Cine Arkade – Tinnitus e a busca pelo respiro diante o desespero
O que você faria se, do nada, começasse a ouvir um zumbido insuportável e ininterrupto que o seguiria ao longo de toda a sua vida? Esta condição é conhecida como tinnitus e empresta o nome ao título do filme dirigido por Gregorio Graziosi e estrelado por Joana de Verona no papel de Marina, uma promissora atleta olímpica de saltos ornamentais que vê sua carreira ser interrompida quando, acometida pela doença, se vê impedida de competir em alto nível, deixando para trás sua treinadora e sua parceira de equipe, uma grande amiga que se sente abandonada no momento em que brilharia para o mundo.
O que poderia se tornar mais um drama açucarado de superação daqueles que já vimos aos montes na Sessão da Tarde acaba se mostrando, ao longo da jornada de nossa protagonista, um verdadeiro ensaio sobre a angústia que não pode ser compartilhada, sobre o desespero interno de uma pessoa que, impotente de si, está sozinha mesmo em meio à multidão. Seu namorado, que é também o médico pesquisador que busca uma solução para o problema, seu grupo de apoio com pessoas que sofrem do mesmo mal, seus colegas de trabalho, todos podem querer partilhar da dor, mas nenhum, mesmo os que sentem o mesmo, é capaz de estar lá por ela, para ela.
A condução da trama nos coloca sempre pela perspetiva de Marina, mas nunca em sua pele. Mesmo quando a competente (mas falha em certas passagens dialogadas) mixagem de som, que abusa das fontes como quem brinca com os sentidos recém-descobertos, nos emula os efeitos degradantes da condição, seria extremamente irritante despropositalmente que o filme mantivesse a mesmice do começo ao fim, o que soaria quase que um desarranjo técnico como se assistíssemos a uma fita VHS corrompida. Ao contrário, os altos e baixos, os cortes secos sonoros e o descompasso entre ambiência, vozes e ruídos estão o tempo todo lá para nos causar estranhamento, impacto, para nos lembrar o tempo todo que nada, para Marina, é feito para se acostumar, para se adaptar e seguir adiante. É uma vida de constantes interrupções abruptas.
O incômodo tem seus respiros, porém, e curiosamente eles são mais tranquilizadores quando Marina retorna para água como quem se retrai em um ventre. Grande nadadora que é pela profissão que escolhera, é na pele de uma sereia em uma atração artística onde encontrou um meio de seguir e de sobreviver. A pretensa paz, porém, ainda referenciada em várias inspirações orientais que vemos ao longo da película, para ela, não é um estado, é só um instante. O trabalho, incapaz de atrair interessados, não é dos mais bem sucedidos, algo que também poderia ser dito sobre seu relacionamento, e talvez a fantasia de sereia não seja mais artificial do que as máscaras que ela precisa manter o tempo todo para parecer sã. Inexoravelmente, a cauda de uma criatura e a roupa da normalidade cedem para desnudar aquela que Marina precisa ser.
Montagem, fotografia e direção de arte, todas vertentes premiadíssimas do longa, não se furtam do aspecto do incômodo. Invariavelmente, o vermelho intenso toma o lugar dos tons azulados propiciados pela água em um constante embate entre o aquietar e o agitar, entre a segurança e a violência. Enquadramentos pouco comuns no cinema de gênero desequilibram o espectador, nos levam para lugares onde não deveríamos estar, desnudando um universo cosmopolita preenchido de nada. Ao nos mostrar uma grande capital alucinada por um outro ângulo, o do quão vazia de sentidos ela pode ser, parece que estamos vislumbrando a casca, mas que em nenhum momento poderemos acessar qualquer coisa que seja um pouco mais significativa. Em meio a tudo, o mais absoluto nada.
O roteiro porém é um tanto quanto menos seguro e pouco tem a dizer depois do que traz em sua introdução. O desenvolvimento da trama que se apoia em uma sucessão quase episódica de eventos, se torna arrastado e repete temas dos quais já estamos bastante cientes. A parceira de saltos é talvez o sintoma mais grave, mas não o único, desta falta de coesão e tem suas próprias inquietações pouco exploradas e justificadas. Se, na desgraça que se abateu sobre ambas depois do diagnóstico de Marina, ela tem tão pouca culpa quanto a própria vítima, porque tanto ódio? Uma carreira despedaçada é, por si só, uma praga que se alastra, que devora o bom senso, mas a perspectiva adotada a relega a um antagonismo que, ao contrário do vimos em Cisne Negro (2010, de Darren Aronofsky), parece estar lá para favorecer o clímax, e acaba somente tirando (um pouco de) sua força.
Potente, Tinnitus certamente não é daqueles filmes pretenciosamente engrandecedores, sedentos pela lágrima do espectador, porque não se coloca como uma lição de vida, uma história com uma moral edificante. Visto como um estudo de personagem, é um filme que não pede licença, não implora pela paixão de quem o assiste, mas se dedica a, uma vez que chama a atenção de quem quer ouvir o que está sendo dito, provocar a reflexão sobre aquilo que está ali, constante, no cutucando, nos atiçando, nos tirando de um estado de equilíbrio. Tal como os instantes que antecedem o salto perfeito, estamos discutindo que tudo está sob controle, tal como planejamos, como ensaiamos, como sincronizamos, e mesmo assim, é evidente que esse controle não existe, porque como seres humanos, algo de inesperado sempre grita silenciosamente em nossos ouvidos. Se o tal zumbido é sua enfermidade, é a solidão o pior dos efeitos colaterais.