Análise Arkade: o divertido (e punitivo) Brut@l é uma homenagem aos clássicos jogos ASCII
Brut@l chega com a clara proposta de homenagear os jogos clássicos de RPG baseados em texto e em construções visuais pautados por caracteres especiais – os famosos ASCII – tanto em termos de estética visual como na própria concepção de um design de níveis procedural, ao mesmo tempo em que traz consigo uma identidade própria que bebe de diversos outros jogos conhecidos principalmente do público que sempre apreciou Diablo e outros jogos baseados em dungeons e elementos da fantasia medieval. Agora, a questão que fica é: ele consegue cumprir tudo o que se propõe? Vejamos.
Remetendo às origens
Antes de falar do jogo em si, um teste rápido para checar a sua idade: você ainda lembra de alguma combinação de teclas da tabela ASCII? Fala a verdade, hein?! Para quem não é desse tempo, muitos dos caracteres especiais que hoje são comuns em todos os teclados e que são compatíveis com tantos programas eram muito mais complicados de se inserir em texto do que com um simples apertar de SHIFT e mais alguma coisa. Um simples º precisa de um código (quase) secreto (ALT+167, se você quiser testar em qualquer editor de textos aí), por exemplo.
Agora, imagine quando uns malucos inventavam de programar um espaço diegético na tela só usando esses caracteres especiais para criar um jogo. Sim, esses games baseados em texto já foram muito populares em determinados nichos, sendo pioneiros não só em termos de RPG e de escolhas realmente significativas como também se tornaram algumas das primeiras experiências multiplayer online da história, já que incrivelmente permitiam a interação entre pessoas via internet, algo absolutamente inovador para seu tempo.
A partir deste contexto, Brut@l — jogo em 3 dimensões com visão isométrica de exploração de masmorras imerso em um contexto de fantasia medieval — ganha contornos mais sofisticados que as claras inspirações em jogos como Diablo podem sugerir. Um dungeon crawler, se assim preferir. Aqui, o jogador assume o papel de um personagem arquetípico desse universo – um mago, um guerreiro, um guardião ou uma amazona – na simples missão de conseguir chegar vivo ao final dos 26 níveis de masmorras presentes no jogo — além das que você pode produzir no simples e eficiente editor de dungeons disponível.
A narrativa (ou a falta dela)
De forma muito segura, o jogo não apresenta nenhum tipo de narrativa introdutória ou mesmo durante a jornada. Tudo é muito direto e objetivo. Dentro do ambiente hostil das dungeons, é necessário sobreviver às hordas de inimigos, que contam com os indispensáveis esqueletos, orcs, trolls, diabinhos e todo tipo de criatura mítica, bem como armadilhas e obstáculos espalhados pelas salas e corredores gerados proceduralmente, ou seja, criados em tempo real por meio de uma programação adaptativa, capaz de criar ambientes aleatórios.
Em outras palavras, não há uma linha narrativa pré-estabelecida a ser seguida pelo jogador. Ao contrário, a jornada assume a capacidade de criação do jogador inclusive no nível cognitivo. Não há sequer nome para os personagens ou inimigos, não há determinação do lugar ou da busca em si. Essa lacuna deve ser preenchida pelo jogador da forma como ele acreditar ser importante para ele. Mais do que te dar uma história, Brut@l entrega um jogo. O resto é com quem joga.
Obviamente que, mesmo com a aparente aleatoriedade proposta por masmorras diferentes, há uma linha clássica. A cada novo desafio, novas criaturas — ou versões mais poderosas das conhecidas — são inseridas no contexto. Não vamos entregar spoilers do final, mas quando se organiza as missões ou fases em masmorras (ou dungeons do original), fica difícil não imaginar o que espera na última delas para a consagração do herói, não é mesmo?
Audiovisual
Logo de cara, a intenção de homenagear os clássicos jogos em formato texto fica absolutamente evidente. Desde a tela de menu, toda a construção estética se baseia em caracteres vibrantes em uma tela preta. Personagens, ambientes e objetos dos mais variados são formados por esses elementos que remetem diretamente à tabela ASCII, tal como falamos na introdução do texto. Assim, o visual do jogo não tenta emular os antigos games desse estilo. Ao remeter a eles, ele se torna algo original e único.
Há sim elementos cuja construção visual é mais complexa. Nuances sutis podem ser percebidas, como leves sombras. Efeitos de sangue, envenenamento, fogo e outros elementos tradicionais são destacados, bem como alguns objetos e texturas, como tesouros, névoa venenosa e ambientes de lava. Contudo, exatamente por serem muito diferentes, eles ganham contornos mais destacados e carregam em si um destaque visual muito semelhante ao uso de cores em filmes como Sin City, por exemplo.
Em termos sonoros, esse minimalismo estético está presente também. Na maior parte do tempo da exploração, o jogo não conta com uma trilha contínua presente. As músicas são bastante pontuais e exatamente por isso carregam em si uma carga dramática inerente que eleva a tensão pelo combate. Não há falas de nenhum tipo e os personagens limitam-se a reagir com interjeições e gemidos e os foleys (ou ruídos) dos objetos são simples, permitindo a sua rápida identificação. Tudo muito simplificado e, ao mesmo tempo, sofisticado.
Explorando masmorras, afinal!
Tudo o que foi construído conceitualmente não seria mais do que uma simples homenagem, porém, se o jogo não funcionasse como se espera. E novamente Brut@l cumpre muito bem o seu papel em termos de jogabilidade. Ainda que o game apresente uma espécie de cartelas de introdução às principais funções, não há uma fase tutorial em si. O protagonista literalmente cai na sala onde a jornada se inicia e parte dali em busca da saída. Parte-se do pressuposto que você aprende dentro do próprio jogo.
Toda a mecânica é muito parecida com o que já vimos em jogos como Diablo ou Bastion, com uma visão isométrica do ambiente. Você começa usando uma tocha e os punhos para golpear os inimigos e destruir tudo o que encontra — de potes e vasos até caixões e pilares — e com isso pode coletar diferentes itens, como tesouros, planos de criação de armas, armaduras, ingredientes para poções e… letras! Sim, os itens mais raros a se encontrar são caracteres, que tem muita importância no gameplay.
Explico: como dito, você não encontra armas, mas sim planos de criação. Para construir o que o plano ensina, você precisa dos ingredientes, ou peças, se preferir. Estes artefatos são exatamente caracteres coletados durante a jornada. Ou seja, sem eles, não há como criar novos armamentos, ou mesmo encantá-los com poderes elementais, como fogo, eletricidade, veneno e gelo. Assim, a busca pelo alfabeto completo é parte dos objetivos do jogador. Só desta forma é que se pode produzir cada arma disponível no jogo.
O mais legal é que você reconhece a aparências das letras depois que as armas estão prontas, olha só:
E não são poucas as opções que o jogador terá a disposição. Cada classe tem 3 diferentes tipos de armas, cada qual com sua receita própria para fabricação. Além disso, há também uma variedade enorme de poções que o jogador pode criar e usar da melhor forma possível.
Aqui, há uma novidade bacana: você pode beber a poção que criou ou arremessá-la contra um adversário. Os efeitos de cada uma variam entre serem boas ou ruins para quem as consome. Para saber, ou se experimenta cada uma, ou se aprende a habilidade do mago.
Aliás, das classes disponíveis, somente o mago mesmo já começa com essa habilidade a priori. Os demais podem adquirir ao longo da jornada, já que essas capacidades especiais podem ser compradas com níveis de experiência. As demais classes têm seus pontos fundamentais específicos, como o guardião que já pode começar usando arco-e-flecha ou o guerreiro que já parte com força bruta avantajada. Mas tudo isso pode ser adquirido pelos outros personagens durante a aventura. Só depende da escolha do jogador em como customizar seu personagem.
Em suma, a aventura parece simplificada em um primeiro momento, mas essas camadas clássicas de RPG dão um toque muito mais complexo do que aparenta. O grande mérito de Brut@l é conseguir fazer tudo isso funcionar de forma simples e funcional, sem frescuras. O domínio do conhecimento do que pode ser feito é relativamente fácil de ser adquirido. O problema é decidir como usar e fazer isso funcionar a seu favor.
Difícil? Nem tanto. Punitivo? Com certeza!
Ao assistir o vídeo de gameplay abaixo, você perceberá que o jogo não apresenta uma dificuldade elevada em sua essência. Não temos sequer uma barra de energia para os inimigos, que podem ser vencidos com relativa facilidade, ainda que obviamente a dificuldade vá aumentando acentuadamente a medida que se avança e que se encontram monstros mais poderosos.
Contudo, não espere compaixão. Se você morrer, não importa onde ou como, acabou: aqui é permadeath, tudo recomeça do zero. O jogo pune a imprudência e o descuido sem dó nem piedade. Se liga no gameplay que capturamos:
Na verdade, há possibilidade de uma segunda ou terceira chances. Ao acumular riquezas douradas (que se traduzem em dinheiro), o jogador pode fazer uma oferenda aos deuses em altares presentes em salas de cada nova fase. As vezes, são salas mais explícitas, outras mais escondidas. Se os deuses aceitarem a oferta, lhe concedem uma vida extra. Senão, se ofendem, ficam com o dinheiro e você fica sem nada. Caso o jogador tenha conquistado essa graça, ao morrer pode ressuscitar exatamente no ponto onde morreu.
Ainda que o equilíbrio entre a dificuldade e esse caráter mais imperativo seja bem feito, a sensação de frustração em alguns momentos é inevitável. Inclusive porque há formas muito mais fáceis de se morrer do que em combate. Há, por exemplo, buracos em corredores, barris explosivos e outras armadilhas. Um pulo mal executado e adeus. Game over. Em um jogo de RPG onde se acumula experiência, se gasta tempo fabricando armas e poções e se investe na aventura, a morte súbita pode ser triste e irritante demais.
Ou seja, ao começar a jornada — que se alonga por 26 fases — esteja ciente de que muito do tempo que se investir será perdido sem dó ou piedade. É possível salvar o avanço, mas só para parar e continuar depois. Não há cópia de segurança. Se morrer, perde o save point. E começa de novo. Simples assim.
Ao jogar o co-op local (infelizmente não há multiplayer online, o que é uma pena, visto que o jogo homenageia os pioneiros nesse quesito) a frustração é um pouco menor, já que ao morrer o companheiro pode revivê-lo (dividindo sua barra de vida)… A não ser que a morte seja num abismo (o que é bem comum), aí o morto só volta quando começar a nova fase.
A questão é que jogando ao lado de alguém, o que cada um pega não é compartilhado, a não ser os tesouros que podem se somar quando ofertados aos deuses, e as letras, que podem ser usadas por ambos na forja e no encantamento de armas. No mais, se um tem muita comida ou poções e o outro não tem nada, paciência. E comida será necessária, sem dúvidas. Até porque além da barra de energia, há um medidor de fome/stamina que se zerado, atrapalha o jogador em vários aspectos.
Conclusão
Brut@l é uma bela experiência para os amantes dos clássicos jogos de RPG e para quem curtiu os bons jogos pautados em narrativa interativa em texto e código ASCII. Ele sem dúvida vai cativar amantes de fantasia medieval por trazer todos os melhores elementos de cada um destes nichos, tudo amarradinho em um gameplay suave e acessível e com um visual “diferentão” que é bem legal.
Ainda que possa parecer bastante cruel — e, com o perdão do trocadilho irresistível, brutal — ao punir o jogador sem nenhum remorso por descuidos, falta de atenção ou imprudência, o game não deixa de ser justo no desafio que propõe. Frustra em alguns momentos de recomeço, mas oferece bons incentivos para que a jornada se inicie novamente, até porque cada vez que se joga tudo é diferente e as fases nunca se repetem. Mesmo que você tenha que repetir a primeira dungeon dezenas de vezes, ela nunca será a mesma.
Totalmente localizado para o português brasileiro, Brut@l está sendo lançado hoje para PC e Playstation 4. É altamente recomendável, principalmente para quem não se apega demais e não tem medo de morrer e começar tudo de novo!