A Netflix pediu truco no compartilhamento de contas; mas o consumidor pediu seis.

8 de fevereiro de 2023
A Netflix pediu truco no compartilhamento de contas; mas o consumidor pediu seis.

Após anos de notícias, especulação e muita discussão, a Netflix anunciou no início do ano como faria para limitar o acesso a seus assinantes, acabando com o famoso compartilhamento de senhas, prática incentivada pela companhia, mas que não faz mais parte dos planos. A Netflix argumentava que tal medida ajuda a equilibrar as finanças da companhia.

É fato que, por ser o “top of mind” no assunto serviço de vídeos por streaming, além de ter sido uma das principais fontes de entretenimento durante a pandemia, a Netflix goza de carinho do público e sempre se mantém conectado a eles através de suas redes sociais. Mas também temos que levar em consideração que a concorrência apertou, e o modelo sofreu algumas perdas, como o um milhão de cancelamentos no ano passado.

Conforme vazou recentemente, no Centro de Apoio da Netflix, regras em relação ao possível bloqueio de contas apareceram. As regras envolviam o ato de que todos os utilizadores que iniciassem sessão com a conta de outra pessoa, deveriam conectar à rede Wi-Fi do proprietário. E pelo menos uma vez a cada 31 dias, esta pessoa deveria “reafirmar” o login, iniciando sessão no Wi-Fi do proprietário.

Um dos argumentos da Netflix é o de que mais de 100 milhões de usuários em todo o mundo usam seu serviço, usando contas de outras pessoas. Assim, tal iniciativa faria com que estas pessoas pagassem pelo serviço, aumentando a receita. No Brasil, o plano mais barato da Netflix custa 18,90, enquanto o mais completo custa R$ 55,90.

E em seus planos, há problemas questionados por muita gente. Pois o plano de R$ 18,90, além de oferecer comerciais entre as transmissões, ainda conta com resolução de apenas 720p, uma definição já abaixo do normal dos nossos dias, de TVs 4K cada vez mais populares. Para ter conteúdo em 4K, com direito a Dolby Atmos e Dolby Vision, aí é preciso bancar o valor completo, mesmo que não tenha interesse de dividir com quatro telas simultâneas.

Enquanto isso, as concorrentes oferecem suas assinaturas com conteúdo em 4K, logo nos planos mais básicos. Entretanto, se tais planos se mantém como estão, é porque o público aceitou esta oferta, mesmo com alguns pagando com alguma crítica.

Mas o tal recurso de “bloqueio de compartilhamento” se mostrou, além de polêmico, complexo. Pois faria com que pessoas que viajassem, e fossem proprietárias da conta, tivessem que entrar em contato para pedir um código, por sete dias. Ou seja, um intercambista que paga o serviço, e fosse passar seis meses em outro local, provavelmente teria problemas. Ou ainda, jovens que moram sozinhos em outras cidades, por motivos de estudos, teriam problemas também, mesmo pertencendo à família que paga o serviço.

A Netflix, com isso, “pediu truco”. Ou seja, tentou usar as cartas que tem em mãos, para ver se o “adversário”, ou seja, nós, aceitaríamos o pedido de truco ou devolvêssemos, pedindo seis. As cartas da Netflix, para isso, são as mais variadas. Uma delas é o fator “top of mind”. Ela construiu, com o passar dos anos, um legado de proximidade, sendo o “canal principal” das casas de hoje em dia, indo de produções próprias até os botões especiais nos controles remotos das TVs.

Outra arma que ela possui em mãos são as suas produções exclusivas, que se conectam a vários nichos e grupos específicos, indo dos fãs de produções estrangeiras, passando por grupos religiosos e atendendo também a comunidade LGBTQIA+, que rendeu uma construção de fidelidade e que, poderia ser determinante para que boa parte de seus clientes “aceitassem” as novas regras, em troca de entrega dos conteúdos que tais públicos consomem e gostam tanto.

Também é digno de nota a qualidade de seus serviços, e a facilidade de uso. Qualquer dispositivo, dos mais antigos aos mais modernos, conseguem acessar, sem nenhuma dificuldade seus serviços e seu catálogo. Mas, ao contrário do que ela esperava, o público não aceitou o seu pedido de truco não. O consumidor pediu seis.

A relação da Netflix com seu consumidor mais fiel segue boa. A companhia segue conversando bem com seus usuários mais próximos, entregando produções variadas e tendo boa recepção por parte destas pessoas em relação ao que oferece. Mas a ideia de bloquear o compartilhamento de contas, algo que a própria companhia incentivava no passado, não foi bem aceito.

Vale lembrar também que o compartilhamento de contas era tão “aberto”, que por muito tempo a invasão de contas, com pessoas indesejadas entrando nas contas da Netflix e assistindo em seus dispositivos conteúdo de forma tranquila, era muito comum. Algo simples, como a autenticação por dois fatores, não está disponível para assinantes até hoje.

Mesmo entre os “fãs da Netflix“, a ideia não foi bem recebida. E a razão é simples: se a Netflix não quisesse que as contas fossem compartilhadas, ela já deveria ter feito isso no passado, em seus primeiros dias como fornecedora de conteúdo por streaming. Ainda por cima, tal mudança hoje, apesar da justificativa de incentivar novas assinaturas, poderia ter o efeito oposto, com a rejeição aumentando e, com ela, uma debandada ainda maior de assinantes. O público aceitou várias coisas, entre cancelamentos e os aumentos nos últimos anos, é bom lembrar.

Vale lembrar que a concorrência tem apostado em iniciativas as quais a Netflix ainda não ofereceu uma solução adequada. Apesar da Netflix ter avançado no seu programa de games, HBO, Amazon e Disney, além da Paramount, lembrando também do Youtube, estão investindo forte em esporte, o que garante um forte peso na hora de “ter que escolher”.

A Netflix conseguiu se manter com um preço mais alto (ao menos no Brasil), pois ela sabe que seu assinante está disposto a pagar tal preço pelo seu conteúdo. Ela também conseguiu lidar com uma base fiel, mesmo cancelando séries queridas, e também focando em nichos, mesmo que tais produções provocassem rejeição de outras pessoas. Mas ela viu que não conseguiria mudar a mente de um consumidor que já foi educado de uma forma, de agir de outra. Ainda mais uma nova forma que “machucaria” ainda mais o bolso.

Nem preciso falar das centenas de processos que a companhia receberia no Brasil, junto ao PROCON, por parte de consumidores descontentes com a medida, além de muitos que reclamariam de potenciais problemas com algo que parece, além de tudo, ser bem burocrático. Isso aconteceria já no primeiro dia. Apenas ao considerar a ideia, muitos acabaram cancelando o serviço, antes mesmo de algo assim chegar em nosso país. Podem voltar? Claro que podem, mas estes já não são mais clientes tão fieis assim.

E isso sem contar com os possíveis problemas que tal recurso, uma vez implementado, poderiam gerar. A Netflix, com esta iniciativa, pediu truco, achando que o que tinha para oferecer justificasse uma aceitação, mesmo que contrariada, de seu público. Como o público, desta vez, pediu seis, então a companhia veio a público dizendo que a publicação das medidas “foi um erro”.

“Ontem, por um breve período, um artigo da central de ajuda contendo informações aplicáveis apenas ao Chile, Costa Rica e Peru foi publicado em outros países”, disse um porta-voz da Netflix. “Desde então, nós o atualizamos.” Tais informações já foram removidas do site de suporte da companhia. Isso significa que os testes para lidar com tais compartilhamento seguem, mas que a ideia, que mais parece ter sido “ventilada” para testar a reação de outros públicos.

E como bem vimos, a rejeição foi imensa. No Brasil, onde estamos, o valor para ter direito a mais telas e 4K, de R$ 55,90, é considerado salgado para muitos brasileiros, o que gera a famosa “divisão de contas”, com pessoas pagando a metade do valor, ou compensando assinando outros serviços. Acabar com isso, com certeza, não fará com quem “rache” 55,90 resolva pagar o valor “completo”. Por outro lado, o simples fato de oferecer resolução 4K, mesmo em planos básicos, já seria de muita ajuda, para muita gente.

Afinal, mesmo pessoas solitárias, que não querem dividir a conta com ninguém, são obrigados a pagar os 55 reais para ter a melhor qualidade. O que vai render o óbvio: a união com outras pessoas para dividiram a conta. Problema que seria facilmente resolvido entregando 4K a todos os planos.

Falei várias vezes e repito: se a necessidade é lidar com recuperação de grana, que a companhia use da criatividade que é sua marca característica, pois estamos falando de uma locadora de catálogo que apostou no streaming como forma de entrega de entretenimento, para driblar esta situação. Fazer o consumidor se sentir “culpado” por algo que ela mesma incentivou durante os anos não é a melhor das saídas.

O que nos deixa uma reflexão. Nós somos consumidores de entretenimento, não reféns. Jamais devemos aceitar o que for imposto, apenas em nome de “se manter dentro do trem do hype”. Devemos sim, curtir nossas séries, games e filmes preferidos, e acompanhar as novidades das empresas. Mas jamais devemos nos esquecer de que tais empresas não são “nossas amigas”, e sim corporações que fazem de tudo para lucrar. Desde que tal relação seja saudável, não há problema nenhum em manter essa conexão, mediante uma assinatura ou uma compra. Mas nunca, jamais, devemos aceitar tudo o que a indústria quiser impor, só porque “eles entregam o que eu gosto”.

Espero que a Netflix tenha entendido isso, e que siga entregando boas produções, e principalmente, que entregue um projeto de games tão bom quanto o que tem feito, para somar também nesta indústria. Mas que use da criatividade, ao invés da imposição, para cativar novos assinantes e manter suas receitas em dia.

Atualizando por aqui, Portugal, Canadá, Nova Zelândia e Espanha tiveram, de fato, o bloqueio efetivado. O argumento segue o mesmo: “investir em filmes e séries de grande qualidade”. Deixo abaixo, o comunicado oficial da Netflix a respeito, com o português de Portugal, local onde o recurso foi efetivado. Pelo visto, o truco foi levado pra frente. Agora é esperar para ver se o truco será mantido, e se chegará no Brasil.

Junior Candido

Conto a história dos videogames e da velocidade de ontem e de hoje por aqui! Siga-me em instagram.com/juniorcandido ou x.com/junior_candido

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