Além do Review Arkade – Vamos conversar sobre Life is Strange?
Certos jogos extrapolam a simples diversão e nos colocam para pensar. Você certamente já jogou algo assim. Não precisa necessariamente ser algo que “exploda a cabeça da gente ” como um Bioshock por exemplo. As vezes, temas nem tão grandiosos — até bem mundanos, eu diria — se abordados de forma competente, podem abrir nossos olhos e nos surpreender.
Foi assim com Life is Strange, game episódico da DontNod Entertainment que foi lançado ao longo de 2015, e nesta semana que se passou, ganhou uma edição limitada em disco, além de receber um bem-vindo patch que adicionou (entre outras coisas), legendas em português ao jogo.
No ano passado, acabamos não tendo tempo para abordar este game com a atenção que ele merecia (mas ele entrou em nossa lista de melhores do ano). Simplesmente porque o formato episódico complica um pouco a nossa vida, afinal, fica difícil falar da história do jogo sem dar spoilers, e em jogos como este — em que a história é o que mais importa — a última coisa que queremos fazer é soltar um spoiler que estrague a experiência de outras pessoas.
Neste texto, quero abordar alguns elementos que fazem de Life is Strange um jogo único e corajoso. A ideia aqui não é soltar spoilers gratuitos nem debater a fundo a excelente trama do game. Queremos simplesmente bater um papo sobre a capacidade que este jogo tem de cativar o jogador abordando temas que não são grandiosos, mas nem por isso são desinteressantes.
Apesar disso, teremos spoilers leves no texto (mais sobre assuntos e temas do que sobre o enredo em si), então fique avisado e leia por sua conta e risco. 😉
Gente como a gente
Max Caulfield é a protagonista de Life is Strange. Ela é uma garota de 18 anos que deixou sua casa e sua família em Seattle para estudar Fotografia na renomada Blackwell Academy, na cidade fictícia de Arcadia Bay.
Embora Max tenha recebido (ou descoberto?) um dom extraordinário — ela é capaz de “rebobinar” o tempo, revisitar memórias através de fotografias e até ir para outras realidades, moldadas por diferentes acontecimentos –, ela é sem dúvida a personagem mais humana que vi em um game nos últimos tempos.
Veja bem: eu sou um cara de 29 anos sem qualquer habilidade extraordinária (na verdade, eu faço ótimas panquecas e toco bateria “ao contrário” por ser canhoto, mas acho que nada disso pode ser considerado um superpoder). Maxine é uma estudante de 18 anos capaz de viajar no tempo. Não há muita coisa em comum entre nós. Mas, ainda assim, a identificação com ela foi natural, simplesmente porque ela é “gente como a gente”.
Max encara problemas universais pelos quais todo mundo que já foi adolescente certamente já passou: ela não tem muitos amigos no colegial. Ela não é lá a garota mais popular da escola. Ela sofre bullying. Ela não acredita em seu próprio talento como fotógrafa. Ela é meio desligada, fala sozinha e não presta atenção em tudo o tempo todo. Até a temida friendzone está presente aqui, ainda que neste caso, ela não seja a vítima.
Já no primeiro episódio do jogo, há um momento que ilustra muito bem o isolamento social de Max. Ao andar pelos corredores da Blackwell, ela coloca seus fones de ouvido e liga a música para “isolar-se” de um ambiente no qual se sente deslocada. Meu gosto musical não tem nada a ver com o dela, mas isso é algo que eu já fiz muito (e ainda faço, na real).
Abaixo segue um vídeo deste momento tão simples, mas tão representativo de como é Max Caulfield:
O jogo já me ganhou por aí, mas para quem não é assim, existem outras facetas da personagem: há a Max bisbilhoteira que pode fuçar as redes sociais dos amigos, a Max amiga, que está sempre pronta para oferecer conselhos e conforto, a Max vingativa, capaz de ir até as últimas consequências para se vingar de algum desafeto, a Max geek que manda torpedos, usa emojis e é cheia de referências, a Max poser que tira “selfies” no espelho, a Max introspectiva que curte simplesmente sentar e apreciar a paisagem enquanto pensa na vida… São tantas “personas” diferentes que é impossível a gente não se identificar.
O mais legal é que tudo isso só torna Max ainda mais “comum”. Nós somos assim. Ninguém é alegre o tempo todo, nem triste o tempo todo. Somos feitos de sentimentos, emoções. Todo mundo já sentiu medo, já teve raiva, já foi injustiçado, já passou por uma crise de ciúme, já falou sozinho, já viu algo que não devia, já mentiu (ou encobriu uma mentira) para defender alguém, já teve aquele(a) melhor amigo(a) que parecia que era para sempre… No fundo, #SomosTodosMax.
Já vi gente torcendo o nariz para o fato da protagonista de Life is Strange ser uma “adolescente branca norte-americana de classe média”, mas não entendo porque isso precisa ser um problema. Seja um espartano fortão, um supersoldado empunhando uma metralhadora ou um space marine de armadura, no fim das contas todos só querem “salvar o dia”, cada um à sua maneira, ainda que nem sempre isso seja possível, ou pelo menos não sem consequências.
Ainda que se encaixe em alguns estereótipos, Max é o avatar de uma fase intensa e confusa pela qual todos passamos: na adolescência não somos mais crianças mas ainda não somos adultos, estamos delineando nossa personalidade, começando a buscar nossos sonhos e precisamos lidar com paixões, decepções, emoções e mudanças que podem (ou não) marcar nossas vidas para sempre. Parafraseando o título do game, se a “vida é estranha”, a adolescência é o ápice dessa estranheza.
Um mundo (sur)real
Apesar de todos esses atributos que fazem com que Max seja mais uma pessoa do que uma personagem, ela tem esse dom incrível de viajar no tempo, o que a coloca em situações um pouco diferentes das que estamos acostumados. Apesar disso, mesmo em seus momentos mais alucinados e surreais, Life is Strange mantém uma proximidade com o “mundo real” que chega a ser dolorosa.
Por ser um jogo “antenado”, ele traz muitas coisas que vimos ou ainda vemos acontecendo no dia-a-dia, sejam elas boas ou não. Max tira “selfies”, a aluna “bonitinha e descolada” se joga para cima do professor boa pinta, o garoto de família rica é o babaca que faz bullying com todo mundo e é protegido pelo pai, a “adolescente rebelde” arruma problemas com o novo marido da mãe…
E há ainda temas mais cabeludos sendo tratados com coragem e sensibilidade pelo jogo: um dos dramas dos primeiros episódios envolve o vazamento de um vídeo íntimo de uma das alunas da Blackwell. Algo que — não deveria — mas se tornou banal em tempos de “ZapZap”, Snapchat e outras redes sociais mobile.
Como na vida real, as pessoas nem se incomodam com as circunstâncias do fato, simplesmente vão compartilhando e hostilizando a garota, sem sequer parar para pensar “e se fosse minha filha? minha irmã? Minha namorada?”. Esta é uma situação que, infelizmente, é recorrente pelo mundo afora. E aqui, ela é exposta de maneira incisiva, porém delicada, para te fazer pensar nas consequências.
Não há segunda chance
Obviamente, a pobre jovem não consegue lidar bem com isso, e entra em uma depressão severa. Boa parte de sua família tradicional e conservadora não demonstra nada além de vergonha e desapontamento ao saber do vídeo, o que apaga de vez o brilho nos olhos desta que era até então uma das melhores alunas da Blackwell.
Assim, desamparada, magoada e hostilizada, a jovem — bonita, talentosa e com toda a vida pela frente — tenta o suicídio. E, claro, é Max quem precisa tentar evitar esta tragédia. Porém, mesmo com seus poderes incríveis, aqui ela não pode “rebobinar” o tempo, e deve simplesmente confiar na força da amizade para salvar a amiga.
Este é um momento extremamente poderoso do game. Como em todo adventure do tipo, a história vai continuar independente da vida da jovem ser salva ou não. Porém, o peso da responsabilidade que recai sobre os ombros de Max — e do jogador — é esmagador, pelo simples fato de que esta é uma situação brutalmente real. E, como na vida real, aqui não há segunda chance.
Ok, talvez poucos de nós tenhamos subido ao topo de um prédio para evitar que alguém pulasse, mas a fragilidade da situação pode ser aplicada para diversos outros momentos da nossa vida (salvas as devidas proporções, claro): quando precisamos consolar alguém que perdeu um ente querido, um amigo que tomou um pé na bunda do amor da sua vida ou um pai de família que perdeu o emprego e não sabe como vai sustentar os filhos.
Em vários momentos decisivos de nossas vidas, tudo o que temos a oferecer é um ombro um amigo, uma palavra de carinho. A força de nossas palavras — de nosso companheirismo, de nosso afeto — é maior do que pensamos, e se você nunca salvou a vida de ninguém “no papo”, já deve pelo menos ter ajudado alguém a desabafar e sair da fossa.
“Com grandes poderes…”
Parafraseando o célebre Tio do Peter Parker: “com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades”. E Max não demora para descobrir que não pode resolver todos os problemas do mundo com seus poderes. Como na vida real, cada escolha é uma renúncia, ainda que em muitos casos a gente não se dê conta do que abriu mão até que seja tarde demais.
Outras obras já trataram brilhantemente destes temas. The Walking Dead e outros games da Telltale trazem decisões cruéis que precisam ser tomadas em poucos de segundos e geralmente têm consequências devastadoras. Filmes como Efeito Borboleta (que é uma inspiração óbvia para Life is Strange) mostraram que quanto mais o viajante temporal tenta consertar as coisas, mais elas fogem ao seu controle.
(Abro um parêntese aqui para indicar um ótimo livro com essa temática: Novembro de 63, do mestre Stephen King. É sobre um professor que volta ao passado para tentar impedir o assassinato do presidente John F. Kennedy. Se você curte o tema, leia esse livro, é incrível!)
Assim, Max — e o jogador — invariavelmente terão que lidar com as consequências das decisões tomadas. No jogo tudo é mais simples (afinal, são personagens, polígonos, pixels e bytes, há save points e checkpoints), mas a lição que fica com Life is Strange é muito válida para a vida: no fim das contas, nunca podemos consertar tudo, nem deixar todos felizes e satisfeitos o tempo todo. Podemos (e devemos) fazer o nosso melhor em todas as áreas da nossa vida (estudo, trabalho, amor), mesmo sabendo que inevitavelmente haverá por perto alguém para nos julgar, nos difamar, nos passar a perna.
Life is Strange pode ser “só um game” — que talvez nem desperte o seu interesse em uma primeira olhada — , mas ele vai mais fundo, e por trás de sua trama temporal mirabolante e de sua temática “teen”, aborda com coragem e sensibilidade temas dignos de reflexão. Antes de ser “um jogo sobre adolescentes e viagens no tempo”, ele é uma experiência sobre amizade, injustiça, depressão, amadurecimento, renúncia, bullying, empatia, escolhas e consequências.
Considerando o sucesso do game, uma segunda temporada é inevitável. Eu não me surpreenderia de ver o game abordando temas ainda mais polêmicos — como gravidez indesejada ou aborto por exemplo, afinal, estamos tratando com adolescentes cheios de hormônios e sem muito juízo — com a mesma dureza e serenidade que vimos nesta primeira temporada.
Um game para chamar de seu
Esteja você com 15, 29 ou 60 anos, sempre há espaço para expandir seus horizontes e aprender, desde que você esteja de mente aberta. E se podemos refletir e aprender tanto fazendo algo que gostamos — tipo jogar videogame — porque não dar uma chance? Aproveite que o jogo recebeu legendas em português esta semana e se deixe levar por sua despretensiosa e surpreendente narrativa.
Ainda são raros os momentos em que os videogames abordam temas tão densos mas ainda assim triviais como faz o jogo da Dontnod. Ainda mais se pensarmos nas grandes desenvolvedoras da indústria, mais preocupadas em lucrar e menos em fazer o jogador pensar. Então, se está buscando um novo fôlego narrativo nessa mídia que tanto amamos; um jogo que consegue flertar com o fantástico ao mesmo tempo que namora com o cotidiano, Life is Strange é para você.