Arkade Comics: Conversamos com Sidney Gusman sobre a adaptação em português de Fax de Sarajevo
Adaptar uma obra já não é uma tarefa fácil. E tudo fica ainda mais difícil quando sentimentos tão próprios de uma situação tão local precisam ser transmitidos a leitores de outras culturas e que não encararam os mesmos problemas. E foi exatamente isso o que aconteceu com Fax de Sarajevo, obra originalmente lançada em 1996, mas que na Bienal do Livro deste ano contou com o lançamento em português, após adaptação de Sidney Gusman.
Sidney, que adaptou para o português a HQ, é editor da Mauricio de Sousa Produções, sendo assim, responsável pelas histórias da Turma da Mônica. Além disso, é editor-chefe do Universo HQ, site especializado em quadrinhos, sendo premiado muitas vezes com o Troféu HQ Mix, reconhecimento dado aos quadrinistas brasileiros e suas obras.
Fax de Sarajevo foi feito por Joe Kubert, uma lenda dos quadrinhos, que trabalhou com Batman, Flash, Gavião Negro, Motoqueiro Fantasma, entre outros heróis. Kubert aqui narra em quadrinhos as experiências vividas pelo editor Ervin Rustemagić e sua família no Cerco de Sarajevo, em abril de 1992. Na ocasião, soldados sérvios atiravam sem dó em quem tentasse deixar a cidade, seja por patrulhas, ou com franco atiradores espalhados pelos prédios.
Além disso, Rustemagić teve sua casa bombardeada e perdeu todos os seus bens, o que incluia uma coleção original de quadrinhos do mundo todo, e que fez com que editor e sua família buscassem sobrevivência nos abrigos da cidade já devastada. A única maneira de comunicação que ele encontra com o mundo exterior é o fax e com eles, vai narrando o horror da guerra e o genocídio que ocasionou a morte de milhares de bósnios.
Kubert foi um dos que recebia os faxes direto de Sarajevo, e decidiu narrar os relatos e imagens enviadas em forma de história em quadrinhos. A obra narra os dois anos e meio de privações e medo que Ervin, sua família e muitos outros sérvios tiveram que encarar, durante a fuga para a Eslovênia. A obra rendeu a Kubert prêmios como o Eisner, Harvey e também no Festival Internacional de Angoulême, na França.
Conversamos com Sidney Gusman sobre a adaptação e suas dificuldades:
- Qual foi o maior desafio para adaptar uma obra tão complexa e pessoal para o nosso idioma e o nosso público?
Bom, o principal desafio de adaptar uma obra premiada e muito conhecida no mundo inteiro é preservar a essência da versão original e, ao mesmo tempo, manter as características do nosso idioma, de acordo com o que o autor conta na história.
Foi muito interessante, porque, em alguns momentos, o texto em inglês cita trechos ligados à Guerra que tive que achar um termo parecido ou similar que fizesse sentido para quem estava lendo em português.
No fim das contas, o resultado ficou muito legal e que conversa com o leitor brasileiro da mesma maneira a versão original faz nos Estados Unidos e a versão portuguesa faz com os leitores em Portugal – para citar as duas que conheço.
- A história tem um teor extremamente pessoal, tanto de quem viveu os eventos como de quem escreveu a história. Vendo isto tudo “de fora”, como você conseguiu observar esta sensibilidade e levar a história ao leitor, da maneira mais purista possível?
Apesar de o Joe Kubert ser uma testemunha não ocular da história – ele narrou os fatos baseados nas mensagens que recebia do Ervin via fax –, é justamente esse ponto, quando se faz uma adaptação. Além de preservar o original, você tem que traduzir a mesma carga emocional que o texto está mostrando.
Eu não posso ser frio numa cena que mostra o personagem desesperado, por exemplo. Isso é trabalhado especialmente em intervenções, broncas, xingamentos e situações de surpresa. Você precisa ter essa sensibilidade para passar ao leitor de uma maneira que ele se enxergue naquela situação.
O livro narra uma situação terrível, tudo dava errado para a família do cara e tem horas que o leitor para e por um momento chega a pensar que aquilo não é ficção e sim uma história real. Ou seja, será a chance de um “final feliz” diminui demais.
- Ao adaptar a história, passou em alguma vez em sua mente a possibilidade de algum dia contar alguma história de outra pessoa, em caráter semelhante ao de Fax de Sarajevo?
Eu trabalho com quadrinhos há muito tempo, então já adaptei muitas obras, tanto ficcionais, quando baseadas em acontecimentos reais.
Curiosamente, há mais de dez anos, fiz uma adaptação da obra Gorazde – Área de segurança do Joe Sacco, que é um jornalista quadrinista, que fez o livro baseado nas situações que ele vivenciou na Guerra da Bósnia. A do Joe Kubert é igualmente impactante, mas o que diferencia as duas é que a do Kubert foi criada a partir das mensagens que recebia de outra pessoa, já a do Sacco se trata de situações que ele mesmo presenciou, então é ainda mais sofrida.
De qualquer maneira, transpor a emoção de outra pessoa para outra linguagem, é sempre um desafio. Por isso, procuro sempre ser o mais fiel possível ao que o autor originalmente fez.
- Os quadrinhos são uma mídia que conta com poucas adaptações de fatos da vida real, se compararmos com o cinema ou os livros. Só para citar um exemplo, além de Fax de Sarajevo, Gen – Pés Descalços é uma história especial sobre a II Guerra. Acredita que exista espaço para mais “vida real” nos quadrinhos, especialmente contando as tristezas da guerra como esta obra que adaptou?
Os quadrinhos passaram a abordar mais as historias autobiográficas nos últimos dez quinze anos. Então, é um engano dizer que o universo dos quadrinhos só tem coisas ficcionais. A questão é que infelizmente isso não tem a mesma divulgação e dimensão do cinema e da televisão.
Tem muitos quadrinhos baseados nas experiências dos próprios autores, além desses citados, tem Maus – A história de um sobrevivente, do Art Spiegelman, que tem uma história fortíssima sobre a Segunda Guerra Mundial e foi o único quadrinho a ganhar o Prêmio Pulitzer de Jornalismo. Há também Fun Home, da Alison Bechdel, Cicatrizes do David Small, Retalhos do Craig Thompson, várias obras do mestre Will Eisner e muitos outros.
Existem quadrinhos autobiográficos de diversos gêneros e é algo que está ganhando cada vez mais espaço, inclusive no Brasil. Assim, podemos nos preparar que ainda tem muita coisa boa sendo produzida para todos os gêneros, públicos e gostos.
Fax de Sarajevo está disponível pelo preço de R$79,90 e é editado pela Via Leitura. Conta com 208 páginas e sua edição é capa dura. Esta é a primeira edição em português da HQ, lançada originalmente em 1996.