Análise Arkade: o “terror reverso” de Carrion, um jogo 2D onde somos o monstro
O mundo dos games já nos permitiu caçar aliens malvados em dezenas de games. Estamos acostumados a ser o humano herói, o space marine badass que salva o dia e a raça humana de um bando de alienígenas hostis… Mas e se nós fossemos o alienígena, e os inimigos fossem os humanos?
Essa inversão de papéis também já foi explorada algumas vezes no mundo dos games, mas nunca como em Carrion, game que a Devolver Digital lançou recentemente, e cuja análise você confere agora!
Gosma alienígena
Carrion se passa em uma instalação que é parte laboratório, parte base militar secreta. Controlamos uma gosma alienígena de aparência sinistra — uma massa disforme feita de carne, olhos, tentáculos, garras e dentes — e, após escaparmos do “aquário” onde estávamos presos, devemos dar um jeito de escapar do ambiente como um todo.
Não há muita história sendo contada aqui, mas este impulso de fugir e buscar a liberdade é forte por si só — ainda que possamos acompanhar alguns breves flashbacks para entender um pouco de onde o “monstro” veio. O problema é que o lugar em que estamos presos é um verdadeiro labirinto, e há soldados, robôs sentinelas, lasers, torretas, e outros perigos em nosso caminho. Felizmente, nossa amoeba alien é altamente adaptável… e letal, para o azar dos pobres humanos.
Enquanto eu caçava humanos assustados e me esgueirava por dutos de ventilação, o filme O Enigma de Outro Mundo não saía da minha cabeça — e esta, convenhamos, é uma ótima referência no gênero terror sci fi. A maior diferença que lá a gente torcia pelos humanos, enquanto aqui estamos do lado do monstro.
Essa vibe de “terror invertido” do jogo é muito legal — evoluir, crescer, e ganhar novas habilidades é recompensador. E, claro, ser o caçador é bem mais legal do que ser a caça. Enquanto outros jogos de “fuga”, como Ape Out, outro ótimo jogo da Devolver –, focam-se na adrenalina e no improviso de uma criatura acuada, Carrion estimula o jogador a pensar, agir de forma mais deliberada — seja para resolver puzzles que liberam passagens, seja nos momentos de pura carnificina.
Seja o alien
A jogabilidade de Carrion é simples, intuitiva e muito agradável. Como estamos no controle de uma criatura extremamente ágil (ainda que sem braços nem pernas), basta apontar o direcional analógico em uma direção, para que seus tentáculos o levem até lá. A gosma não precisa de caminhos, nem escadas, nem mesmo de pulos: ela simplesmente iça a si mesma para lá e para cá com seus tentáculos, e faz isso com uma fluidez que é impressionante… e um pouco nojenta.
Combate não é o foco aqui, mas ele é necessário para nossa sobrevivência. E, nossa criatura amorfa toca o terror em seres humanos, ainda que deva lidar com certos inimigos mais bem equipados. Confira um pouquinho de matança abaixo — bote um reparo especial no som, que é maravilhoso:
Carrion é meio que um MetroidVania, mas não daquele jeito contínuo que é tradicional no gênero. Há diferentes ambientes, que se conectam através de escotilhas. Você não necessariamente precisa revisitar ambientes anteriores… mas talvez se voltar lá com novas habilidades, pode alcançar uma área antes inacessível. Complica um pouco o fato do jogo não ter um mapa: seguir em frente até que não é problemático, mas se você inventar de revisitar áreas, pode acabar se perdendo, pois o jogo é um labirinto.
Sim, conforme avança, você vai encontrando redomas de contenção que, ao serem quebradas, lhe concedem novas habilidades. Há uma boa variedade de upgrades, desde os puramente ofensivos (tipo atirar espinhos) até outros que contribuem na locomoção — como se dividir em várias partes na água, ou controlar o corpo de um ser humano (algo que pode ser feito mais ou menos de longe, e funciona mesmo com cadáveres) para fazê-lo acionar algum mecanismo para você.
Uma coisa meio pentelha é que suas habilidades mudam de acordo com o tamanho da sua gosma. Você invariavelmente cresce durante a jornada, mas só pode usar as habilidades de sua versão menor quando está pequeno (e vice versa). É possível despejar um pouco de sua biomassa em “piscinas” para controlar seu tamanho, mas como nem sempre estas piscinas estão próximas do seu objetivo, isso torna-se um pouco chato. Comportar todas as suas habilidades conforme você cresce seria mais prático — e mais condizente com a proposta “evolutiva” da criatura.
Podia ser mais criativo
Carrion é bastante criativo nas possibilidades… mas nem tão criativo nas situações. Como somos um organismo em fuga, nosso objetivo sempre é apenas fugir — e isso se faz ativando certos pontos, chamados ninhos, que aumentam nossa “infecção” em um cenário e liberam acesso à escotilha de cada área. E, embora cada área seja diferente, o modus operandi para liberar essas escotilhas meio que é sempre o mesmo.
O jogo até te estimula a usar suas habilidades de forma criativa, mas poderia ir muito além do básico. Ele poderia, por exemplo, ter pequenas missões onde deveríamos possuir o corpo de um ser humano específico (tipo um cientista, ou alguém com um key card), passar despercebido por outros humanos para acessar uma área restrita, algo assim. Seria uma forma interessante de agregar novas nuances ao gameplay sem fugir de sua proposta.
Audiovisual
Eu adoro toda a parte audiovisual de Carrion. Sua pixel art é muito detalhada, e ele é o tempo todo obscurso, claustrofóbico, de um jeito que lembra os primórdios da série Alien. Esse tipo de jogo costuma descambar para o humor — como Destroy All Humans!, que iremos analisar em breve — mas Carrion não: ele se leva a sério, e sua atmosfera é sempre pesada.
Isso é muito potencializado pelo áudio extremamente realista do jogo: o visual pode ser “old school”, mas o som é claro e cristalino, e ele faz toda a diferença na imersão. Os gritos desesperados das pessoas, o som rascante de uma porta sendo arrancada, ou mesmo o estalo sutil de uma lâmpada quebrando… tudo isso soa muito bem, e ajuda a construir esse clima de terror sci fi — e a trilha sonora, que aparece de forma dramática só quando é necessária, pontua muito bem a tensão.
Conclusão
A proposta de Carrion, de ser um “jogo de terror reverso” é muito interessante, e no geral ele cumpre o que promete. Eu curti muito a vibe do jogo, e quão intuitivo é seu gameplay, e a maneira como ele nos permite ser “caçador” na forma de uma criatura gosmenta é diferente de praticamente tudo o que já vimos no gênero sci fi.
Acho que seu tom mais sóbrio combina muito bem com a proposta, e o realismo de seu áudio é sem dúvida um dos trabalhos de ambientação sonora mais imersivos que experimentei esse ano. É um jogo que poderia ter barulhinhos retrô, chiptunes e coisas do tipo, mas pega um caminho muito mais impressionante, e faz isso muito bem.
Porém… eu esperava mais. Entendo que a proposta aqui é simplesmente “fugir”, mas ele poderia me entregar isso de formas mais arrojadas. Pense em Inside, por exemplo: nosso objetivo lá também é fugir, mas ele cria todo um universo de situações distintas em torno desta premissa. Isso enriquece a experiência, deixa o jogo mais dinâmico e imprevisível.
Carrion se limita ao básico. Você sempre vai ter que criar ninhos para abrir escotilhas. Como chegar até os ninhos e escotilhas até muda, mas ele podia mudar ainda mais. Sinto que, com essa repetição, perdeu-se a oportunidade de criar algo realmente especial. Apesar disso, é um jogo divertido e com uma temática bem legal. Se você for menos exigente do que eu, talvez aproveite melhor sua experiência.
Carrion está disponível para PC, Xbox One (no catálogo do Game Pass) e Nintendo Switch.