Além do Review Arkade: Cuphead e a crescente “moda” dos jogos difíceis
Cuphead mal foi lançado e já é um fenômeno. Além de seu visual incrível, o game também andou chamando a atenção de todo mundo por conta de sua dificuldade. Mas fora tudo isso, ele é um bom jogo? Vem descobrir com a gente!
Jogando com o tinhoso
Cuphead conta a conta a história dos irmãos Cuphead e Mugman, que andaram apostando com o demônio no Devil’s Casino e perderam. Para não terem que entregar as próprias almas, eles tentam uma barganha, e o diabo lhes pede que lhe tragam as almas de outros devedores… que por acaso são os chefes que você irá enfrentar no game.
E é basicamente isso, uma história simples, apresentada como se fosse um conto de fadas, começando até com “Era uma vez”. Daí para frente, prepare-se para sofrer, pois é óbvio que os inimigos não irão querer lhe entregar suas almas de mão beijada, não é?
Chefes, muitos chefes
Conforme explora o pequeno arquipélago onde vivem os heróis, você vai perceber que existem basicamente 2 tipos de fases em Cuphead: as fases do tipo Run n’ Gun e as batalhas contra chefes.
No primeiro caso, ele até lembra Mega Man e outros games do tipo que misturam plataforma com tiro. Simplesmente siga para a direita eliminando inimigos e evitando obstáculos. Ao final, enfrente um chefe.
Já as batalhas contra chefes são o grande destaque do jogo: enormes, estilosos e muito apelões, eles irão te atacar das mais variadas maneiras, transformando-se em outras coisas durante combates que são constituídos de diferentes etapas, e obviamente vão ficando mais e mais difíceis.
A simplicidade do gameplay
Para sobreviver, Cuphead dispara diferentes tipos de tiros diretamente de sua mão, e conta também com ações básicas de pular e se agachar. Ele também possui um dash — que pode ser melhorado e ganhar novas funções –, e um movimento de parry que é basicamente uma “quicada” em objetos e projéteis específicos.
Conforme acumula moedas de ouro, você pode passar na lojinha e dar uma incrementada no seu arsenal: novos tipos de tiros, novas funções para o dash e habilidades especiais podem ser compradas; mas nada consegue deixar o jogo “fácil demais”, tudo são apenas ferramentas, que deverão ser bem usadas pelo jogador.
Aí é que reside o real segredo de Cuphead: seu gameplay é simples, mas rápido e funcional, de modo que o que o jogo demanda é muita habilidade do jogador para evitar todas as armadilhas, tiros e perigos que lotam a tela praticamente o tempo todo. Não há espaço para erros, nem para confiar na sorte; seu sucesso só depende de você.
Mas afinal, ele é tão difícil assim?
Sim e não. Cuphead é sim um jogo difícil pra caramba, mas não é impossível. Ele é, antes de mais nada, um jogo que testa nossos reflexos, e nos obriga a decorar padrões de comportamento dos inimigos.
É praticamente impossível derrotar um chefe de primeira simplesmente porque você não sabe como ele se comporta. Porém, conforme você vai morrendo e tentando de novo, começa a enxergar os padrões de comportamento dos inimigos, e vai adaptando suas reações ao que eles fazem.
Acho que a percepção de dificuldade envolve muito mais a “bagagem” de cada jogador do que a dificuldade do jogo em si. Gamers da minha geração — que já passaram dos 20 e muitos ou dos 30 — provavelmente cresceram jogando Mega Man, Contra, Ghouls n’ Ghosts, Castlevania, Battletoads, Metal Slug e muitos outros games infernalmente difíceis. Cuphead tem muito em comum com estes jogos, por isso quem já está “calejado” acaba não achando o jogo tão desesperador assim… e consegue até ousar e tentar coisas como o ranking de P (de Pacifista), ao encarar uma fase sem atirar em nenhum inimigo.
Talvez isso seja mais culpa da indústria do que dos jovens gamers, mas é fato que os jogos foram ficando mais fáceis com o passar do tempo. Coisas como checkpoints, saves automáticos e energia que se regenera sozinha não existiam nos anos 80 e 90. Até mesmo tutorial era algo bem raro de se ver. Fomos moldados por jogos mais difíceis, e por isso encaramos com mais serenidade jogos atuais cuja proposta é justamente serem difíceis como “os de antigamente”, como Dark Souls, Super Meat Boy e Cuphead.
Aliás, acho que algumas coisas que realmente tornam Cuphead difícil são a total ausência de checkpoints e itens de energia. Morreu, já era, vai ter que começar a fase/chefe do início. O lado “bom” é que tanto as fases quanto os confrontos com os chefes mal duram 3 minutos, então o ato de refazer tudo nunca é realmente penoso.
Isso também agrega longevidade ao game: se conseguíssemos passar de cada fase/chefe de Cuphead de primeira, o jogo mal duraria 40 minutos. Porém,temos que rejogar cada fase diversas vezes, e isso dá uma baita esticada no jogo e, de quebra, vai condicionando o jogador a dar o seu melhor.
Não estou querendo bancar o fod*o, até porque eu apanhei bastante em Cuphead. Só para sair da primeira ilha foram mais de 70 vidas. A questão é: as derrotas não foram realmente frustrantes (ok, algumas foram), pois eu sempre saía sabendo um pouco mais sobre o inimigo. Como ele vai atacar, no que ele vai se transformar. E isso tornava a próxima tentativa — e a seguinte, e a que veio depois dessa — mais interessante.
Chega a um ponto em que você já “decorou” tão bem o comportamento do chefe que consegue passar sem sofrer nenhum dano daquele desgraçado que te matou incontáveis vezes nos últimos 20 minutos. Cuphead é um jogo que te obriga a ser melhor, e só depende de você conseguir isso.
E aí entra o verdadeiro mérito dos Souls-like e de outros jogos que se tornaram famosos por sua dificuldade: a satisfação que sentimos ao derrubar o desgraçado que estava nos surrando é imensa, uma sensação de superação e dever cumprido que poucas coisas além dos videogames conseguem nos proporcionar.
Parte da redescoberta de que games podem ser difíceis (pois parece que o público e os estúdios haviam se esquecido disso) é a forma como games como Cuphead e Dark Souls empregam a dificuldade. Eles usam dificuldade como um recurso, não como um obstáculo. A dificuldade é o desafio em si, o que faz com que você supere a si mesmo. Não um obstáculo que te impede de seguir para a próxima fase.
Por isso, repito: Cuphead é difícil sim. E bastante. Mas não é necessariamente mais difícil que Mega Man, Contra, Battletoads, e tantos outros jogos. Talvez quem não jogou tudo isso esteja arrependido por ter embarcado no trem do hype, mas acho que desde o começo ficou meio óbvio que Cuphead não seria um passeio no parque, né? Este é um jogo pra galera das antigas, afinal, ele traz elementos “retrô” em cada frame.
Audiovisual
Cara, que jogo lindo! Totalmente inspirado em animações das décadas de 20 e 30 e animado 100% à mão, Cuphead é uma obra de arte. Seu traço lembra os primórdios da Disney com uma pitada de coisas nem tão antigas, como Gato Felix. Há uma quantidade absurda de elementos se mexendo na tela o tempo todo, e mesmo personagens que estão só “fazendo figuração” ao fundo possuem uma quantidade obscena de quadros de animação.
Muito mais do que bonito, Cuphead é carismático: é simplesmente impossível não gostar dele já nos primeiros minutos. Seu jeito inocente, colorido e infantil é cativante, e é engraçado como essa fofura retrô contrasta com a dificuldade altíssima do jogo. É tipo um jogo para marmanjos com cara de um jogo para crianças.
A trilha sonora segue a mesma pegada, com músicas instrumentais super animadas, que também parecem saídas diretamente dos cartoons de décadas atrás. Do jazz ao samba, o jogo sempre acerta na mosca recriar o feeling de uma animação antiga. Acho que desde Rayman Legends eu não via um jogo 2D tão bonito, polido e coerente com sua proposta. Até os chiados de som e imagem estão presentes, para deixar o jogo realmente com cara de “velho”!
Conclusão
Cuphead é um jogo extremamente desafiador, produzido com um capricho absurdo por um pequeno mas competente estúdio que certamente é fã de desenhos e jogos antigos. O game é uma nostálgica declaração de amor a tudo isso, e cada frame dele merecia ser emoldurado e colocado em uma parede.
Frustrante para uns, viciante para outros, o que temos aqui é um nível de desafio que não vai agradar a todos. O “gamer Nutella” dificilmente vai ter a fibra e a perseverança necessárias para prosperar, mas o “gamer raiz” sem dúvida vai encontrar na dificuldade um estimulante, sabendo que está aprendendo e melhorando o tempo todo.
No fim das contas, acho que este é um dos charmes dos jogos difíceis: a gente sai com aquela sensação gostosa de dever cumprido, mas principalmente com a sensação que melhoramos, que nos superamos. Cuphead é um teste de perícia e habilidade, mas ele também é um exercício de paciência e determinação dos bons. Um dos melhores jogos de 2017, em todos os sentidos.
Cuphead foi lançado em 29 de setembro, com versões para PC e Xbox One. O jogo está 100% em inglês.