Análise Arkade: O surpreendente terror alucinógeno de The Chant

8 de novembro de 2022
Análise Arkade: O surpreendente terror alucinógeno de The Chant

Ainda que estejamos vivendo nesta época do ano um movimento ocasional que deve muito a todo o clima do Halloween, é inevitável notar que a temática do terror e suas várias facetas parece estar retomando seus dias de glória no mundo dos jogos eletrônicos. Se em algum momento, franquias de grande sucesso tiveram que se adaptar a novas demandas por mais ação, e outras simplesmente sumiram, chega o momento onde podemos vislumbrar um novo entendimento para o gênero.

Basta perceber uma retomada de rumos de uma das séries mais celebradas da Capcom, Resident Evil; o retorno de Silent Hill em um plano ousado de múltiplas produções; além de toda a expectativa acerca do remake do primeiro Dead Space. Mas é na produção independente, de menor investimento financeiro e onde a criatividade precisa encontrar seus meios, onde há uma certa reinvenção dos padr˜˜ões mais conhecidos do que esperamos para esse tipo de produção. The Chant chega como um ótimo exemplo desse movimento que busca novas formas de estabelecer a tensão e de nos fazer considerar jogar com a luz de casa acesa, só pra garantir.

Análise Arkade: O surpreendente terror alucinógeno de The Chant

Fanatismo, seita e espiritualidade

The Chant começa nos contando a história de Jess, uma pessoa como qualquer outra, que vive com um trauma lhe assombrando, algo que a motiva a aceitar o convite de uma amiga, Kim, a tentar algo diferente que possa ajudar a seguir a vida, uma espécie de retiro espiritual em uma ilha pacífica e isolada no meio do nada, longe da bagunça estressante do mundo civilizado. Ainda que não esteja convencida desses métodos pouco ortodoxos de tratamento, a nossa relutante protagonista logo irá descobrir que há muito mais do que exercícios de meditação e orações naquele lugar.

Em meio a um ritual coletivo que não sai bem como esperado nem pelos líderes do movimento, coisas absurdas começam a acontecer, tudo sai do controle muito rápido, e Jess presencia coisas que a fazem questionar o que é real e o que não é, precisando confrontar todos os seus demônios, verdadeiros ou não. Isso a leva aos cantos mais obscuros daquele lugar e de sua própria mente, precisando lidar com seus medos, suas angústias e suas fraquezas enquanto tenta sobreviver até o nascer do sol.

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Falar mais do que isso sobre a história do jogo seria estragar surpresas e uma construção narrativa muito bem organizada que a cada nova missão principal dá um passo adiante na escala de imersão e perigo propostos pelo game. Ainda que estruturalmente tenhamos uma evolução linear e um tanto quanto protocolar – descobrir o que acontece com cada membro do grupo separadamente um do outro – há uma linha guia bastante permissiva que garante a ilusão de um ambiente aberto e liberdade de interação. É como se o level design nos convencesse que o caminho que estamos trilhando fosse, de fato, fruto de nossas escolhas.

A miscelânea de referências poderia cair na armadilha de nos levar ao lugar comum, ao clichê de um gênero já tão sedimentado na cultura pop, mas ao contrário, estamos o tempo todo sendo surpreendidos mesmo quando nos vemos explorando uma mina inativa, um complexo de cavernas obscuras ou o bom e velho farol abandonado. Mesmo que não seja particularmente extenso, o mapa desta ilha nos oferece uma sensação labiríntica e opressora que nos faz manter o estado de alerta até em ambientes abertos e relativamente bem iluminados.

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Sim, o jogo ainda se apropria de recursos mais fáceis como o famigerado jump scare barato da figura que nos aguarda atrás de uma porta trancada, mas é na construção da tensão onde se mostra potente. Até mesmo uma frase despretenciosa do líder desse estranho secto – claramente inspirado na figura de Charles Manson e todo o seu macabro poder retórico – pode nos deixar assustados com o que vem adiante. Afinal, quando estamos lidando com o estreitamento da tênue linha entre as aflições da alma e do mundo real, fica difícil saber se os demônios estão lá fora ou em nós mesmos.

A jogabilidade a serviço do contexto

Nem sempre é possível perceber um sistema de gameplay que consiga servir à narrativa emergente nesse tipo de jogo, e muitas vezes o sistema de combate acaba caindo no lugar comum de encontrarmos uma pistola 9mm na primeira gaveta que abrimos para descer o chumbo em criaturas sobrenaturais. Outras vezes, quando assumimos uma persona comum sem habilidades militares, acabamos nos contentando com um modelo reativo de correr e se esconder daquilo que não se pode combater.

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The Chant encontra uma solução que fica no meio do caminho. Dotados de três barras diferentes – mente, corpo e espírito – não somos completamente indefesos e aprendemos, como quem não quer nada, a fabricar um tipo de patuá que afasta espíritos zombeteiros e que provocam dano a qualquer coisa que não seja deste mundo. Se não é uma arma de fogo, uma lâmina ou um dispositivo de concussão, acaba funcionando de forma parecida, já que nos resta atacar o que quer que seja com aquilo para não sermos destruídos.

Como o grande mandamento desta ilha se encontra nos recursos naturais, basicamente tudo o que precisamos vem de plantas, ervas e fungos que crescem com relativa abundância por todo esse lugar. Algo que é bem mais crível do que encontrar pólvora e caixas de munição em caixotes aleatórios, e tão funcional quanto. Sem qualquer burocracia, também é válido saber que aprendemos a fazer tudo o que vamos precisar nos primeiros minutos de campanha, durante o tutorial. Ou seja, nada de laboratório, mesa de construção ou qualquer artifício de forja. Basta coletar, abrir a roda de fabricação e fazer.

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O mesmo vale para a recuperação das barras de saúde, que se dá pelo simples consumo de itens específicos com o toque do direcional digital. Comer um tipo de cogumelo, por exemplo, alimenta o espírito, e o mesmo vale para os outros dois medidores, cada qual com a sua substância dedicada. A exceção é a barra da mente que pode ser recuperada com meditação, o que desgasta o espírito. Na prática, portanto, é possível recarregar uma utilizando a outra. Parece um pouco complexo no início, mas nada que uma ou outra aventura assustadora para que entendamos como funcionam as coisas.

Cada um desses indicadores serve para um fim específico: a barra do corpo, como se pode imaginar, é a saúde da heroína, e se desgasta com o dano direto de inimigos ou fatores ambientais. Como em qualquer outro jogo semelhante, se acabar, morremos. Já a barra da mente é o nosso equilíbrio, e se desgasta conforme nos assustamos ou deixamos que os inimigos nos apavorem. Se entrarmos em pânico total, perdemos a capacidade de atacar e só resta fugir para o mais longe possível para recuperar a sanidade. E a barra de espírito, como dito, alimenta a mente.

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Interface e cuidados com recursos

Ainda que inicialmente independentes, esses medidores funcionam em um modelo de conexão muito interessante. Se tudo estiver no máximo, somos capazes de encarar os perigos com tranquilidade, mas basta algo sair do controle para que a coisa desande. Não adianta estar bem de saúde física se a mente está em frangalhos, porque nos tornamos um alvo fácil para agressores; não basta estar bem de cabeça se o corpo é frágil a qualquer ataque; e não basta ter ambos bem se o espírito não estiver pronto para dar suporte. É fundamental manter tudo em perfeito equilíbrio para poder avançar.

Há também uma árvore (ou melhor, uma mandala) de habilidades para fortalecer principalmente estes indicadores. Coletando um tipo especial de pó espiritual, pode-se aumentar cada uma dessas barras em até três níveis, bem como melhorar o aproveitamento de itens de recuperação. Como mostra ser a temática do jogo, a partir do centro, é possível investir em um aspecto em detrimento dos demais, ou tentar equilibrar de forma relativamente igualitária entre eles. Confesso que escolhi a primeira opção, valorizando a mente, porque evitar entrar em estado de pânico me pareceu a melhor forma de sobreviver.

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Tudo isso é importante para uma gestão saudável dos recursos escassos dos quais dispomos. Sim, como dito, plantas crescem por todos os lados, mas podemos não encontrá-las no ritmo que as consumimos. É importante escolher bem quais são as batalhas que valem a pena serem travadas e quais são possíveis de serem evitadas. Eu mesmo cai na armadilha de lutar contra tudo o que era possível na primeira metade e do meio em diante sofri com a falta de tudo. Se no começo foi complicado abusando do que tinha achado, no final foi ainda pior. Então por mais que seja atraente acabar com inimigos para poder explorar mais tranquilamente, é melhor saber dosar.

Contudo, gerenciar o inventário aqui é, de certa forma, libertador, já que como não há equipamentos pesados a se carregar, jamais acontece de ficarmos lotados de coisas. Ajuda o fato de nosso bolso ser naturalmente organizado entre consumíveis, coisas que vamos usar em missões, chaves e outras traquitanas, então é uma preocupação a menos. A única limitação é que não é possível coletar certos objetos de forma duplicada, como por exemplo um tipo de coisa que precisamos misturar umas com as outras a ordem certa. É necessário pegar um de cada, misturar e, se errarmos, temos que coletar de novo. Pouco funcional e sem muitas justificativas, mas enfim, é o que é.

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Essa mecânica de mixagem que lembra muito algumas outras referências do gênero é, aliás, bastante presente. Do começo ao fim, há certos dispositivos que abrem portas que precisam ser montados com pedaços espalhados pelo ambiente. De novo, nada muito complicado, e felizmente evita aquele efeito de achar algo que só será útil quando for combinado com outra coisa que coletamos horas depois. Aqui, se encontramos uma peça, certamente as demais estão próximas e seu uso será quase imediato. O resultado disso é que mesmo indo e voltando para certos lugares, a progressão é dinâmica e evita engordar a campanha nos fazendo voltar para lugares visitados só pra abrir um pequeno armário, uma porta secreta ou algo assim, a não ser que seja escolha nossa vasculhar o que tiver ficado para trás.

Algumas coisas, portanto, podem até soar antiquadas para os dias atuais, mas no contexto de The Chant, funcionam muito bem. Até mesmo o sistema de esquiva desajeitado – nada de um movimento calculado para abrir espaço para um contra-ataque coreografado como em jogos com protagonistas bem treinados – ou a velocidade de caminhada e corrida fazem sentido considerando as capacidades de Jess em lutar contra algo tão inesperado para uma pessoa da cidade. Ainda que não seja fácil, é um conjunto de capacidades bem útil e coerente com a proposta do jogo.

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Cores a serviço do terror

Via de regra, jogos do gênero tendem a buscar uma paleta de cores sóbrias, que abusa do marrom frio e do cinza lavado para construir um clima opressivo e antagônico a quaisquer sentimentos alegres e vibrantes. The Chant segue por um outro caminho e o faz de modo também contextualizado, dando significado a tons mais fortes e apostando em uma psicodelia própria dos efeitos de alucinógenos e outras substâncias que mexem com noções de realidade.

Ao adentrar a comunidade, Jesse recebe um cristal que, teoricamente, funciona em consonância com os demais, cada qual de uma cor distinta, e somente o conjunto de todos eles é capaz de realizações especiais, motivo que nos coloca no objetivo de encontrar cada uma dessas pessoas ao longo da campanha. Na prática, elas tem duas funções bastante distintas. A primeira delas é nos dar poderes especiais úteis para enfrentar ou evitar os inimigos pelo caminho. Tais elementos tem uma roda de seleção própria e o uso adequado é fundamental para a progressão. Uma vez que nos adaptamos a cada poder, impossível ficar sem ele.

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O segundo é que há trechos do cenário tomados pela penumbra, e cada qual é dominada exatamente pela cor correspondente de cada cristal, só permitindo que o portador da cor correta a atravesse. Assim, algumas dessas passagens, por vezes bolsões com recursos valiosos, por outras corredores para um lugar completamente novo, precisam que tenhamos, de alguma forma, adquirido o objeto. Daí a linearidade, e daí um trabalho todo especial criando microcosmos específicos para cada uma dessas passagens. E não é só a temperatura de cor que se altera quando entramos em uma dessas anomalias: há toda uma distorção de formas que reforça a sensação de que o limiar entre a alucinação e mundo real está cada vez mais turvo.

A direção de arte do jogo consegue transitar muito bem entre o palpável e o intangível, entre o material e o jogo de percepções sensoriais não confiáveis. Tudo isso com gráficos impressionantes e uma ótima construção de mundo. Mesmo que expressões faciais deixem a desejar no que se refere a sutileza, não há como negar um trabalho de excelência muito bem sucedido em estabelecer um clima de alarme constante e crescente. O design de criaturas é um outro grande acerto e se apropria da diversidade para também deixar no ar a dúvida permanente sobre a sanidade da protagonista. Seria tudo aquilo real? Ou seria uma projeção de uma mente envenenada?

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Talvez o maior pecado neste departamento seja uma menor riqueza de detalhes em ambientes internos, e são poucos aqueles cuja cenografia agrega ao conjunto da obra. Mas certamente há um trabalho a ser atualizado em termos de iluminação, que, inconstante, alterna momentos inspirados com outros onde faltam contrastes, faltam fontes secundárias de luz para valorizar as sombras. Em um jogo onde o estado mental alterado pode subverter formas, silhuetas e contornos, haveria um campo fértil para se explorar aqui tal como em um bom filme expressionista alemão. Faltou, e no lugar temos alguns espaços só mal iluminados, que, pior, nem sempre acionam a lanterna que deveria ser automática.

Por outro lado, a composição sonora tem todos os bons ingredientes de um bom horror psicológico, com uma música que passa do incômodo estridente ao relaxante em questão de segundos, além de um bom trabalho de vozes que conseguem dar um tom típico que nos deixa inquietos e desconfiados de tudo e de todos. A sonoplastia, enfim, é funcional, oferecendo uma ambiência que colabora com o jogo ao dar destaque ao que realmente interessa. O barulho crescente de um certo inimigo se aproximando, por exemplo, nos traz muito mais angústia do que vê-lo diretamente, algo que pode parecer trivial, mas quando feito da forma certa, é sensacional.

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Conclusão

The Chant é daqueles jogos que chega como quem não tem tantas pretensões e acaba se mostrando muito competente em tudo o que se propõe. Mesmo não sendo uma produção de investimento AAA, mostra muita qualidade técnica na elaboração de ambientes e de personagens, bem como oferece uma jogabilidade que atende muito bem ao estilo de jogo e que transmite a insegurança e a pouca habilidade acrobática de uma protagonista que se descobre mais corajosa do que esperava, mas que continua sendo uma pessoa comum em um universo completamente psicodélico.

Além de tudo isso, com uma campanha que gira em torno das 10 horas, tem uma duração adequada que evita o excesso de backtracking e, ao mesmo tempo, nos mantém sempre com a sensação de que estamos avançando e progredindo de modo consistente, sem atropelar as coisas. Com um design de ambientes e de puzzles robusto, talvez tenha faltado um pouco de inspiração nas batalhas contra os primeiros chefes, mas nada que afete o ótimo resultado final. Ao não apelar para as soluções simples, este jogo encontra seu modo de se destacar em um gênero em plena retomada. E isso é muita coisa.

The Chant foi lançado em 03 de novembro de 2022 para PC, PlayStation 5, Xbox Series X/S, Xbox One e PlayStation 4 e dispõe de legendas em menus devidamente localizados para o nosso bom e velho português brasileiro.

Paulo Roberto Montanaro

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