Análise Arkade – Food Boy e a construção do ódio viciante

18 de outubro de 2024
Análise Arkade - Food Boy e a construção do ódio viciante

Não sei você, caro leitor, cara leitora, mas por vezes eu me deparo com alguns jogos que eu consigo amar com todo o meu coração e odiar com todas as forças do universo ao mesmo tempo. Ficar fulo da vida enquanto ofendo, em minha mente, até o último dos desenvolvedores enquanto continuo a repetir uma fase que claramente foi feita para me tirar do sério é um tipo de martírio que ainda não consegui explicar.

Food Boy, game desenvolvido pelas mentes torturadoras brasileiras da Dopamin Game Studio e distribuído pela Short N Sweet que já tinha nos chamado a atenção no BIG Festival 2023, traz toda a ambientação de um tempo passado, e a referência óbvia e explícita é o eterno Paper Boy (basicamente, um simulador de entrega de jornais da era 8 bits, e que me atazanou na época do Master System) não só pelos visuais, mas também e principalmente pela dinâmica exigente para uma tarefa corriqueira.

Análise Arkade - Food Boy e a construção do ódio viciante

Quem disse que seria fácil?

Como o próprio título já indica, estamos diante de um simulador de entrega de comida via aplicativo (vou evitar aqui citar marcas, mas você sabe de qual estou falando) onde um jovem, dotado da sua inseparável bicicleta, precisa distribuir suas pizzas enquanto tenta sobreviver aos perigos das ruas movimentadas desse nosso Brasil. Clientes famintos são implacáveis, cães não lidam bem com ciclistas, e turistas se importam pouco com a classe trabalhadora. Chegar ao fim da jornada não é nada fácil.

O modelo de jogo, portanto, se resume a arremessar estas delícias para aqueles que as pediram sem ser atingido por quaisquer que sejam os obstáculos, tentando fazer o maior número de entregas possível enquanto tenta atravessar do ponto inicial até a linha de chegada. Em teoria, tudo tranquilo, porque controlamos a nossa magrela com o analógico esquerdo enquanto usamos o da direita para os arremessos, que seguem uma lógica de estilingue, ou seja, puxe para um lado para dar impulso para o oposto.

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Entretanto, Food Boy não tem qualquer interesse em nos conduzir pelas mãos, e o jogador só vai aprender o ofício na prática, via a boa e velha tentativa e erro. As fases iniciais do primeiro dentre quatro mundos são muito convidativas para se adaptar à física básica envolvida, tal como o timing (o tempo desacelera levemente enquanto estamos engatilhando o arremesso) e todos os movimentos possíveis. Com um sistema de pontuação bastante convencional de três estrelas, uma para cada meta atingida, as fases não duram mais que alguns segundos.

É quando as coisas começam a apertar que o jogo mostra a que veio. Não se pouparam formas de nos desequilibrar e atrapalhar o rolê todo. Primeiro porque clientes não atendidos, quando famintos, são implacáveis. Ser perseguido por quem não teve sua pizza entregue no momento certo é um tormento. Segundo porque os demais habitantes são terríveis e ficam atravessando no caminho, arremessando coisas e achando formas cada vez mais cruéis de nos atrapalhar. Controlar o caminho, acertar os arremessos e evitar os perigos, tudo só com dois analógicos, não é para qualquer amador.

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Os exageros ajudam, mas também atrapalham

Não há o que se queixar das mecânicas de arremesso, que são bastante fluidas e exprimem uma boa precisão. Saber disparar em movimento é uma arte que muito provavelmente é o que mais dá prazer em se aprender, em um condicionamento quase natural do cérebro. Sair acertando todo mundo pelo caminho é um prazer culpado, mas que fique claro que é justo, porque ninguém merece aquele cara que fica jogando frisbee na sua cara o tempo todo. Contudo, há um certo desequilíbrio aqui.

Muitas vezes, os obstáculos se encavalam, tornando algumas travessias especialmente difíceis. Escolher derrubar os pedestres acaba se tornando uma obrigação e não uma decisão pessoal, exigindo portanto uma destreza absurdamente intensa. Por sua vez, o erro é duplamente punido, já que errar a entrega adiciona inimigos, que em certas ocasiões são perseguidores muito mais rápidos do que deveriam. Não foi uma vez só que sofri com um maluco correndo e rampando mais alto que eu, mesmo ele estando a pé.

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Assim, muitas fases estabelecem um caos proposital que acumula punições sem uma retribuição mais palpável durante a travessia, mas só depois, na contabilização da pontuação. Ou seja, acertar deixa as coisas equilibradas pro futuro, enquanto errar causa danos imediatos. O que você faz de bom colhe depois, mas o que faz de errado te alcança instantaneamente. Tudo, claro, acaba fazendo parte de um jogo cada vez mais exigente em precisão, mas que por vezes náo espelha ônus e bônus.

Isso significa que, em certas fases, eu fiquei irritado por ter passado, não contemplado por ter me adaptado bem ao que ela me impôs, em uma sensação de alívio, não de recompensa. Isso é particularmente um problema de design quando a sensação de precisão se vai nos trechos em curva, quando o controle fica refém do movimento de câmera. Food Boy é um jogo, essencialmente, de visão isométrica, mas em passagens por esquinas e traçados diversos, acaba mudando, por frações de segundo, a angulação do movimento, prejudicando o planejamento.

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Os momentos com curvas em S são especialmente tensos porque apontar o arremesso em uma direção enquanto a câmera fica girando alucinadamente para lá e para cá é uma tarefa muito mais de feeling e sorte do que de preparação, e em jogos como este onde a tolerância para o erro é zero, é bastante frustrante ter a sensação de que aquilo que o faz especial acaba trabalhando para boicotar o jogador. A diversão, neste instante, dá lugar à frustração não pela dificuldade inerente, mas pela ideia de estar sendo sacaneado propositalmente.

Já vi isso em algum lugar

Em termos estéticos, Food Boy se alimenta quase que integralmente de sua referência explícita, e tudo nos faz lembrar daquele jogo do jornaleiro. Mas uma vez que traz toda a vivência de seus idealizadores brazucas, fica claro que tanto os ambientes quanto as pessoas se parecem muito mais com coisas com as quais estamos acostumados. As ruas de um bairro mais tradicional da periferia e as ondas da praia são espaços reconhecíveis, e a simpatia de um povo dançante traz seu charme.

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Não é um jogo muito profundo, porém. É evidente que estamos diante a alguns modelos arquetípicos esquemáticos e que flertam com alguns estereótipos, como o cara marombeiro ou as dançarinas de funk. É uma representação bastante simplória e não tem qualquer pretensão de ir além de uma ilustração em pixel art oitentista direcionada para aquilo que realmente importa, que está concentrado nas mecânicas da entrega. Mesmo os cenários, dentro do mesmo mundo, poderiam trazer uma ou outra variação, como clima, arquitetura ou algo assim, mas no final, é tudo muito repetitivo e só muda pela disposição dos NPCs e dos poucos objetos cênicos.

O mesmo acontece com o protagonista, que ganha novas skins conforme coletamos discos pelo caminho, mas que no final, talvez até pela própria limitação visual auto-imposta, são variações muito sutis no esquema de cores, algo quase insignificante na prática. Pra se ter uma ideia de como isso importa pouco, certamente não serão muitos leitores que irão notar que as imagens que ilustram esse review trazem versões diferentes desse herói das ruas. Liberei muitos visuais, mas só os equipei porque podia, não porque eles realmente eram minimamente interessantes.

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O mesmo ocorre com o quesito sonoro, onde a trilha musical é repetitiva e funciona como emulação do que se poderia fazer décadas atrás, mas jamais se mostra marcante, enquanto os efeitos sonoros, incluindo os ruídos bizarros das pessoas correndo atrás de nós, parecem básicos ou esquisitos demais. Se por um lado isso demonstra uma certa convicção na homenagem, por outro parece só um limite não forçado para algo que poderia ser mais criativo e agradável.

Conclusão

Food Boy, inegavelmente, leva muito a sério a sua proposta de celebrar um jogo marcante da história desta indústria vital, revitalizando o tema para algo mais atual e nos dando mostras de uma localização reconhecível para nós, habitantes desta terra tupiniquim. Esta pedra fundamental no conceito é uma força e, ao mesmo tempo, uma fraqueza ao estancar a criação a partir daí. A referência se torna uma amarra.

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Por outro lado, suas mecânicas são simples e efetivas, prezando pela exatidão e pela repetição até que se atinja um bom nível de precisão, digna dos verdadeiros entregadores de pizza. Certos exageros, como o acúmulo desequilibrado de obstáculos e o uso despropositado de curvas que tiram o controle das mãos do jogador, porém, impedem que o jogo alcance todo o seu potencial, e torna o desafio algo onde a punição pelo fracasso é muito maior do que a recompensa pelo sucesso.

Mesmo assim, é inegável o poder de sedução que o game exerce sobre nós. Faz muito tempo que não encontro uma proposta tão provocativa, que transforma aquele “só vou tentar mais uma vez e depois chega” em literalmente horas até que uma desgraça de uma fase seja superada, e depois ainda voltemos lá, como gado, para tentar as três estrelas. Fiquei irritado em vários momentos? Sim. Dei alguns rage quits definitivos, só para voltar meia hora depois? Com certeza. Então volto ao tema inicial: o amor e o ódio andam juntos e estão de mãos dadas, ao menos até o próximo cachorro infernal atravessar o caminho em uma run quase perfeita.

Food Boy está disponível para PlayStation 5, Nintendo Switch, PlayStation 4, Xbox One, Xbox Series X|S e PC (via STEAM) desde 24 de setembro de 2024, com a localização de textos e menus (o jogo não tem voz) em português brasileiro.

Paulo Roberto Montanaro

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