes dificuldades, sobretudo para quem se preparou moderadamente bem antes de chegar até lá. Vale a máxima de sempre: estar com a carga de poções no máximo, melhorar o equipamento e entender os padrões de ataque.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

No que tange toda a jogabilidade, Garden Story jamais se torna complexo de fato, muito porque o jogo para de exigir a aprendizagem do jogador cedo demais. A partir da segunda metade, há realmente muito pouco a se evoluir, os inimigos ganham variações interessantes, mas pouca coisa muda de fato a ponto de exigir um amadurecimento do jeito de se jogar.

O último terço da campanha acaba sendo uma repetição com pouca novidade tanto no que trata da narrativa quanto do aumento gradual da dificuldade ou das possibilidades do jogo. O que se faz nas primeiras três horas, a grosso modo, não é tão diferente das três últimas.

Esteticamente adorável, mas comum

Você já deve ter visto, mas imagens que acompanham essa análise, que é impossível não se encantar com o belo estilo artístico do game. Todos trabalhados no pixel art, os personagens e ambientes transbordam cores, com belas passagens de dia e noite, e mesmo nos momentos onde a escuridão é a regra, Garden Story nunca perde esse tom lúdico de uma aventura pueril.

É um jogo que sabe usar de um tom leve e não fosse a complexidade de alguns sistemas e a ausência da localização para o nosso idioma, seria uma recomendação fácil para também crianças de todas as idades.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

Por outro lado, esse não é dos games que conseguem transmitir carisma e personalidade em qualquer dos aspectos. Concord e seus amigos vegetais e animais tem seus momentos, o texto tem algumas passagens particularmente bem escritas e muito mais significativas do que sugerem, mas ainda assim é um pouco difícil se apegar a eles, às suas particularidades e suas idiossincrasias.

A grande maioria dos personagens que encontramos se mantém na linha rasa do arquétipo funcional para a trama, e mesmo o protagonista, ao lado do qual passamos bastante tempo, parece muito mais um avatar vazio do que alguém com tamanha carga dramática como um guardião eleito e herdeiro de uma tradição heróica.

A leveza visual também transparece na trilha sonora, principalmente por meio de composições musicais muito bem compostas, doces, cheias de ternura, com um toque de instrumentos de sopro realmente agradáveis, daquelas que dá vontade de ouvir o dia todo em modo de repetição.

Assumo que escrevo esta análise ouvindo algumas das belas canções do compositor Grahm Nesbitt, e recomendo que vocês possam conhecer a trilha em uma playlist disponível no canal do próprio artista no Youtube:

Como um todo, Garden Story é esteticamente muito bem resolvido, encontra ótimas soluções para construção de seu mundo relativamente vasto, e conta com uma elaboração sonora bastante inspirada para produções do gênero.

Contudo, visualmente é um tanto quanto genérico em vários momentos, e ainda sofre com um level design um pouco truncado, sendo que algumas passagens não deixam tão claro assim por onde é possível caminhar e onde há uma barreira.

O principal problema, contudo, é que mesmo com todo o clima onírico da produção, a imersão acaba ficando um passo atrás do que poderia pelos personagens não serem tão cativantes assim. Concord já não parece ser um nome tão fofo para uma uva, e por uma personalidade um tanto quanto ausente, é um herói que provavelmente não é tão memorável como deveria.

Análise Arkade: Salvando o mundo da podridão em Garden Story

Conclusão

Garden Story é um belo RPG retrô, com alguns sistemas bastante sofisticados e ótimas ideias originais. A temática da natureza contra a podridão é muito mais conceitual do que prática na maioria do tempo, e o estilo artístico tem seus momentos, mas perde boas oportunidades de ser inesquecível e realmente único. Há identidade, mas falta um pouco de personalidade à produção.

Como rege o padrão de produções que chegam a nós pelo Nintendo Switch (ainda que também tenha versão para PC), a falta da opção de textos em português é realmente de se lamentar, sobretudo em um jogo com muitos diálogos bem escritos e algumas orientações e informações realmente necessárias que precisam ser compreendidas para que possamos avançar.

Seria um ótimo jogo para se recomendar para crianças mais novas, e uma bela porta de entrada para o mundo dos RPGs, mas o idioma pode ser um obstáculo para isso.

Em termos de ritmo, a campanha poderia ser um pouco mais direta e objetiva, mas missões secundárias optativas e um modelo de inventário questionável acabam favorecendo a repetição exagerada. Ainda assim, aproveitei muito o meu tempo no game, realmente me diverti jogando por boas horas seguidas ou em jornadas mais rápidas, e o tom de aventura vespertina acaba se mostrando cativante.

A média geral é sim, bastante positiva, e mesmo as ressalvas são relativas. Se essa história de um jardim não tem nada sobre plantar ou colher, certamente se montra uma aventura inesperada, sobretudo para uma pequena uva desavisada.

Paulo Roberto Montanaro

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