O Rei da TV traz “dois” Silvio Santos que a TV nunca apresentou, mas com um toque de ficção
O próprio Silvio Santos disse, há alguns anos atrás, que ele é “apenas um animador que virou dono de TV”. Mas, a grande verdade, é que seja como camelô, como apresentador que pagava por seus horários aos domingos, ou como dono de emissora, talvez o seu maior talento seja o de “vendedor”. É exatamente este lado de Silvio que O Rei da TV, seriado apresentado pela Star+, traz em sua primeira temporada, de oito episódios.
Basicamente, a escolha da série é trazer um paralelo de dois momentos da vida de Silvio Santos: a sua história inicial, que vai dos dias de camelô no Rio de Janeiro, até questões que o fizeram buscar a concessão de sua primeira emissora, até o ano de 1988, quando o apresentador também empresário sofre com um problema na garganta, além de questões internas no SBT, como a gestão de sua emissora e o interesse da Globo em Gugu, que como a história conta, fez com que o próprio Silvio fosse pessoalmente ao Rio de Janeiro desfazer o contrato de seu “pupilo” com a emissora carioca.
Porém, engana-se quem acredita que a série é apenas documental. É verdade que muitos momentos conhecidos da história de Silvio Santos são apresentados, porém nem tudo o que é visto pode realmente ter acontecido. Entretanto, o seriado não tem problemas quanto a isso, investindo na construção da história, e apresentando uma das figuras mais conhecidas do Brasil, mas de uma outra forma.
Em uma questão que merece elogio, a reconstrução de momentos dos anos 60, 70 e 80 ficaram muito boas. Em um momento na Rádio Nacional, onde Silvio conversava com Manuel de Nóbrega, é possível ver diversos carros de época andando pelo cenário, o que mostra o cuidado com estes detalhes. Figurinos, cenários e elementos destes dias também mostram dedicação e cuidado por parte da produção.
Falar de Silvio, é falar de parte da história da TV brasileira. Assim, somos apresentados a várias outras figuras: Rossi, inspirado em Boni, o lendário “homem forte” da Globo, que no seriado surge como uma espécie de antagonista para Silvio; Gugu, que no seriado surge como um “discípulo” e espécie de “sucessor” no SBT, mas que demonstra fragilidades, que são exploradas tanto por Silvio quanto pela Rede Globo; Cidinha e Íris, as duas esposas do empresário (Cidinha, a “esposa secreta” faleceu em 1977), que demonstram ter grande participação em sua vida; e até personagens da história, como o presidente militar Figueiredo, o cantor Nelson Ned, o inseparável Roque, e os eternos calouros Pedro de Lara e Sérgio Mallandro.
Vale destacar a importante participação de Cleuza, vivida por Larissa Nunes, e que se torna uma personagem importante na trama. É ela quem nos mostra todas as facetas de Silvio. Crescendo junto com o patrão, até se tornar a diretora de programação do SBT, é através dela que vemos o elo entre o Silvio, apresentador, e Senor Abravanel, o homem. A personagem faz muito bem para a trama, e nos ajuda a entender melhor o lado humano do empresário.
No seriado, temos várias facetas de Silvio, que não envolvem apenas seus trejeitos e bordões clássicos em décadas de programas de TV. Temos um Silvio sonhador, um outro ambicioso, um outro que está disposto a negociar tudo, e até um Silvio frágil, que sente determinadas questões e se sente mal por isso. Ao mesmo tempo que somos apresentados aos bastidores da TV brasileira entre os anos 60 a 80. A série nos mostra que, assim como os participantes de seus programas, que estão dispostos a muita coisa pelos prêmios do Baú, ele também é um jogador, que também roda a roleta socando com a “casa própria”, ou neste caso, a “emissora própria”.
A série é tão descompromissada que até abre espaço para momentos únicos. Como um sonho de um Silvio preocupado com o futuro, na qual é questionado por ninguém mais, ninguém menos, do que a Velha Surda. Ou em uma discussão com sua esposa Íris, no qual fazendo-a responder uma pergunta, emenda um “certa resposta”, assim como o apresentador dizia no programa Show do Milhão.
É óbvio que isso iria render polêmicas. Daniela Beyruti, uma de suas filhas, disse que a série é uma “falta de respeito”, dizendo que o SBT providenciaria um projeto pr´oprio a respeito do pai. Já Silvia Abravanel, outra filha, afirmou que “a série é uma lástima”. Até o Jassa, inseparável cabeleireiro de Silvio, também reclamou: “Quem fez nunca viu o Silvio e muito menos o assistiu na TV”.
Mas o próprio Silvio Santos não é uma figura que se preocupa muito com isso. Pois ele sabe que seu “mito” já está criado. Em uma raríssima entrevista, que o apresentador concedeu em seu Show de Calouros lá em 1988, que até é reproduzida de certa forma no programa, Silvio lamenta seus erros, e de uma forma transparente, fala abertamente sobre várias questões, incluindo as abordadas pela série.
Acredito que, mesmo com ficção no meio da realidade, o Silvio que conheço tem mais a ver com o que vi neste seriado do que uma representação “santificada” de um homem que, realmente, ajudou muitas pessoas, mas que também fez de tudo, para chegar onde chegou. Se é certo ou errado, não estou aqui pra julgar. Mas o mundo é sim mais cinza do que a gente pensa, mesmo com pessoas que são consideradas “heróis” pelo povo.
Outra questão envolve as liberdades narrativas na construção da história. Gugu, por exemplo, é apresentado como frágil e vingativo, porém a história conta outra versão. Segundo matéria publicada pelo jornalista José Armando Vannucci, do site No Play News, a verdade é que a Globo queria apenas um substituto para Chacrinha, que havia acabado de falecer, e viu tal potencial em Gugu. Sabendo disso, Silvio foi para a Globo desfazer o negócio, e oferecendo ao seu “pupilo” novas oportunidades. Como sabemos, tais oportunidades foram muito bem aproveitadas, especialmente com o Domingo Legal, quando “mestre e discípulo” dividiram os domingos do SBT por anos.
O que nos leva a concluir que o seriado nunca teve a intenção de ser comprometido com a biografia. Misturando realidade com ficção, deixa campo aberto para fazer sua própria versão de Silvio Santos. Há quem se incomode muito o que foi apresentado, o que se inclui parte da família do apresentador e fãs mais fervorosos. Mas mesmo sendo um grande admirador do “Homem do Baú”, não achei que a série foi desrespeitosa não.
Ouvi críticas que reclamavam da forma “folclórica” que Silvio aparece, com figurino questionável e exageros. Mas o próprio Silvio construiu, sem vergonha nenhuma, tal postura para se aproximar das camadas mais populares, em uma época na qual a TV brasileira ainda estava sendo construída. Logo, mesmo com exageros, temos de reconhecer que o homem que estava por trás das câmeras naqueles domingos, foi quem construiu esta imagem.
E olha que ainda houve quem criticasse a forma superficial que outros temas envolvendo Silvio foi abordado. Mas, como tenho dito por todo este artigo, a intenção da série foi mais a de contar histórias, do que abordar temas e questões envolvendo o empresário e apresentador. Mesmo que o faça em alguns momentos, ainda o faz mais como “parte de enredo” do que como “pontos de debate”.
O lance é que eu sou uma pessoa que tenho sim meus “ídolos”, porém não sou alguém que os idolatra, a ponto de transformá-los em “divindades”, que “nunca erram” e que apenas fizeram o correto. Posso dar como exemplo a admiração que tenho por Ayrton Senna (outro “herói de domingo”), que para mim, segue sendo o melhor piloto de todos os tempos, mas que também reconheço que, devido a muitas circunstâncias, muito do que se diz sobre seu legado hoje, é mais sobre “construção de mito” do que sobre quem realmente ele era. E minha admiração por Senna segue este caminho do talento, mas também de seu lado humano, o que inclui os erros de sua vitoriosa carreira.
O que acredito, na verdade, é que as pessoas estão querendo mais reverenciar as pessoas como “mitos” do que como seres humanos. Assim, retiram todos os seus defeitos, querendo apenas retratar a figura em questão como “herói”. Temos, no cinema nacional, exemplos desta tentativa de “mitificar” pessoas através de filmes-documentários.
Voltando ao Silvio, acredito apenas que um simples aviso de que o conteúdo não é totalmente comprometido com a biografia já ajudaria a desviar um pouco desta ira. O que sei, também, é que a vida do “patrão” rende ainda muitas histórias mais, que podem ser devidamente exploradas. Um Silvio Santos candidato a presidente? O momento de sequestro de sua filha e depois dele próprio? A briga travada com a Record por causa de Ratinho?
“Viajando” mais nas ideias, pensei até em um “Universo Cinematográfico Silvio Santos”, já que a Disney tem parte nisso e ela adora um “universo”. Assim, poderíamos ter séries spin-off do Gugu, do Lombardi e até do Ratinho. Tá, essa parte era brincadeira e eu já parei. Mas que a Globo podia ser o “Thanos” por aqui, podia…
Muito mais do que um “documentário”, Silvio Santos é, afinal, um livro que pode render muitas histórias para um seriado, que podem render diversas temporadas. Ficamos, assim, no aguardo da próxima, uma vez que a série se despede dando espaço para “novas aventuras”. O Rei da TV está disponível no Star+.