Análise Arkade: a diversão flatulenta de South Park: The Stick of Truth (PC, PS3, X360)
Hora de adentrar as fronteiras da nem tão pacata South Park: na sequência você confere nossa análise completa do divertido RPG South Park: The Stick of Truth!
South Park é um dos desenhos mais desbocados e politicamente incorretos que já surgiu. Colocando todo tipo de palavrão e preconceito na boca de um grupo de crianças nem tão inocentes, Trey Parker e Matt Stone descobriram uma mina de ouro, pois a série está no ar desde 1997, atualmente em sua 17ª temporada.
De lá para cá, South Park já flertou com o mundo dos games algumas vezes, nenhuma delas muito bem sucedida. De jogos de guerra com bolas de neve (?!) até corridas de kart genéricas, um jogo inspirado (e ambientado) em South Park nunca havia dado muito certo.
South Park: The Stick of Truth também quase não saiu: durante a crise da THQ (que seria a distribuidora), a produtora Obsidian Entertainment demitiu boa parte de sua equipe, o que deixou o futuro do game incerto. Para piorar, após a falência da THQ, o game foi à leilão, o que deixou tudo ainda mais nebuloso. Felizmente, ele acabou nas mãos da Ubisoft, que manteve o que restou da Obsidian trabalhando no projeto, juntamente com o pessoal do South Park Digital Studios.
Por tudo isso, o game foi adiado mais de uma vez, e o fato de um projeto em andamento mudar de mãos durante seu desenvolvimento sempre é preocupante. O histórico da série nos games, os perrengues de produção, tudo isso serviu para deixar os fãs muito apreensivos.
Felizmente, todos estes problemas não afetaram a qualidade do game, e South Park: The Stick of Truth é desde já uma das melhores surpresas do ano, além de ser um RPG extremamente old school, fiel às raízes do gênero e bastante denso… à sua maneira. É como se tivessem alongado um episódio de South Park e jogado ali no meio uma boa dose de Dungeons & Dragons. E o resultado, por incrível que pareça, dá muito certo!
A trama do game parte de uma brincadeira de criança: Cartman, Stan, Kyle e Kenny reuniram toda a molecada da cidade para um MMORPG da vida real, que gira em torno do Cajado da Verdade (uma tradução educada para Stick of Truth) do título, que na verdade nada mais é do que um graveto. Porém, na cabeça da criançada, este galho inútil é um cajado de ouro repleto de poderes, o que faz com que os humanos e os elfos negros travem uma grande batalha pelo posse do artefato.
O legal é que, no meio desta guerra, todo mundo realmente entra na brincadeira e assume seu papel: Cartman é um poderoso Feiticeiro, Butters é um Paladino, Kenny é uma Princesa (?!), Kyle é o Rei dos Elfos, Craig é um Ladrão, e por aí vai… todos se entregam de corpo e alma aos seus papéis, e o fato de termos as mesmas vozes do desenho deixa tudo bem mais divertido.
No meio desta grande batalha, você assume o controle de uma criança nova, que acabou de se mudar para a vizinhança. Como em todo bom RPG, você é quem decide a cara do seu personagem, em um sistema de customização que é simples – afinal, obedece o padrão cartunesco do game – mas bem completo.
Não demora para você sair para conhecer as redondezas e fazer suas primeiras amizades. Aí você deve escolher a classe do seu personagem, entre quatro opções: Guerreiro (Fighter), Mago (Mage), Ladrão (Thief) e… Judeu (Jew) (?!). Como de praxe, cada clase possui suas próprias habilidades, bem como seus equipamentos e sua árvore de evolução.
Independente da classe escolhida, seu personagem será instruído por Cartman à nobre arte da magia… que, no mundo de South Park, manifesta-se na forma de peidos! Você aprenderá diferentes tipos de puns no decorrer do game, desde o poderoso “Urro do Dragão”, passando pela lendária técnica “Cheira Minha Mão” até o engenhoso “Traque Sorrateiro”, que é praticamente um peido stealth, muito útil para distrair seus inimigos.
Dominados os princípios da nobre arte da magia, você começa a receber missões – tanto principais quanto secundárias – e fica livre para explorar a cidade, fazer novos amigos e cumprir os mais variados objetivos. Você sempre estará acompanhado de algum outro personagem, e cada um possui alguma habilidade específica para ser usada fora de combate. Uma ou outra sidequest só começam se você estiver acompanhado de um determinado parceiro.
Na prática, South Park: The Stick of Truth é um RPG bem convencional. A South Park do game é essencialmente igual à do desenho animado, e você pode visitar todos os cantos da cidade, entrar em casas e lojas, quebrar vasos e abrir gavetas em busca de loot, conversar com pessoas aleatórias e entrar em batalhas. Além das fronteiras de South Park, temos perigosas florestas e ainda o longínquo Reino do Canadá, que também pode ser acessado… desde que você tenha um passaporte!
As sidequests do game são bem variadas. Seguindo o padrão “garoto de recados” típico dos RPGs, você invariavelmente terá que encontrar, buscar ou entregar encomendas para outras pessoas, e terá também um bom número de caçadas para fazer, todas envolvendo as criaturas mais bizarras, como a temível Aranha Peidorreira Canadense. Porém, temos missões diferenciadas, como ajudar Al Gore, encontrar Jesus, espancar mendigos e muito mais.
E se você acha que isso é o máximo que o game vai fazer, está redondamente enganado: a busca pelo poderoso Cajado da Verdade é salpicada de momentos nonsense onde você encontra aliens (devidamente equipados com suas sondas anais, claro!), guerreiros mongóis liderados por Genghis Khan, gnomos ladrões de cuecas, zumbis nazistas e muitas outras bizarrices.
Aliás, fica a dica aos puritanos: se você já assistiu a 5 minutos de qualquer episódio de South Park, sabe que o humor do desenho vai do nonsense ao bizarro, passando por temas polêmicos como aborto, racismo e xenofobia, tudo temperado com toneladas de xingamentos, palavrões e peidos.
TUDO ISSO está presente no game em doses cavalares, e existem missões que te colocam em lugares estranhos e situações escrotas para cumprir objetivos, no mínimo, nojentos. Jogue por sua conta e risco, sabendo que vai ver, ouvir (e fazer) coisas bizarras e potencialmente ofensivas. Este é um game +18 que traz todo o besteirol do desenho para o mundo dos games.
Bom, mas se a exploração e as missões bebem na fonte dos RPGs tradicionais, as batalhas – por turnos! – deixam tudo ainda mais old school. Você controla uma dupla de personagens durante os confrontos, que são bem bacanas e contam com muitos ataques especiais, magias, invocações e alterações de status.
A jogabilidade dos combates é relativamente simples: em um menu você escolhe a ação que quer realizar (entre itens, ataques, magias, invocações e habilidades especiais), seleciona seu alvo e pronto. O ataque comum da maioria dos personagens envolve um pequeno quick time event ao estilo Paper Mario: para realizar um ataque perfeito, você deve pressionar o botão correto na hora em que a arma do seu personagem brilhar.
As magias – peidos – envolvem um pequeno mini-game, onde você deve utilizar as duas alavancas analógicas do controller para acertar a “frequência” dos gases, e coisas do tipo. As tradicionais alterações de status foram adaptadas para o estilo South Park: “poison” virou “nojo” (com o agravante que o personagem enojado não pode consumir itens de cura, pois está vomitando), e temos outras variações, como o “ficar puto”, que é uma espécie de “berserk”.
Aliás, fique ligado pois é possível atacar os inimigos – com armas de arremesso e peidos – mesmo antes da batalha começar, o que permite que você entre em batalha já com uma vantagem. Utilizando elementos do cenário como armadilhas, você pode até evitar certas batalhas, eliminando os inimigos antecipadamente. Aliás, tome nota de uma dica: sempre que houver fogo em algum ponto do cenário, não hesite em peidar ali, pois a explosão resultante geralmente mata inimigos ou revela passagens secretas.
Seja derrotando inimigos, explorando os cenários ou comprando em lojas, você irá encontrar diversas armas, trajes e outros itens. Além de customizar a aparência do seu personagem, os equipamentos ainda podem ser melhorados com “correias“, permitindo que, por exemplo, seu ataque físico cause mais dano, ganhe propriedades elementais ou de alteração de status. De mesmo modo, elmos e armaduras podem ser melhorados com “remendos“, que podem melhorar sua defesa e até mesmo atribuir status bem úteis como ressurreição ou resistência à determinados status. Equipamentos mais poderosos demandam que você esteja em um certo level para serem utilizados.
Além dos itens realmente úteis, equipamentos e dinheiro, você irá coletar toneladas de tranqueiras aleatórias, que convenientemente vão parar em uma área chamada “Lixeira” do inventário. Entre revistas, consolos, pelos pubianos, roupas íntimas, bonequinhos, papel rasgado e outras coisas inúteis, aqui os fãs irão encontrar toneladas de referências ao seriado, todas com descrições hilárias. E você ainda pode vender tudo isso para levantar uma grana.
E já que falamos no inventário, o menu do game merece uma menção honrosa, pois é muito legal! Ele é mais ou menos como um Facebook (imagem abaixo): seu “perfil” fica no canto esquerdo, e cada personagem que você encontra/ajuda te adiciona como amigo. Rolam trocas de mensagens, curtidas e trolladas, como na rede social real. O mapa, suas missões e toda a parte de upgrades estão incorporados neste quase-Facebook do game.
O visual do game como um todo é idêntico ao do desenho. Jogos antigos de South Park inventaram de levar para o universo 3D um desenho que é totalmente 2D, o que não funcionou direito. Aqui não temos esse problema. Tudo é 2D, e os personagens andam e correm “quicando” como no desenho. A diferença entre cutscene e gameplay é imperceptível, e é bacana ver que seu personagem aparece nas cutscenes e na foto do perfil com as roupas, acessórios e equipamentos que está usando no momento.
No departamento sonoro, o game também dá show: todos os excelentes dubladores do desenho animado reprisam seus papéis aqui, então a associação é imediata. Os diálogos são ácidos e besteirentos como na TV, e a trilha sonora recicla alguns temas da série (e do filme), mas também investe em composições próprias muito bonitas, que parodiam temas épicos de outros RPGs e contam com coros, arranjos de flauta e outros instrumentos “élficos”.
A Ubisoft ainda merece os parabéns pelo ótimo trabalho de tradução: não temos dublagens em português (convenhamos, o desenho dublado é bem ruim), mas todo o jogo está legendado, e todos os menus estão em nosso idioma. Não houve censura: cada palavrão e cada blasfêmia foram traduzidos ou adaptados com muita fidelidade. Então, fica a dica: não jogue quando a família estiver toda reunida na sala.
Neste ponto também entra o humor. Este é um dos jogos mais engraçados que joguei nos últimos tempos. Obviamente, seu humor é ácido, carregado de todas as besteiras e temas polêmicos já mencionados. Mas isso é South Park, então não poderia ser diferente!
Também são dignas de nota as piadas e referências a outros games, figuras importantes e cultura pop em geral. O personagem mudo e desmemoriado é só a primeira “homenagem” aos clichês dos games, pois o jogo tira um sarro descarado de Skyrim e Bioshock (quem jogou vai entender), mas ainda sobra espaço para zoar com muitas outras coisas, como Youtube, redes sociais, Matrix, celebridades, e outras convenções do mundo dos games e do gênero RPG.
A campanha principal do game pode durar entre 10 e 15 horas. É pouco para os padrões de um RPG, mas como esse é um RPG meio fora dos padrões, talvez isso não seja um problema, pois mesmo assim o jogo supera as expectativas. É como se ele condensasse a essência dos RPGs tradicionais em uma aventura mais curta, direta e zoada, saída direto da série animada.
Como nem tudo são flores, um ponto que pode ser apontado como negativo é a limitada progressão do personagem. Talvez pelo jogo ser curto, a Obsidian estabeleceu que o level máximo que seu personagem pode alcançar é 15. O problema é que eu já estava no level 15 ali pelas 8 horas de jogo – e com bons equipamentos e boas armas -, o que acabou deixando o restante do game um pouco fácil demais. Sem contar que toda a XP coletada posteriormente não serviu mais para nada.
Alguns quick time events bem específicos também são um pouco frustrantes. Nem sempre as instruções na tela são claras, de modo que você acaba usando a milenar técnica da tentativa e erro. Pesquisando pela internet, vi que um destes QTEs aparentemente tem um bug no PC, mas na versão PS3 (que foi a que joguei), não tive problemas.
South Park: The Stick of Truth é um jogo que respeita o gênero RPG ao mesmo tempo em que tira sarro dele. Divertido e boca suja, o game é profundo do seu próprio jeito, e oferece uma experiência tipicamente old school aliada ao carisma e ao humor escrachado da série animada.
Os fãs obviamente vão se divertir mais por sacar as referências e easter eggs que fazem alusão ao desenho (alguns troféus e conquistas também), e pelo fato do game ser praticamente um grande episódio interativo. Mas mesmo quem não acompanha a série sem dúvida vai se divertir com o game, suas piadas e suas referências à cultura pop em geral.
No fim das contas, South Park é um RPG competente, bem humorado e divertidíssimo. Caprichado em praticamente todos os sentidos, o game é uma aula de como algo pode ser levado de uma mídia (TV) para outra (games) de maneira competente. Como a série Arkham fez com Batman, The Stick of Truth é a melhor e mais fiel transposição do universo de South Park ao mundo dos games!
(No jogo os palavrões não são censurados na legenda, como no trailer acima.)
South Park The Stick of Truth foi lançado no dia 4 de março, e está disponível para PC, Playstation 3 e Xbox 360.