Análise Arkade – A experimentação supera a nostalgia em Live A Live

2 de agosto de 2022
Análise Arkade - A experimentação supera a nostalgia em Live A Live

JRPGs, por definição e por obviedade, são compreendidos basicamente como RPGs feitos no Japão, guardando uma série de características estéticas e mecânicas que foram consagradas ao longo dos últimos 40 anos. Curioso é que essas tais características, quando tentamos listá-las, não são tão objetivas e palpáveis assim. Está muito mais para um conjunto de sensações, de percepções sensoriais, de um tipo de experiência muito específica. E, não raro, são vivências muito particulares para cada um, incluindo nós, jogadores ocidentais.

Live A Live, lançamento exclusivo da plataforma híbrida da Nintendo, é basicamente a reconstrução de um clássico pouco glorificado (considerando sua qualidade) de quase 30 anos atrás, mas que carrega consigo um legado que poderia, muito bem, sintetizar tudo o que se espera de um jogo do gênero, não só pela grandiosidade do seu escopo, mas por conseguir traduzir esse sentimento do JRPG raiz sem se vender pretensioso ou ganancioso demais. Dentro do seu escopo, ele é gigante, não porque tenha essa meta, mas sim porque faz tudo o que promete com generosidade e cuidado.

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A grande história

Live A Live é composto por uma série de aventuras (oito no total, considerando a final) que se passam em diferentes momentos temporais com personagens distintos. Da pré-história a um futuro distante, somos apresentados a uma história diferente a cada incursão onde acompanhamos nossos protagonistas em jornadas bastante familiares na nossa cultura – defender uma vila de uma gangue de bandidos ou salvar uma princesa raptada são só alguns dos clichês comuns dentro do jogo. Felizmente, podemos escolher qualquer uma delas a qualquer momento, sem obrigaç˜ões lineares ou pré-requisitos.

Eventualmente, haverá um momento de convergência que sintetiza a experiência como uma só, e não uma coletânea de pequenos games, contos se você assim desejar, desconjuntados, mas não é isso que define a coesão do formato. Cada um dos heróis dessa grande narrativa tem seu próprio caminho, sua própria redenção, com arcos fechados e muito bem concluídos em si. Por isso, a sequência com que fazemos as coisas não importa, porque não existe qualquer percepção de interdependência.

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Curiosamente, porém, se vistos de forma separada, nenhum desses capítulos seria tão significativo assim. É dentro de um plano maior que eles ganham relevância, mas não como nos filmes da Marvel onde cada um traz um pedaço do total, um caco de um mosaico diverso. Essas ligações são muito mais sutis, talvez até ocultas para grande parte de nós, mas isso pouco importa, já que viver uma vida, com o perdão do empréstimo do título, é solitário, é individual, é próprio de cada um.

Por si, cada bloco tem uma duração relativamente curta dentro dotodo, com alguns que podem ser completados tranquilamente em duas horas, outros um pouco mais. Apoiadas fortemente na construção de narrativas poderosas e consagradas, apresentando personagens interessantes – alguns dos NPCs mereciam ter sua própria jornada contada em outro momento – essas passagens tem um conjunto de regras conceituais único e válido para tudas elas, como sistemas de combate, acesso a menu, gerenciamento de equipes, recursos e equipamentos, mas cada uma carrega consigo também suas peculiaridades, ousando diversificar e trazer novidades a cada novo recomeço.

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Jogando a vida

Mecanicamente, estamos diante um clássico RPG que mescla a exploração aberta e relativamente livre do ambiente com combate por turnos baseado em um sistema de grade (ou grid para os mais puristas) e isso é válido para praticamente todos os momentos do jogo e, consequentemente, de seus componentes. Em ambientes fragmentados em um design labiríntico em grande parte do tempo, as passagens mais longas são também as que oferecem mais variedade de caminhos e coisas a ser fazer.

Encontrar coisas, como equipamentos de armadura, armas mais poderosas e outros itens de suporte (dentro ou fora das batalhas) é a regra básica da exploração em vários desses momentos, mas nem todos. Há, por exemplo, unidades narrativas onde sequer subimos de nível ou avançamos do ponto A ao ponto B e, deste modo, toda a história se passa no mesmo cenário. Resumindo, nem todas as verdades de um valem pro outro. Se em certos momentos me vi incentivado a farmar XP para ficar forte o suficiente para inimigos mais cascudos, em outro isso sequer é uma questão.

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Talvez o modelo que seja mais sólido em qualquer das jornadas seja o combate, o qual não é lá uma grande novidade para nós atualmente – já vimos outros tantos jogos que se apoiam nesse modelo – mas que pra 1994 significava um diferencial importante. A cada encontro, somos colocados em uma arena com um ou mais adversários, com movimentação livre e, as vezes, com alguns obstáculos. Cada ataque tem sua área de alcance, nem sempre distribuída igualitariamente a partir de um ponto concêntrico, e a energia do personagem se distribui entre a movimentação dentro do tabuleiro e a força necessária para o movimento especial.

Mesmo sem estarem divididos cartesianamente, os arquétipos clássicos estão todos lá de alguma forma, mesmo que nem todos eles participem de todas as passagens e alguns personagens podem até condensar vários perfis em si. Por exemplo, ao subir de nível e ganhar novas habilidades, um brutamontes pode ter capacidades de ataques a distância ou de mais perícia, e um atirador pode sair no braço em confrontos diretos. Já o indispensável dom da cura por vezes não encontra sua personificação e isso pode ser um problema para quem se apoia no sistema de enfrentar inimigos de peito aberto com a segurança que será curado depois.

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O grande trunfo de Live A Live é conseguir renovar, dentro do próprio modelo estabelecido para si mesmo, suas próprias mecânicas de forma que ainda pareçam coerentes entre si ao mesmo tempo que trazem aspectos diferenciais que tornam cada período explorado algo único. O level design também brilha ao trazer ambientes ricos, passagens secretas e acessos especiais sem parecer só uma coleção de labirintos e bolsões abertos, tudo alimentado por um trabalho artístico que brilha e que, o tempo todo, salta aos olhos.

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Uma vida bela

Nem sempre o apelo ao visual nostálgico consegue atingir os melhores resultados nos jogos mais recentes, e por vezes parecem funcionar muito mais como uma muleta técnica do que algo que faça sentido para o projeto. Felizmente, aqui os visuais típicos do SNES nos anos 1990 são atualizados de uma forma muito caprichosa, em um estilo que tem se solidificado como um HD-2D, e que tem mostrado resultados memoráveis, como nos recentes Octopath Traveler e Triangle Strategy. A mistura da bidimensionalidade de personagens e cenários e uma profundidade de ambientes é, na maioria do tempo, algo encantador.

Meu maior incômodo nesse aspecto está no campo de batalha, e nem sempre o alcance dos golpes em cada quadrante da grade funciona com o estilo artístico. O game tem seus artifícios para driblar essa dificuldade, já que os inimigos que podem ser atingidos por ataques distantes ou em área, por exemplo, brilham antes mesmo de decidirmos pelo golpe. Nem sempre é possível diferenciar o que é cenografia e o que é plataforma por onde se pode andar também, mas é um problema menor que em nada interfere na qualidade audiovisual da obra.

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Destaco a parte sonora, aliás, porque há algum tempo eu não vejo uma coleção tão cativante de canções temáticas que se encaixam com tanta qualidade com o período histórico retratado e com as referências clássicas que temos enquanto memória afetiva. É um trabalho com assinatura, que compreende a obra, que sabe transitar pelos gêneros narrativos tão estabelecidos pelo cinema sem perder sua essência e, uma vez mais, sua coesão com o todo. As novas versões, na comparação com as originais, ganham novos contornos instrumentais que valorizam as composições e a cultura ali retratada.

Esse cuidado quase artesanal – os créditos cinematográficos destacam que equipes diferentes trabalharam em cada passagem – pode ser visto tanto nos cenários, grandiosos e ludibriantes, quanto nos pequenos detalhes. Dos ricos e densos jardins de uma fortaleza oriental à bola de feno passando no timing perfeito dos bons duelos dos westerns; dos cenários retro futuristas espaciais às telas de seleção de adversários no melhor estilo fighting games, tudo parece ser orquestrado por verdadeiros fãs dos videogames e das grandes histórias e, agora, traduzidos por amantes do jogo original para sistemas modernos.

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Ainda que não tenhamos – como já é de se esperar dos jogos do Switch – a tradução para o nosso bom e velho português brazuca, nem o trabalho de vozes, nem o de textos, a redação do jogo é também algo admirável, ainda que não fuja de alguns atalhos próprios de histórias mais simples. Mesmo em passagens mais tensas, há aqui um humor muito refinado, quase inocente, que arranca boas risadas em piadas bem colocadas, situações de pura comédia pastelão e muito carisma e expressividade mesmo com esse estilo gráfico menos detalhado.

Simplicidade, aliás, que também pode ser vista na interface de usuário, muito bem organizada e intuitiva, mesmo precisando servir a vários estilos diferentes de jogo. A máxima do “menos é mais” funciona muito bem aqui, com menus acessíveis e organização prática de equipamentos, sem árvores complicadas de habilidades ou coisas do tipo. Talvez faltem formas de organização de inventário com melhor acesso a categorias diferentes de itens, já que nem sempre é possível entender se algo é feito para se vestir ou para se usar em combate, por exemplo, mas bastam algumas tentativas para que aprendamos o que pode ou não ser feito.

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Conclusão

Depois da geração das remasterizações, parece que estamos entrando de vez na era dos remakes, e uns se saem melhor do que outros não só porque realmente atualizam elementos datados das obras originais como também reapresentam jogos presos no tempo para um público mais novo. Live A Live é um desses raros exemplos de coisas que se mostram bem-vindas, e mais que isso, necessárias. Mesmo hoje é um jogo ousado, diferente de outros disponíveis no mercado.

Com muita personalidade, consegue renovar o interesse do jogador a cada nova jornada, mesmo que para isso precise reconquistar seu público com um novo herói a cada meia dúzia de horas, algo que não é para qualquer um. Inevitavelmente, teremos um recorte preferido, uma passagem que gostaríamos que durasse mais, e outras que achemos mais arrastada do que deveria, mas isso é inerente ao nossos gostos pessoais e expectativas. Ainda assim, é inegável que a aventura é equilibrada, divertida e desafiadora na medida certa.

Análise Arkade - A experimentação supera a nostalgia em Live A Live

De forma muito justa, Live A Live se descola da alcunha de ser mais um remake que requenta um clássico em troca de algumas moedas, por mais fiel que se mantenha às origens. Pouco importa se você experimentou a versão original (que chegou aqui no ocidente somente de forma, digamos, pouco oficial) ou se é a primeira vez que ouve falar dela, porque o aspecto comparativo aqui é tão desnecessário quanto inútil. A versão de 2022 brilha por si, foge do apelo da nostalgia pela nostalgia, e poderia muito bem se passar por um (ótimo) jogo moderno original.

Lançado exclusivamente para Nintendo Switch, Live A Live traz a assinatura da Square Enix cada vez mais sedimentada em sua nova fase. O jogo, seguramente um dos melhores RPGs do ano, está disponível desde 22 de julho de 2022 com textos e vozes em inglês (pela primeira vez) e no original japonês.

Paulo Roberto Montanaro

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