Análise Arkade: a magia Disney + Square está de volta em Kingdom Hearts III
Kingdom Hearts III já está entre nós! Depois de mais de uma década de espera, enfim encerra-se a jornada de Sora, Donald, Pateta e seus amigos! Mas será que este terceiro jogo é bom? Confira agora nossa análise completíssima e descubra!
Uma história (bem) longa e confusa
Kingdom Hearts. Parece que foi ontem que esta série nasceu, mas a verdade é que ela já tem quase 20 anos. E embora o mais novo jogo da série seja “apenas” o terceiro, a franquia como um todo já possui mais de uma dezena de títulos — e isso sem contar mangás e conteúdos em outras mídias.
Esse grande número de títulos — lançados para um monte de plataformas diferentes, indo do PS2 e do PSP, passando pelo Nintendo DS e tendo até jogos de browser — complica a vida de quem quer entender a história da série. Claro, hoje já é possível conhecer a história toda em uma única plataforma (no caso, o PS4, que recebeu remasters de praticamente tudo), mas o fato é que, mesmo quem gosta muito da série precisa fazer um esforço para acompanhar a história e todas as suas maluquices que envolvem realidades paralelas, viagens no tempo e corações aprisionados.
Kingdom Hearts III chegou com a missão de concluir esta complexa narrativa multidimensional. Uma conclusão que os fãs da série aguardaram ansiosos por muitos anos. Se a conclusão em si é boa ou não, fica a seu critério, mas a verdade é que, como jogo de videogame, Kingdom Hearts III não decepciona!
Sem entrar em muitos detalhes — não vou fingir que domino toda a história e a cronologia da série –, Kingdom Hearts III nos coloca mais uma vez na pele de Sora, que outrora parecia ser o “escolhido”, mas que na verdade não possui o título de Keyblade Master. Para piorar, Sora perdeu alguns de seus poderes, e, ao lado de seus eternos companheiros Donald e Pateta, irá viajar por diversos mundos temáticos Disney/Pixar para aprimorar suas habilidades, e tentar se reconectar com seu “power of the waking” perdido.
Em paralelo a isso, vemos a ascensão de Master Xehanort — o verdadeiro vilão da série — ao topo de uma nova Organization XIII (que não é aquela que conhecemos anteriormente), uma versão ainda mais maligna da seita, constituída basicamente por diferentes versões de si mesmo (pois é). Ele planeja deflagrar uma nova Keyblade War, e na esperança de detê-lo, Mickey e Riku devem reunir os Keyblades Masters “do bem” — que incluem, por exemplo, Terra e Aqua, personagens vistos em alguns daqueles spin offs que engrossam o lore da franquia. A missão deles corre em paralelo à de Sora e seus amigos, e tudo isso vai culminar em uma batalha de “bem x mal” em um ambiente pra lá de propício: um cemitério de keyblades.
Isso é um resumo BEM superficial do que rola em Kingdom Hearts III. Quem acompanha a série sabe que sua trama foi ficando cada vez mais complexa, e ainda que este novo jogo traga um “resumo” dos acontecimentos anteriores (5 vídeos, que podem ser acessados pelo menu principal), é fato que há tantos personagens e acontecimentos sendo mencionados a todo momento que o ideal é que você, no mínimo, faça uma pesquisa prévia para não ficar perdido.
Veja bem, estamos falando de um jogo onde diversos personagens têm mais de uma versão (Roxas, por exemplo, é a versão Nobody do Sora), ou renasceram de outras formas. Aliás, um Nobody é o que sobra quando um indivíduo perde seu coração — Sora perdeu o seu uma vez lá no primeiro Kingdom Hearts, chegando até a ser um Heartless por algum tempo.
Teoricamente, um Nobody não pode coexistir com seu “dono”, mas uma de nossas missões em Kingdom Hearts III é justamente salvar Roxas — cujo coração está dentro de Sora (?!) –, ou seja, a franquia distorce suas próprias regras de várias maneiras. E quando vários membros da “antiga” Organização XIII reaparecem com outros nomes, e agora do lado “do bem”, fica difícil não se sentir perdido com tantos nomes e citações a eventos passados.
A verdade é que a história é confusa pra caramba, mas acho que isso não desmerece nem o último jogo nem a série como um todo. Na verdade, a própria SquareEnix entende a bagunça, e já de início meio que “abraça a zoeira”, em uma tela que brinca com a confusão numérica que envolve especialmente os remasters da série, e nos brinda com isso:
Pois bem, esta tela é apenas o início de uma grande aventura — dividida em várias aventuras menores –, onde iremos viajar para diversos mundos temáticos da Disney, ajudando personagens famosos enquanto destruímos Heartless, Nobodies e Unverseds utilizando uma vasta coleção de keyblades, magias, summons e brinquedos de parque de diversões (?!).
Explorando novos horizontes
Os mundos temáticos Disney, obviamente, correspondem a grande parte da diversão de Kingdom Hearts III, e há muita variedade aqui: do clássico Olimpo dos deuses de Hércules até as montanhas gélidas do “neo-clássico” Frozen, este novo capítulo da saga parece menos preocupado em revisitar a história da Disney, e mais interessado em aproveitar personagens e universos mais modernos.
Por exemplo: esta é a primeira vez que animações produzidas pela Pixar fazem parte de um jogo da série. São dois mundos — Toy Story e Monstros S.A. — e eles são simplesmente incríveis. Toy Story acaba sendo o mundo mais “antigo” entre os novos que visitamos (acredite ou não, o primeiro filme já tem quase 25 anos… pois é, estamos ficando velhos), e o fato de Woody, Buzz e cia. terem marcado a infância de muita gente sem dúvida torna este mundo ainda mais especial.
Pessoalmente, acho que a falta dos “verdadeiros clássicos” da Disney é um retrocesso: os jogos anteriores visitavam animações muito mais antigas, como Peter Pan, Pinóquio ou mesmo Steamboat Willie (o primeiro desenho animado do Mickey!), enquanto aqui a grande maioria dos mundos consiste em filmes lançados nos últimos 10 anos.
Ok, entendo que essas são as “novidades” que a Disney lançou desde o último episódio principal de Kingdom Hearts, porém, não acho que a série deveria levar isso em conta. E há algumas escolhas um tanto questionáveis, tipo basear todo o mundo dos Piratas do Caribe no terceiro filme — de uma franquia que já soma 5 filmes e deve passar por um reboot em breve. É um trecho muito específico de uma saga que foi perdendo seu apelo com tempo.
Ok o visual destes filmes mais modernos é incrível na telona e também está incrível no game, mas o fato dessas obras não terem marcado a infância da gente — falo como um fã de Kingdom Hearts que já passou dos 30 e acompanha a série desde o PS2 — torna-as menos interessantes para a marmanjada que cresceu junto com o Sora.
Mas enfim, né? Vamos seguir com este review e falar do…
Gameplay
Na prática, o gameplay de Kingdom Hearts III é uma evolução do que vimos nos jogos principais anteriores: a exploração segue similar — agora em mapas muito maiores — e o combate é um hack n’ slash acelerado, com foco em ataques físicos, magias, habilidades em conjunto e evocações.
Deixo abaixo uma intensa batalha no mundo de Enrolados, repleta de magias e habilidades especiais:
Kingdom Hearts III é um jogo muito mais vertical. Sora pode literalmente correr por certas paredes (nem é aquela corridinha de parkour, é corrida, mesmo!), e essa verticalidade também se aplica aos combates. Há uma nova mecânica chamada FlowMotion que consiste justamente em aproveitar árvores, postes e paredes para se locomover e atacar. A novidade demanda um tempinho de adaptação, mas depois que já estiver acostumado, você vai literalmente flutuar pelos combates, emendando magias, golpes e habilidades especiais com muita desenvoltura.
As fusões do jogo anterior (tipo a Valor Form e a Master Form) saem de cena, dando espaço para novos tipos de habilidades contextuais, que podem ser acionadas aos montes no calor dos combates. Coisas como evocar reluzentes brinquedos de parque de diversões, summonar outros personagens, ataques em conjunto com seus aliados de party, transformações de keyblade e outras maluquices que você viu no vídeo ali em cima entram nesta conta, podendo ser utilizadas conforme os combates se desenrolam.
Eu falei de transformação de keyblades ali em cima, e esse é um dos aspectos mais legais do novo game: cada keyblade possui uma ou duas transformações, podendo virar escudos, manoplas, lanças ou mesmo um par de ioiôs gigantes. Cada keyblade é realmente única, e todas podem ser aprimoradas no workshop dos Moogles.
Uma coisa muito legal é que agora não precisamos mais desmontar a party para receber novos integrantes: nos jogos anteriorse, era bem triste ter que tirar Donald ou Pateta do time para colocar outro herói. Agora isso não é mais necessário: Donald e Pateta são membros fixos, e quando outros personagens surgirem — em seus respectivos mundos — a party aumenta, podendo ficar com até 5 integrantes.
Também é legal a variedade de gameplay que encontramos em cada mundo: na Toy Box de Toy Story, por exemplo, podemos entrar em mechs de combate para dar cabo dos inimigos. Já no mundo dos Piratas do Caribe o jogo vira praticamente um AC: Black Flag: podemos explorar livremente o oceano em um navio, desbravar ilhas em busca de baús de tesouros e até nos engajarmos em divertidas batalhas contra outras barcos! Cada mundo acrescenta algo único e novo às mecânicas.
Deixo aqui uma das batalhas navais do mundo de Piratas do Caribe:
Uma coisa (nem tão legal) é que o lance das Gummi Ships está de volta. Eu acho isso meio chato, mas sei que tem quem goste. É possível montar e customizar sua nave, e agora enquanto está viajando entre um mundo e outro, você pode até ser abordado por um chefão. As boss battles de Gummi Ships podem ser bem demoradas, e caso você não gaste algum tempo melhorando a sua nave, pode penar um bocado nelas.
Além disso, houve espaço para a inserção de diversos mini-games. O ratinho de Ratatouille por exemplo, pode cozinhas deliciosos pratos que, quando consumidos pelo grupo, rendem buffs temporários (como em Final Fantasy XV). Nosso trabalho, claro, é coletar ingredientes para ele, mas há alguns mini-games culinários bobinhos, mas divertidos.
Além disso, há dezenas de mini-games inspirados em desenhos clássicos da Disney que podemos encontrar pelo mundo e liberar para jogar através do Gummiphone (o smartphone do Sora, que também serve para tirar selfies e funciona como compêndio). Aqui a nostalgia bate forte, pois eles remetem aos joguinhos que foram os precursores dos portáteis.
Tipo assim, ó:
No geral, o gameplay é bem familiar: eu estava (re)jogando o Kingdom Hearts II.5 (remasterizado) até poucas horas antes de receber o novo, e é notável quanto do gameplay em si permaneceu intacto — inclusive as coisas estranhas, tipo o pulo ser no O, e não no X. Embora algumas mudanças não tenham sido tão boas (#chateado por tirarem as fusões), quase todas as demais novidades são boas (Evocações de brinquedos! Keyblades que podem ser melhoradas! Muitos atalhos para magias!), e contribuem para deixar a exploração e as batalhas mais ágeis e empolgantes.
Cadê Final Fantasy?
Uma coisa que me deixou bem chateado é a total ausência de personagens de Final Fantasy em Kingdom Hearts III. Ok, ainda temos um Moogle atendendo a lojinha, uma referência a um Cactuar aqui e uma Gummi Ship em forma de Tonberry ali, mas fora isso, a galera de Final Fantasy foi totalmente deixada de fora deste novo capítulo da saga.
Por um lado, eu entendo: Kingdom Hearts possui um lore gigantesco, e construiu seus próprios heróis e vilões ao longo dos jogos. A franquia não precisa mais usar Final Fantasy como “muleta” para chamar a atenção do público, e está mais preocupada em contar sua própria história, com seus próprios personagens.
Por outro lado, acho que com isso a série abriu mão de algo que, querendo ou não, fazia parte de seu DNA. Kingdom Hearts meio que começou como um baita fan service — personagens da Disney e de Final Fantasy coexistindo e lutando lado a lado — e isso não só construiu boa parte do charme da saga, como foi incorporado ao seu universo. Alguns personagens nem eram apenas coadjuvantes de luxo: gente como Squall, Yuffie, Cloud e Auron tinham relevância narrativa, e estavam envolvidos em acontecimentos importantes da trama.
Me arrepio até hoje com a cena em que Cloud e Squall lutam juntos durante a batalha de Hollow Bastion, e ela ainda que faz uma ponte com acontecimentos de FF VII e do filme Advent Children, o que só deixa tudo ainda mais épico.
Se você não lembra, estou falando dessa cena aqui:
Kingdom Hearts era isso: Disney + Final Fantasy + novos personagens. Quando se tira um dos elementos desta conta, a fórmula ainda funciona, mas perde parte de seu apelo. Eu passei diversas horas esperando algum rosto conhecido aparecer — especialmente com este visual soberbo do jogo! — mas quando percebi já estava no último mundo, com quase 40 horas de jogo… e ninguém apareceu. Foi bem decepcionante.
Não sei se isso pode ser considerado spoiler ou mesmo ponto negativo, mas fique avisado: se você esperava mais cenas como esta que vimos ali em cima, pode ir tirando seu Chocobinho da chuva. Aqui o foco é no lore e nos personagens originais de Kingdom Hearts. Que são bem legais, no geral, mas né? Fica um vazio.
Audiovisual
Este é um ponto que a SquareEnix realmente acertou a mão: Kingdom Hearts III é um jogo lindíssimo. Os cenários estão muito maiores, e a já mencionada verticalidade aumenta ainda mais as possibilidades de exploração. O character design sempre inspirado (e cheio de zípers) da série continua afiado, e tanto os personagens do universo do jogo quanto os da Disney estão muito bem modelados — ainda que Riku e Kairi estejam bem diferentes do que eram antigamente, ao passo que Sora não mudou tanto.
Considerando que a série principal (numerada) ficou toda no PS2, esta é a primeira vez que vemos um jogo da série pensado e produzido para a atual geração, e ele não decepciona: rodando na sempre versátil Unreal Engine 4, o jogo dá um show de visual, especialmente em efeitos de partículas. O framerate é um pouco inconstante em todas as plataformas, mas pode ser travado em 30fps caso o jogador prefira uma experiência mais estável.
Como já dito, as animações em CG atuais tem visuais de cair o queixo, e deve ser bem difícil de identificar o que é filme do que é jogo, mesmo em casos com Frozen ou Enrolados, que são produções recentes. E o mundo de Piratas do Caribe chega a ser uma sacanagem de tão bonito: Jack Sparrow beira o fotorrealismo, e mesmo Sora, Donald e Pateta recebem um tratamento mais “realista” quando estão por ali.
Compare:
Estas transformações são parte do charme da franquia, e continuam muito interessantes aqui — e isso vai muito além dos exemplos mostrados acima. Nos jogos anteriores, vimos Sora, Donald e Pateta virarem leões, tartarugas, polvos, e por aí vai. Neste novo capítulo da série, eles tornam-se brinquedos no mundo de Toy Story, monstrinhos em Monstros S.A. e por aí vai. Vê-los em outras formas faz parte da diversão!
A trilha sonora traz algumas músicas que marcaram a franquia, mas também apresenta diversas novas composições, todas lindamente orquestradas. A SquareEnix usou e abusou as licenças obtidas, pois temos até a grudenta Let It Go presente no game, com direito a clipe “diferenciado” e tudo. A popstar nipônica Utada Hikaru assina mais uma vez a música-tema do game, que não é nem de longe tão boa quanto Simple & Clean, mas é bacana.
Esqueça as monótonas caixas de texto dos jogos anteriores: em Kingdom Hearts III, todos os diálogos são falados. As vozes mais famosas da Disney marcam presença aqui, e Sora segue sendo dublado por Haley Joel Osment — aka o menininho d’O Sexto Sentido, que embora já seja um homem de 30 anos, se esforça para soar como um adolescente.
Mesmo as substituições são imperceptíveis, pois foram contratados os dubladores oficiais da Disney que cuidam dos personagem em produtos “menos importantes” (como games). Por exemplo: nos filmes quem dubla o Woody é o Tom Hanks, nos games e outros produtos da marca, quem assume a voz do caubói é o irmão dele, Jim Hanks. A voz dos dois é idêntica, então aposto que você nem notaria que mudou o dublador se eu não te falasse. O mesmo vale para Jack Sparrow e tantos outros personagens: os substitutos fazem um trabalho tão bom que é difícil notar que não é a mesma voz de sempre.
Como nem tudo são flores, aqui vai um baita ponto negativo: Kingdom Hearts III está totalmente em inglês, e, tirando a caixa do jogo, não recebeu absolutamente nenhum suporte ao nosso idioma. É de se admirar que um jogo deste calibre não tenha recebido pelo menos legendas, afinal, estamos falando da Square, que já trouxe Tomb Raider dublado para cá e fez um ótimo trabalho de localização com as legendas de Final Fantasy XV. Uma baita mancada, sem dúvida.
Conclusão
Como fã que jogou os jogos principais da série e alguns poucos spin offs, era com muita expectativa que eu aguardava o lançamento de Kingdom Hearts III — até mencionei ele como meu jogo mais esperado do ano em nosso podcast de janeiro. E, no geral, o jogo corresponde às expectativas: está lindo, divertido e muito gostoso de jogar.
Apesar disso, Kingdom Hearts III foi menos mágico para mim porque 1) eliminou a turma de Final Fantasy e 2) ficou muito preso em animações modernas, que não têm tanto valor nostálgico/sentimental. Eu simplesmente não me importo tanto com Frozen ou Enrolados quanto me importo com Peter Pan e O Rei Leão. Mas, isso é questão de gosto: o que temos aqui ainda é um jogo excelente, que cumpre seu papel como entretenimento, oferecendo mais de 40 horas de altas aventuras ao lado de alguns dos personagens mais emblemáticos da cultura pop.
Eu realmente acho que a história da série se tornou mais complexa do que precisava ser com o passar do tempo — quase tenho pena de quem for jogar esse aqui sem nunca ter tido contato com a série –, mas o que temos aqui sem dúvida encerra um ciclo iniciado lá em 2002. E consegue fazer isso e ainda deixar pistas de que a história pode tomar novos rumos no futuro. Só espero que não tenhamos que esperar mais 13 anos por um novo jogo…
Enfim, seja você um fã de longa data ou um novato que chegou agora a este mundo, Kingdom Hearts III consegue te cativar com seus personagens e te divertir com seu gameplay… mas também pode te confundir com sua história pra lá de mirabolante.
Kingdom Hearts III foi lançado em 29 de janeiro, e está disponível para Playstation 4 e Xbox One.