Análise Arkade: Vida e morte se misturam com leveza e diversão em Flipping Death
Talvez uma das frases mais clichê de todos os tempos é aquela que diz que “a morte faz parte da vida”. Não dá pra saber ao certo se é uma meio de conformismo, ou de resiliência, mas o fato é que na prática, parece que pouco acreditamos nisso de verdade. No final das contas, falar sobre o pós-vida, culturalmente, nos parece ou tema religioso, ou um tabu do qual não se deve falar.
Felizmente, as diversas formas de arte conseguem lidar com o conceito da morte de diferentes maneiras, e muitas vezes de modo bem criativo. Games como Sombras de Mordor, Murdered: Soul Suspect e o excelente Ghost Trick – Phantom Detective são alguns exemplos de abordagens instigantes e bem trabalhadas da morte e do pós-morte.
Flipping Death é um desses casos, que chega hoje para trazer leveza ao tema. Ao tratar das idas e vindas não só da protagonista, mas também de tantos outros personagens que vão surgindo ao longo da jornada, o game consegue trazer, de uma forma bem despretensiosa, uma perspectiva mais leve e com menos tabus sobre a vida e a morte, incorporando essa premissa em todos os aspectos da produção.
De repente, morri?!?!
Logo de cara, o jogo nos apresenta Penny, a heroína do game, que vive tranquila sua vida ao lado do namorado na pacata Flatwood Peaks. Não mais que de repente, ela se encontra do outro lado da vida (aka morte), sem saber o que está acontecendo ou como foi parar ali. Sem querer, ela acaba cobrindo as férias da Morte em pessoa!
De posse de uma foice multiuso, ela agora precisa cumprir a sua inesperada missão resolvendo as pendências dos vivos e dos mortos enquanto tenta desvendar os mistérios do que aconteceu consigo mesma.
É nessa dinâmica entre os dois planos — o dos vivos e o dos mortos — que está o grande trunfo de Flipping Death. O game é basicamente um grande emaranhado de puzzles onde esse trânsito é fundamental. Para tanto, Penny precisa, literalmente, se apropriar dos corpos de outras pessoas, assumindo suas identidades e seus recursos para resolver os obstáculos mais bizarros e estranhos. Vamos usar deste o desfibrilador de um médico até a língua de um adulto mimado (!?) para solucionar os diferentes casos.
O desenho da campanha aqui também é bastante singular, uma vez que missões primárias e secundárias se misturam de uma forma muito natural: possuir um personagem propicia resolver diferentes quebra-cabeças ao mesmo tempo, permitindo que Penny conheça um pouco de cada um dos peculiares habitantes daquele lugar. Idas e voltas com os diferentes sujeitos, portanto, é parte da dinâmica da narrativa e também da mecânica do jogo em si.
Assim, a narrativa do jogo se mostra muito bem estruturada, revelando aos poucos, de uma forma muito fluida e integrada ao gameplay, o que está acontecendo com a nossa protagonista, bem como o modo como a trama dela se entrelaça com a daquele lugar.
Cada personagem novo, vivo ou morto, do presente ou do passado, tem sua contribuição nesta verdadeira investigação sobrenatural, com direito a vários plot twists. Vale a pena prestar atenção aos diálogos e às nuances que vão se apresentando ao longo da jornada.
Um gameplay inovador e meio desengonçado
Como dito, o sistema do jogo é baseado na premissa de passar do plano dos vivos para o dos mortos o tempo todo. Contudo, esse sistema não é tão simples quanto a transição que vemos, por exemplo, em Giana’s Sister. Afinal, Penny está morta e não pode voltar assim, sem mais nem menos.
Para isso, ela precisa baixar em algum ser vivo, possuir seu corpo e controlá-lo para uma certa tarefa. Aqui vale tudo: de policiais a abutres, de crianças a caranguejos, Penny toma o corpo de quem aparecer. Missão dada é missão cumprida.
Só que qualquer espírito zombeteiro sabe que não é tão fácil assim sair possuindo os outros a torto e a direito. Para ter essa capacidade, Penny precisa coletar, do lado de lá, algumas almas para, assim, ter o poder de um Poltergeist. Faz sentido? Não. É divertido? Muito! É esse artifício que dá ao jogo suas características de plataforma 2D, uma vez que ela precisa explorar bem esse pseudo “mundo invertido” para ter almas perdidas suficientes para “comprar” o direito de possuir alguém.
A questão é que em um plano ou no no outro, a movimentação da personagem é um tanto quanto atrapalhada. A Zoink Games é meio que especialista em criar jogos assim, desengonçados, com cara de papel recortado, mas, ainda que seja uma escolha estética, é chato quando isso acaba afetando o gameplay em si.
Exemplificando: a protagonista ou seus hospedeiros não parecem ter um controle tão preciso de seus corpos, e isso torna necessária uma certa adaptação do jogador (e um pouco de paciência) para aprender a usar funções mais complexas, como o uso da foice para alcançar pontos mais difíceis do cenário. Todavia, são poucos os momentos que exigem precisão alta e comandos rápidos. Flipping Death é, antes de mais nada, um grande puzzle com pitadas pontuais de platformer.
Com um HUD mínimo, o jogo aposta na criatividade do jogador e da atenção aos detalhes na solução de cada desafio. Faz diferença, aqui, uma compreensão mais detalhada dos diálogos, e esta pode ser uma pequena dificuldade para nós, brasileiros, uma vez que o game não tem a opção de dublagem ou de legendas em português. Logo, algum entendimento básico do inglês ou do espanhol — há outros idiomas menos populares, como o italiano também — se faz necessário para quem não quer ficar boiando. O domínio de outro idioma não é pré-requisito, mas ajuda bastante, já que as dicas de solução estão, muitas vezes, escondidas nos diálogos.
A beleza do esquisito
Flipping Death é um jogo 2D com alguns elementos, modelos e composições em 3D. Essa mistura não chega a fazer do jogo algo que possa ser chamado “vulgarmente” de 2.5D, mas cria uma percepção estética bastante sofisticada dentro da sua proposta. Personagens e cenários contém uma distorção estilizada, que flerta com uma mescla entre a arquitetura do expressionismo alemão e o mundo caricato de O Estranho Mundo de Jack.
A movimentação, por sua vez, reforça a sensação desengonçada, com articulações que mais lembram animações de colagem — algo reforçado pela construção chapada dos personagens e elementos cenográficos, como folhas de papel. Esta escolha estética inusitada valoriza a transição entre um mundo e outro: é como se a realidade dos vivos e dos mortos coexistisse, meio que duas faces do mesmo mundo, separadas por algo tão fino quanto a lateral da folha.
Essa abordagem, que equilibra o escracho e a sutileza artística, também transborda para a mixagem sonora, com uma dublagem muito competente que dá personalidade aos diferentes sujeitos e arquétipos ali presentes, incluindo um narrador que aproveita até os loadings entre as fases para nos brindar com sua perspectiva da história. A música ajuda, criando uma ambientação imersiva e os efeitos sonoros são precisos em fazer menos se tornar mais.
Como um todo, é uma criação artística muito bem executada, ainda que a movimentação possa ser um pouco mais irritante do que poderia. Mas há fluidez, o cenário é uma construção harmoniosa, mesmo retorcida, e os personagens são carismáticos e marcantes. Houve um bug ou outro ao longo dos testes para esta análise, mas são questões pontuais que devem ser resolvidas em atualizações de rotina.
No geral, é um jogo acima da média em termos de construção estética e de estilo, e que fortalece a imagem da Zoink Games como uma empresa que gosta de uma boa dose de esquisitice em suas criações — sendo Fe o representante mais “normal” de sua cartilha, que conta também com Stick It to the Man e Zombie Vikings.
Conclusão
Com um humor ácido, cheio de camadas e com direito a participações especiais, Flipping Death parece uma mistura equilibrada entre Manual Samuel, Machinarium e sua maior e mais explícita referência, o prata da casa Stick It to the Man. O game Apresenta uma jogabilidade equilibrada e um tanto quanto inovadora, que mistura a solução de diversos quebra-cabeças a elementos de plataforma e exploração.
Com um estilo artístico marcante e com claras — mas nem por isso óbvias ou simplistas — inspirações em obras que flertam com o bizarro, Flipping Death consegue ser belo do seu jeito esquisito, e lida com muita leveza com elementos como possessão e morte, brincando com as nossas percepções mais tradicionais sobre ambos os temas, tal como fazem as animações Viva: A Vida é uma Festa e Festa no Céu.
Uma obra muito bem executada, que vale a pena e que faz valer o clichê sobre a vida após a morte mencionado lá no começo do texto!
Flipping Death está disponível para Playstation 4, Nintendo Switch, XBox One e PC e, como dito, não tem dublagem ou textos em português, mas tem disponibilidade em outros idiomas além do original em inglês.