Análise Arkade: o brasileiro Eliosi’s Hunt e a difícil arte do caçador de recompensas
O cenário de produção independente, no meio da cultura e do entretenimento, sempre foi um dos espaços mais promissores para aqueles que sempre quiseram se aventurar na realização artística no Brasil, a exceção da televisão. Do cinema ao teatro, das animações aos games, a nossa indústria cultural pouco ou nada conseguiu se estabelecer enquanto negócio sustentável, lucrativo e de alto investimento. Contudo, ainda que haja suas similaridades, é exatamente no setor mais jovem de todos esses que o país começa a ganhar notoriedade aqui e lá fora.
Dos vários destaques nacionais vistos nos últimos anos — como Toren, Chroma Squad, 99 Vidas, Aritana e a Pena de Harpia e Horizon Chase (repare que todos têm review aqui no site!) — , a grande semelhança, além de um cenário de investimento muito menor do que é visto nos jogos de maior visibilidade, é a forma como tudo o que tem sido feito no mundo é combustível para alimentar a criatividade dos desenvolvedores brasileiros, que conseguem trabalhar com temas universais com um tempero cultural que é daqui ou que conseguimos transformar para nós mesmos.
Eliosi’s Hunt, game desenvolvido pela novata TDZ Games, carrega um pouco de tudo isso: criatividade, inventividade, referências diversas e uma pitada de ousadia, tudo junto a um conceito interessante e que se utiliza do que há de melhor rolando no cenário indie na atualidade. O resultado, um game bastante desafiador no melhor estilo de tiroteio top-down, ainda é a primeira produção oficial da empresa, apara arestas e traz consigo um amadurecimento bastante seguro e que vale dar uma conferida.
Em busca de recompensas
Caçadores de recompensas, raças alienígenas e um boteco bastante eclético nos confins do espaço. Sim, você sabe do que estou falando. O jogo é muito feliz em incorporar de forma direta ou mais sutil algumas das melhores referências da cultura pop mundial em seu escopo, ao mesmo tempo que consegue manter firme sua própria identidade, há referências e homenagens sem nunca parecer cópia descarada. Mesmo que a cena de abertura possa lembrar bastante de passagens de Star Wars ou até mesmo Guardiões da Galáxia, Eliosi’s Hunt consegue se estabelecer com tom e humor únicos.
Na trama, o jogador controla Eliosi, um jovem aspirante a caçador de recompensas que decide ir atrás das suas aspirações e se tornar um grande herói, ainda que a sua espécie não seja lá a mais adequada a missões dessa natureza. Afinal, os zelicianos (essa é a sua espécie) não são considerados exatamente fortes, poderosos ou brutos o suficiente para o trabalho de manter a ordem em um universo lotado de criaturas bizarras, armadilhas mortais e perigos inimagináveis.
De um modo bastante direto e sem muitos meandros, o game consegue recrutar o jogador rapidamente graças ao carisma quase imediato do seu protagonista, que se soma a um mundo que logo de cara se mostra desafiador e cheio de perigos. A fase inicial, que funciona como um belo tutorial e te apresenta às mecânicas principais do jogo, não faz carinho em ninguém e já mostra que o caminho será árduo. Em minutos jogando, você já sabe que vai querer jogar o controle na tela várias e várias vezes até o fim da jornada. Prepare-se (e controle-se).
A cada nova conquista, Eliosi vai ganhando respeito e notoriedade, algo mostrado também de uma forma muito simples, mas que realmente dá uma sensação de dever cumprido. São poucos os mundos presentes no jogo, mas os desafios encontrados em cada um deles os fazem serem notados e sedimentados na mente do jogador. São ambientes bastante diferentes entre si, como fábricas, desertos, pântanos e outros espaços hostis que, a cada passo, podem nos fazer desejar por um check-point.
Não tão simples aprender, ainda mais difícil dominar
A mecânica de jogo não é das mais simples, considerando um gênero que mistura shooter com plataforma com visão superior. No controle tradicional de consoles (versão utilizada para os testes desta análise), usa-se um direcional para movimentação básica e outro para mirar. Nada de muito novo, permitindo que se caminhe e se atire para direções independentes uma da outra, por exemplo.
Contudo, é necessário usar também um comando para sacar a arma e atirar — é possível guardar ou soltar equipamentos, permitindo uma movimentação mais rápida — algo que pode demorar um pouco mais para o jogador se acostumar. A cada morte, por exemplo, a arma volta ao coldre e, se o jogador for daqueles afobados, vai chegar ao primeiro confronto ainda desarmado. Um detalhe que pode fazer a diferença entre conseguir superar ou não aquele adversário — acreditem, sei bem o que é isso.
No mais, é possível saltar entre plataformas, usando equipamentos que ajudam com pulo duplo ou mesmo pequenos voos de jetpack, usar granadas e armamentos especiais espalhados pelo cenário e tudo o que se tem direito em jogos desse estilo. Quem já jogou Metal Slug e tantos outros shooters não terá nenhuma dificuldade para aprender isso tudo. A questão, porém, é que tudo isso junto acaba não sendo exatamente um passeio no parque e demanda aprendizado. Por “aprendizado”, entendam “morrer e morrer de novo várias vezes”.
Isso porque o sistema de salto não é tão preciso no princípio. Ainda que haja um motivo — o personagem ainda está aprendendo a se virar — os saltos podem ser irritantes e as vezes render mortes bobas. Entender a física do jogo, principalmente quando é necessário acertar espaços bastante estreitos em um mar de lava azul e sob ataque intenso de inimigos e do próprio clima é para poucos. Ao longo da jornada, com melhorias não só nesse como em outros atributos, a coisa começa a ficar mais precisa, mas longe de ficar mais fácil.
Isso porque a dificuldade elevada do jogo segue uma curva exigente de aprendizagem. Parece que a fase em questão é sempre um passo mais difícil do que as capacidades do personagem. Não a toa, voltar às fases iniciais já com atributos melhorados e, principalmente, experiência no jogo, mostram que aquilo que parecia dificílimo a primeira vista só estava um passo adiante. Ao mesmo tempo que pode irritar jogadores mais acostumados com jogos mais fáceis, dá uma sensação de evolução e aperfeiçoamento real ao jogador, que percebe que foi além do que deveria para superar uma fase.
Os probleminhas de precisão podem ser um pouco mais estressantes, principalmente em trechos mais longos entre um check-point e outro. Incomoda também alguns itens coletados serem perdidos a cada morte, mesmo sendo capturados antes do ponto de salvamento. Por exemplo, há um determinado momento onde o jetpack é essencial para se superar uma série de abismos. Ele fica um pouco antes de onde se salva o estado do jogo, mas a cada morte, ele se perde e é necessário voltar uma parte considerável do cenário para pegá-lo novamente.
O mesmo acontece com armas e outros itens que, mesmo os inimigos da área mortos continuando mortos, fica um pouco cansativo ter que sempre que se erra voltar duas ou três salas para pegar as mesmas coisas. Ainda que possa ser entendido como uma justa punição pelo erro, acaba não somando em nada à experiência e se torna uma pequena perda de tempo para quem já está enroscado em um trecho mais complicado.
Como um todo, portanto, Eliosi’s Hunt tem um sistema de controles bastante sofisticado, ainda que por vezes pareça mais do que precisaria, mas que atende bem ao que o jogo exige e é coerente com uma proposta mais difícil e desafiadora. Pode ser irritante errar saltos considerados simples, ou ainda ter que sacar a arma em um momento de reflexo, mas nada que algumas mortes não resolvam para deixar o jogador mais esperto.
Muito estilo audiovisual
Em termos estéticos, o game apresenta um refinamento muito sólido. Há uma profusão de cores e formas que, como dito anteriormente, lembram um pouco o universo criado por James Gunn em Guardiões da Galáxia, em uma mistura maluca com Oddworld e Star Wars. Há ambientes sombrios e mais sóbrios, mas há também um trabalho bastante minucioso de texturas e iluminação que funcionam bem para criar uma atmosfera que favoreça as antíteses de cada cenário. Do deserto claro e aberto ao pântano fechado e opressor, tudo é muito bem delineado.
As animações de cada personagem — protagonista ou inimigos — também são bacanas, ainda que certos espaços careçam de um pouco mais de variedade. Seria bem interessante saber o que mais vive nas entranhas daquele lugar medonho com aves estranhas e aracnídeos mutantes. O mesmo vale para algumas texturas que funcionam bem, mas que se tornam um pouco repetitivas dentro de uma mesma fase.
A perspectiva também prega algumas peças ocasionalmente:alguns cantos são absolutamente invisíveis, há folhas e barrancos “escondidos” e algumas paredes que limitam o campo de visão. O recurso de tornar esses elementos semitransparentes usado em outros jogos — como Dead Nation ou Diablo — seria de grande valia aqui, e é algo que certamente não deve ser tão complexo para ser corrigido com um patch.
Em termos sonoros, há uma ambiência também muito bem resolvida, sem exageros na mixagem, que dão um tom coerente com o que é visto. A mixagem é até um pouco econômica e poderia estar mais presente, criando tensão e jogando com a expectativa do jogador. Musicalmente, o jogo é bastante coeso e, como um todo sonoro, não há problemas notáveis ou que interfiram na experiência, ainda que poderia ser mais marcante e usar o carisma do personagem de uma forma mais presente.
Eliosi’s Hunt é um jogo muito bonito, dotado de uma estética visual bastante marcante e que bebe (voluntariamente ou não) de muitas das melhores fontes que tratam de mundos alienígenas e fantásticos. Apresenta espaços tradicionais em termos temáticos, mas consegue ser bastante original nos detalhes e funciona muito bem ao ser integrado a um tratamento sonoro competente e eficaz.
Conclusão
A análise de jogos brasileiros sempre traz consigo uma missão a mais que de games gringos: a da busca pela imparcialidade independentemente do apreço ou mesmo da boa vontade com esse setor de nossa indústria que desejamos que floresça cada vez mais. Por vezes, podemos até relevar equívocos em um exercício de “ah, mas por ser brasileiro, está até que bom demais”. Fazemos isso com filmes, séries e tantas outras coisas em um exercício quase contaminado pela tal “síndrome de vira-lata”.
Felizmente, Eliosi’s Hunt passa longe de precisar disso. Pelo contrário, o que temos aqui é um game absolutamente completo em sua proposta, muito bem resolvido em termos visuais e narrativos e com uma mecânica ousada. Traz consigo uma dificuldade elevada que visa atender a um público exigente não pela nostalgia, mas pelo verdadeiro desafio. Pode ter pontos que agradem mais ou menos dependendo daquilo que o jogador espera, tais como alguns detalhes da movimentação ou do sistema de tiro, mas é algo muito mais graduado pelo gosto pessoal do que pela análise técnica.
Deste modo, Eliosi’s Hunt tem um potencial enorme de encontrar um público cativo e que independe das suas origens tupiniquins. Para nós, de diferente, só o orgulho de ver mais um ótimo trabalho de criadores nacionais ganhar seu espaço dentro deste meio tão competitivo e cheio de alternativas. Melhor ainda com um game cativante, imersivo e muito carismático. Eliosi é zeliciano e tem uma pitada de Han Solo, mas também não deixa de ter a boa malandragem brasileira correndo em suas veias alienígenas.
Eliosi’s Hunt está disponível para PC e Playstation 4 e, mesmo tendo um título internacional, está localizado tanto para o inglês como para o bom e velho português brasileiro.