Análise Arkade – As aventuras isométricas de Pillars Of Eternity
Quando falamos sobre este game pela primeira vez aqui na Arkade, ele ainda se chamava Project Eternity e tinha recém terminado uma bem sucedida campanha no Kickstarter. Sob o selo da Obsidian (de Fallout: New Vegas e South Park: The Stick Of Truth), o projeto reunia nomes de peso como Josh Sawyer, Chris Avellone e Tim Cain, verdadeiros magos da era de ouro dos RPGs isométricos – e que trazem na bagagem grandes clássicos como Fallout, Icewind Dale, Planescape: Torment e Neverwinter Nights 2.
Com a benção (e o feedback constante) de cerca de 77 mil backers, eles partiram em uma jornada para reviver o espírito dos melhores RPGs de computador da década de 1990, como a aclamada série Baldur’s Gate, e hoje, mais de dois anos e quatro milhões de dólares depois, o projeto finalmente ganhou vida na forma de Pillars Of Eternity.
Ele tem tudo que aqueles jogos tinham: câmera isométrica, pause durante as batalhas, muitos e muitos diálogos… Mas será que ele é capaz de se destacar por mérito próprio, sem apostar só na nostalgia? Para encontrar a resposta, precisaremos desbravar florestas, cavernas e ruínas milenares, enfrentar criaturas terríveis nos campos, desmascarar conspirações sinistras nas cidades e ir além – muito além. A viagem é longa e cheia de perigos, então apronte suas coisas e venha conosco descobrir.
Bem-vindo a Dyrwood
Diferente da série Baldur’s Gate e de alguns outros jogos da era de ouro dos RPGs isométricos, Pillars Of Eternity não se baseia diretamente em Dungeons & Dragons. Ao invés de retratarem o famoso universo, Sawyer e cia. tiveram que criar um totalmente novo. O resultado do trabalho deles é Eora, um mundo vibrante, rico e extremamente bem elaborado, um mundo de fantasia medieval onde várias raças e facções tentam prosperar em meio a criaturas lendárias, magia e muitos mistérios.
Nossa aventura se passa em Dyrwood, uma região de Eora que conquistou sua independência e se tornou uma nação livre. É um lugar onde pequenos vilarejos e cidades são cercados por bosques e ruínas de uma antiga e poderosa civilização. Clãs nativos protegem essas ruínas e fazem questão de lembrar gentilmente aos demais que não se deve profanar as pilhas de entulho sagrado (por “gentilmente” leia-se “na base de machados, flechas e lanças de osso”).
Os povoados podem parecer um pouco mais amigáveis com os turistas, mas também escondem seus perigos – e eles são tão ou mais selvagens que os das florestas. Temos tavernas, ferreiros e lojas de portas sempre abertas para o viajante cansado, mas também encontramos intrigas e violência toda vez que ousamos levantar os panos e “fazer perguntas demais”. As pessoas e grupos de Dyrwood, de origens e ideias tão diferentes, volta e meia entram em conflito por religião, política ou até pela ciência, e não demora para você entender que essa pequena nação independente é tão estável quanto um barril de pólvora. O que ela tem de riqueza e diversidade, ela tem de tretas.
Para deixar a situação mais complicada, uma praga misteriosa que faz bebês nascerem sem alma se abate sobre o país. Religiosos acusam cientistas que estudam a alma, os Animancers, de terem causado o problema; Animancers acusam os religiosos de preferirem rezar ao invés de procurar uma cura; E enquanto o povo discute e as tensões aumentam, políticos e aproveitadores enchem seus cofres (parece até um lugar que conheço…).
É nesse cenário turbulento que nosso herói, um imigrante em busca de terras, vai começar sua jornada. Após uma série de eventos dramáticos, o protagonista acaba se tornando um Watcher, alguém com a capacidade de “ver” a alma dos outros. O que poderia parecer um “dom” na verdade tem um terrível efeito colateral: ele faz com que o portador enlouqueça completamente após algum tempo. Na busca por entender e quem sabe curar essa condição, nosso personagem vai se envolver com poderosas facções, sociedades secretas e conspirações em uma saga épica que o colocará em rota de colisão com o destino de Dyrwood.
Todo esse capricho com a ambientação e a narrativa fica muito evidente durante o jogo. Seja pelos diálogos, descrições ou até mesmo pelos belos cenários isométricos, Pillars Of Eternity consegue te transportar e te envolver com a mesma competência que alguns dos melhores livros de fantasia.
Reúna seu grupo e siga em frente
O sistema de criação de personagens oferece enorme liberdade ao jogador: além das raças mais “comuns” como humanos, elfos e anões, você pode escolher outras bem originais, como Aumaua (seres semi-aquáticos, grandes e fortes), Orlan (baixinhos com feições felinas e orelhas altas e pontudas) e Godlike (humanos com as feições físicas transformadas pelos deuses).
Com as classes acontece a mesma coisa. Temos as tradicionais Fighter, Ranger e Wizard, por exemplo, mas também temos variações interessantes como a classe Chanter, que entoa cantos durante a batalha inspirando aliados e aterrorizando inimigos, ou a Cipher, que pode manipular a mente e a alma dos adversários.
Além disso, a região de onde você veio, sua etnia, sua ocupação antes da aventura (fazendeiro, mercenário, aventureiro?) e até seu sexo são opções que influenciam profundamente a experiência, abrindo novas opções de diálogo e formas de avançar no game. Os próprios atributos que você escolhe no início vão além de aumentar seu dano ou dar mais pontos de vida, podendo ser usados em mini-desafios e até nos próprios diálogos.
Para completar, o jogo conta com um sistema de “Disposição” que seu personagem ganha conforme resolve as situações que encontra. Por exemplo: se você se depara com uma mulher desesperada pedindo ajuda e decide dar uma força, você fica conhecido por ser benevolente. Por outro lado, se você a engana e tira proveito da sua miséria, você fica marcado como alguém manipulador, cruel, e assim por diante.
E embora seja possível zerar o game solo (usando apenas seu personagem principal), o foco de Pillars Of Eternity está em formar um grupo de aventureiros. Diversos personagens são encontrados pelas cidades e podem se juntar ao herói. Eles são bem escritos e dão vida à aventura, fazendo comentários sobre o que acontece e, claro, ajudando muito no combate.
O bacana é que se por acaso você não curtir um dos companheiros que o jogo oferece, mas precisar de alguém para servir de escudo-humano participar de sua a nobre jornada, você pode contratar aventureiros, e não estamos falando de NPCs “pré-fabricados” que servem apenas para tomar porrada por você: você pode literalmente criar um personagem do zero para te seguir, com tantos detalhes quanto o principal. Com isso é possível criar grupos bem equilibrados, com a única desvantagem sendo que eles não tem personalidade como os companions roteirizados.
Tudo isso ajuda a criar uma sensação do “seu lugar no mundo”. Uma das grandes conquistas de Pillars é a forma como ele amarra a narrativa com a jogabilidade, e te dá todas as ferramentas para fazer parte dessa história.
Uma aventura fantástica
Com seu personagem pronto para a jornada e a ajuda dos camaradas que você encontra pelo caminho, é hora de cruzar os campos e cidades de Dyrwood atrás de respostas. Embalado pela narrativa de primeira, personagens interessantes e diálogos inteligentes, você precisará conversar muito, investigar os problemas da região e obviamente enfrentar todo tipo de perigo para encontrar uma solução para seus problemas e os dos locais.
Pillars Of Eternity é muito grande e complexo e os caras da Obsidian sabem disso. Felizmente, eles fizeram um trabalho excepcional para ajudar o jogador a pegar as manhas sem tornar o game pobre. Desde a primeira tela até o fim da aventura, textos de apoio explicam o que cada mecânica do jogo faz, o que cada regra de combate significa. Passe o mouse sobre uma palavra-chave como “Reflex”, por exemplo, e você verá que é o tipo de defesa que permite ao seu herói desviar de ataques em área. Isso vale para tudo no game, praticamente tudo que importa é muito bem explicado.
Uma das únicas exceções é o sistema de encantamento dos items, que é legal na teoria: é possível usar materiais mágicos e ingredientes para adicionar características poderosas às suas armas e itens preferidos, mas infelizmente na prática a interface deixa muitas questões em branco e o sistema todo não é bem apresentado – vide a grande quantidade de gente nos fóruns que não sacou exatamente como ele funciona. No geral porém, o jogo é bastante informativo.
Isso é importante se levarmos em conta que Pillars tem um sistema único e robusto de regras de RPG. Não basta você pegar o item com “mais dano” e achar que vai se dar bem: diferentes inimigos têm diferentes forças e fraquezas, e conhecer esses detalhes é crucial para vencer as batalhas – batalhas que, diga-se de passagem, são bastante desafiadoras. Você enfrentará desde lobos e aranhas até seres saídos dos pesadelos como gigantes feitos de fungos e dragões das sombras. Isso sem falar nos inimigos “humanos”: bandidos, guerreiros e magos cheios de truques sujos estão sempre prontos para acabar com você.
O combate em si lembra o de um jogo de estratégia padrão. Você escolhe um personagem e manda ele atacar um alvo. Os dois (ou três, ou mais) vão trocar porrada até algúem cair, levando em conta os atributos e efeitos que estão rolando. Com diversas habilidades ativas (como magias e golpes especiais) e condições dos personagens e inimigos (estão cansados? envenenados?) interferindo, as lutas ficam interessantes. Usar o pause para organizar os ataques é essencial.
Além disso, o posicionamento do seu grupo é essencial. Não basta colocar os grandalhões na frente e os que batem mais afastados, ou simplesmente tentar bloquear um corredor apertado, por exemplo. Alguns inimigos podem se teletransportar curtas distâncias ou se mover muito rápido e quebrar sua formação, ou ainda soltar magias letais em área, arrasando todos os seus personagens de uma vez. Além de tudo, você precisará levar em conta o alcance dos poderes, tanto os seus quanto os dos inimigos. Usar a inteligência é tão importante quanto itens fortes e magias na hora vencer um confronto.
Entre uma pancadaria e outra, você passará boa parte do seu tempo explorando os mistérios de Dyrwood e conversando com seus habitantes; Esse lado de “se aventurar por um mundo fantástico” é sensacional no jogo. Você cruzará florestas, encontrará ruínas secretas, templos, fortalezas e torres mágicas de todos os tipos, sempre se deparando com algo intrigante por onde passa. Entre um dia e outro de viagem, você montará acampamento, tratará os feridos e comprará suprimentos para continuar em frente.
Habilidades como stealth, abrir fechaduras ou detectar e desativar armadilhas completam a jogabilidade e se encaixam muito bem com os demais pontos do game, principalmente dentro das masmorras, cavernas e labirintos que você precisará desbravar (sinceramente, Pillars Of Eternity tem algumas das melhores dungeons que já encarei).
Toda essa aventura o levará ao coração dos problemas de Eora e da sua própria história pessoal, em um conflito com um vilão poderoso. Não vamos entregar spoilers, mas dá para dizer de antemão que as habilidades do antagonista e a forma como ele as usa para cumprir sua agenda são assustadoras e brilhantes ao mesmo tempo, em um exemplo de personagem bem escrito. Os dilemas morais do game também desempenham um papel fundamental no ritmo da jogatina. Mais de uma vez eu tive que parar e pensar um bocado antes de dar uma resposta ou tomar uma decisão. Tudo que você faz impacta o mundo ao seu redor e, como você vai ver, às vezes até mesmo ações bem-intencionadas podem ter consequências dramáticas lá na frente.
Por fim, entre combates ferrenhos, muita exploração e uma história que aborda vários temas interessantes (e de vez em quando cabeludos), o game amarra tudo com um capricho que beira a perfeição.
Uma dose caprichada de RPG
Com cerca de 30 horas de campanha principal (mas com potencial para muito mais), cerca de 70 quests entre principais e secundárias e vários locais para se explorar, ainda teríamos muito o que falar de Pillars Of Eternity. É um jogo longo, estufado de conteúdo de qualidade e ambientado em um universo incrível.
Só para dar um último exemplo, você ganha um castelo durante o game. Um castelo caindo aos pedaços e cheio de teias de aranha e ratazanas fedorentas, mas ainda assim um castelo! Você pode reformar ele, contratar empregados e partir em mini-missões para caçar malfeitores, ganhando recompensas e items poderosos por matá-los. E como se não bastasse, tem uma mega-dungeon em baixo dele, com 15 andares tenebrosos e, segundo o que dizem, um mal muito poderoso e antigo lá no fundo. Parece bom pra mim, lembra um pouco a pegada do primeiro Diablo.
Junto com todo o resto, isso mostra que o jogo tem um fator replay muito forte. Como são tantos os detalhes e opções na hora de criar seus personagens, só mesmo estendendo ou até a repetindo a jornada é possível ir fundo em tudo que ele oferece. São inúmeras táticas possíveis, centenas de formas de abordar as pessoas e resolver as situações e para completar temos vários níveis de dificuldade, incluindo um modo “Trial of iron”, o famoso “morreu já era”.
Ele tem, claro, seus problemas. Alguns bugs sérios impediram ou atrapalharam o progresso de vários jogadores e eu mesmo encontrei algumas falhas bem estranhas durante a jogatina (a Obsidian tem lançado patches para consertar os eventuais problemas). Em um jogo tão extenso e cheio de textos como este, também é uma pena que não tenhamos localização em português, pelo menos por enquanto. E embora a ideia do projeto seja exatamente ter um ar de nostalgia, alguns detalhes visuais deixam a desejar (como os modelos dos personagens quando vistos de perto).
Para compensar os “bonecos” e outros detalhes visuais mais simplórios, os cenários isométricos dão um show à parte (como você viu aí nas screenshots). Cada cidade, mansão, templo ou calabouço é muito detalhado, parecendo uma maquete viva de algum RPG de mesa. As texturas e a interface também são caprichadas, assim como a música, que cria uma atmosfera de aventura épica com bastante competência.
Somando tudo, a melhor forma de descrever a experiência com Pillars Of Eternity é dizer que ele oferece um pacote generoso de RPG de primeira.
Conclusão
Assim, após nos aventurarmos em Dyrwood, podemos dizer que o jogo definitivamente se destaca pelos próprios méritos. Ele resgata o espírito dos RPGs isométricos e com louvores, sim, mas sem medo de jogar pelas próprias regras e até descartar algumas coisas para fazer o jogo fluir melhor (você não precisa comprar flechas, por exemplo, nem é impedido de se mover quando está com peso demais na mochila). Como disseram em um blog gringo, PoE é provavelmente o “melhor Baldur’s Gate depois de Baldur’s Gate”.
Sem dúvida um jogaço, e mais que isso: um exemplo de projeto de Kickstarter bem executado. Os caras da Obsidian definitivamente provaram que ainda estão afiados quando o assunto é role-playing – e quem sabe ajudam a aumentar ainda mais essa nova safra de RPGs isométricos.
Com estilo oldschool mas sem perder a capacidade de mostrar personalidade própria, Pillars Of Eternity é tão cativante tanto quanto um bom livro de fantasia e aventura. Definitivamente recomendado para todo fã de RPG que se preze, seja das antigas ou da atual geração.
Pillars Of Eternity está disponível para PC (Steam), Mac e Linux.