Análise Arkade: O Escudeiro Valente é pura criatividade, diversão e metalinguagem
The Plucky Squire é um jogo que chamou a atenção de todo mundo desde que foi anunciado. Muito por ser lindo e pela maneira interessante com que ele mistura 2D e 3D. O game chega hoje, a gente já jogou e te conta em primeira mão tudo o que você quer saber sobre as aventuras de Pontinho, O Escudeiro Valente!
Antes de qualquer coisa, quero deixar uma coisa bem clara: sei que isso talvez afete o alcance desta análise, mas eu só vou me referir ao jogo como O Escudeiro Valente daqui em diante.
Primeiro porque, apesar de ter um trocadilho sagaz, o nome original não soa tão legal. Segundo porque o trabalho de localização que a Devolver Digital realizou com este jogo é excelente. E terceiro porque eu aprecio muito esse movimento de localizar também os títulos dos jogos que anda surgindo, ainda que timidamente.
Pontinho e Enfezaldo
O Escudeiro Valente conta a história de Pontinho, um jovem escudeiro que é o principal personagem de um livro de mesmo nome. Graças à sua coragem, ele é muito querido por todos, não só por seu heroísmo, mas também por suas habilidades literárias: Pontinho também é escritor, e suas aventuras tornam-se livros que são lidos e comentados pelos quatro cantos do Reino de Mana.
Mas tem alguém que não gosta dele: o mago Enfezaldo. Cansado de ser o vilão que sempre é derrotado no final das histórias, ele acaba “quebrando a quarta parede” e descobre que todos são personagens de um livro. Então, ele passa a acreditar que, se tirar o Pontinho do livro, pode alterar o final da história — e talvez, se dar bem, para variar.
E é assim, chutado de sua própria história, que o Escudeiro Valente descobre que existe todo um mundo (o nosso mundo) fora das páginas do livro. Se quiser voltar de vez para seu Reino, recuperar seu posto de herói e frustrar os planos de Enfezaldo, Pontinho precisará passear por esses dois mundos — o 2D que existe dentro do livro, e o 3D, fora do livro — ao longo da maior e mais imprevisível de suas aventuras!
A trama do jogo é cativante, e a forma como é apresentada deixa tudo ainda mais charmoso: narrada em um delicioso tom literário (100% em PT-BR, com a voz poderosa de Mauro Ramos), a aventura de Pontinho, Batera e Violeta ganha contornos de um legítimo livro infanto-juvenil.
Saltando entre os mundos
O Escudeiro Valente é, na prática, um jogo de aventura e exploração, com puzzles, desafios de plataforma e um sistema de combate simples, mas eficiente. O jogo também possui diversos mini-games: de ritmo, tiro ao alvo, e muito mais.
Ainda que “o grosso” da narrativa se passe dentro do livro, não demora para o Pontinho poder saltar para dentro e para fora do livro por meio de portais mágicos. Com isso, o jogo se alterna entre 2D e 3D. Muitas vezes, vamos ter que buscar algo “fora do livro” para resolver uma situação lá dentro, e vice-versa.
Tipo assim:
Também é interessante como o mundo 2D não se limita às paginas do livro. Vez ou outra, um trecho de jogatina 2D pode acontecer em um post it, na estampa de uma caneca, ou em um papel de parede. E a fluidez com que entramos e saímos desses ambientes — sem um segundo de loading — é um detalhe técnico que merece ser mencionado.
Essas transições, sem dúvida, são o grande diferencial de O Escudeiro Valente. Ainda que já tenhamos visto a Nintendo brincando com mecânicas similares em jogos do Mario e Zelda, lá eram momentos mais pontuais. Aqui, essas transições são o cerne da experiência… o que nos leva a outro ponto interessante.
O Escudeiro Viajante e a metalinguagem
Como este é um jogo em que personagens saem de um livro e vão para o mundo real, é de se esperar que ele brinque com metalinguagem, certo? E ele de fato faz isso de formas muito criativas. Porém, acho que o elemento mais interessante, em termos de metalinguagem, é como isso é transformado em mecânicas de gameplay.
Explicando: Uma as primeiras coisas que encontramos “fora do livro” é um par de manoplas que nos permite mudar as páginas. Estando fora do livro, Pontinho pode folheá-lo, e voltar para páginas anteriores.
Posteriormente, vamos poder inclinar o livro, e quando fazemos isso, elementos 2D que estão dentro do livro podem deslizar/rolar lá dentro. Essa sinergia entre os mundos 2D e 3D é muito interessante, e permitiu que os produtores criassem situações bem “fora da caixa”, uma vez que nossas ações no mundo 3D interferem no mundo 2D (e vice-versa).
E quando você acha que isso é o máximo que o jogo vai fazer, em termos de metalinguagem, ele nos surpreende com palavras que podem ser “destacadas” para cumprirem novas funções.
O poder das palavras
Como alguém que gosta muito de ler, eu aprecio imensamente quando um jogo eletrônico utiliza verbos e palavras de forma consciente e criativa. Jogos onde usar “o poder das palavras” é essencial para o sucesso.
Talvez a franquia mais famosa a brincar com isso seja Scribblenauts. Mas, puxando de memória, lembro de outros dois games que fizeram isso: Haimrik e Typoman Revised (todos esses jogos têm reviews aqui no site, recomendo a leitura se esse conceito lhe agrada).
O Escudeiro Valente faz isso de formas muito inventivas: há certas palavras que podem ser retiradas das frases do livro, e realocadas em outras frases. Ao encontrar e utilizar essas palavras, você ganha poderes quase divinos.
Uma ponte quebrada pode voltar a ficar intacta ao trocarmos uma palavra por outro. Um bloco de concreto vira uma escada. Ou ainda, um bloco de madeira pode virar um bloco de queijo (?!). Trocando as palavras “dia” e “noite” de lugar, você controla a própria passagem do tempo, e isso tem implicações no ambiente e nas criaturas que nele vivem.
Agora, combine isso com nossa capacidade de manipular o livro, e você vai entender quão criativo é o time da All Possible Futures! Em alguns casos, você vai ter que sair do livro, voltar algumas páginas em busca da palavra que precisa, entrar no livro para pegá-la, sair do livro, avançar as páginas e só então poder formar a frase que precisa para avançar. É incrível!
Audiovisual
E sabe o que é melhor: O Escudeiro Valente consegue fazer tudo isso extremamente bem e ainda ter um valor de produção que o deixa acima dos “indies” convencionais. Produzido por uma equipe enxuta, mas muito talentosa, o jogo se dá bem tanto no colorido e cartunesco mundo 2D quanto no visual realista que existe fora das páginas.
A transição entre essas duas realidades, como você já viu, é instantânea. Existe algo de “mágico” em vermos um personagem 2D tornar-se 3D diante dos nossos olhos, e esse deslumbramento me acompanhou ao longo de todas as (quase) 15 horas que passei ao lado de Pontinho e seus amigos. O Escudeiro Valente é imaginativo, lúdico, único.
Tudo isso ganha ainda mais valor quando combinado a um departamento sonoro impecável, com músicas “grudentas” (de um jeito bom) e toda uma miríade de sons que enriquecem a experiência. Já falei da locução inspirada do Mauro Ramos, e ressalto aqui o excelente trabalho feito por ele e pela equipe de localização.
Isso, aliás, deve ser mais mérito da publisher Devolver Digital do que da produtora All Possible Futures, mas, de qualquer jeito, é louvável a excelência do trabalho feito aqui. “Enfezaldo” já é um dos meus nomes de vilões favoritos, mas que tal um jogo que tem um peixe chamado “Peixoto” e um mago chamado “Barbaluar“?
Além de tudo isso, O Escudeiro Valente está o tempo todo fazendo piadinhas metalinguísticas, trocadilhos e comentários espirituosos, e tudo isso é muito bem traduzido e adaptado.
O texto é de uma qualidade ímpar — o que é essencial, se considerarmos que, né, este é um jogo que se passa em um livro.
Conclusão
O Escudeiro Valente é uma joia rara dos videogames. Esbanjando criatividade e carisma, o título mistura 2D com 3D, puzzle com aventura, e a “cola” que transforma essa união em um todo coeso é um roteiro criativo e bem amarradinho, que abusa do humor e da metalinguagem para surpreender o jogador.
O Escudeiro Valente ousa ser criativo de um jeito que os videogames — cada vez mais derivativos e apegados a fórmulas que tendem a ser mais lucrativas — não são. Pelo menos não mais. Vez ou outra surge algum jogo fora da caixa, tipo Fez ou OneShot, mas eles são cada vez mais raros — o que os torna ainda mais preciosos.
Sem dúvida um baita jogo de estreia para um estúdio independente… e mais um grande acerto no catálogo da Devolver Digital, que parece estar com uma curadoria cada vez mais avançada no que diz respeito aos jogos que escolhe publicar (e localizar). Longa vida a essa parceria, e que venham mais jogos incríveis como esse!
O Escudeiro Valente está sendo lançado hoje (17/09), com versões para PC, Playstation 5 (versão analisada), Xbox Series X|S e Nintendo Switch.
Esta análise foi feita graças a uma cópia antecipada que recebemos da Devolver Digital.