Análise Arkade: Manual Samuel é bizarro, e isso é bom demais!
De vez em quando, vemos por aí alguém fazendo aquele comentário clássico de que os jogos atuais não trazem mais nada de original ou que os games ficaram sérios demais. Em parte, esses comentários tem lá sua dose de razão, principalmente quando falamos do universo de lançamentos AAA. Felizmente, porém, o mercado cada vez mais em evidência dos jogos independentes (ou simplesmente indies) está aí para dizer que ainda há sim muita coisa a se inovar. Aqui está Manual Samuel, desenvolvido pela Perfectly Paranormal, para não me deixar mentir.
Só como um sintoma desse potencial inovador do jogo, é difícil até classificar o jogo em termos tradicionais. Eu poderia dizer que é um jogo 2D sidescroller e estaria certo. E ao mesmo tempo não poderia estar mais errado, já que o jogo pouco tem a ver com outros jogos deste gênero. Poderia dizer que é um simulador de cotidiano, o que além de não fazer sentido nenhum, também não conseguiria dizer do que o jogo se trata de verdade. Então, vou partir para falar do game apenas e deixar a sua definição de lado.
Uma história inovadora… e corriqueira
Em termos narrativos, Manual Samuel é algo que, em tese, não é tão novo assim. Samuel é um cara comum, com uma namorada comum e que morre da forma mais comum possível logo na introdução do jogo. Não, isso não é spoiler, já que esse é a premissa, o plot narrativo que vai realmente dar ao jogo um propósito, um objetivo.
O game de verdade começa a partir do momento em que ele, já no inferno, meio que sem-querer-querendo, faz um acordo com a Morte, um verdadeiro representante da cultura hip-hop (isso não é nem o começo das coisas que não fazem sentido) para que volte a vida. Só que para isso, terá que reaprender a viver… do zero! Isso inclui aprender a dirigir, trabalhar, e mesmo coisas mais básicas, como andar, respirar, piscar os olhos, falar, comer ou mesmo manter a coluna ereta.
Então, basicamente, a jornada do jogador na pele de Samuel será a de reaprender manualmente todas as coisas que nos são automáticas, o que parece meio bobo a princípio mas bastam alguns segundos para se perceber o potencial cômico disso tudo. O jogo traz, em cada uma das fases – divididas em ações corriqueiras do cotidiano de Sam – um humor as vezes ácido, às vezes mais inocente e físico digno dos melhores pastelões. A presença da Morte acompanhando o protagonista é absolutamente impagável.
O jogo traz consigo uma dinâmica leve, incorpora a cultura das hashtags em sua linguagem e leva o nosso herói para os caminhos mais bizarros e inimagináveis em busca de uma nova chance de viver novamente. Então, ao mesmo tempo que se deve aprender a colocar os sapatos sem deixar de respirar, a narrativa vai para situações esdrúxulas muito rapidamente até o desfecho, que infelizmente acaba chegando rápido demais.
Controlando tudo
Pois então… como falar da jogabilidade de Manual Samuel? Bem, o título do jogo já entrega o que é o sistema de controle dele. Tudo é manual, literalmente. Para conseguir prosseguir, cada fase do jogo tem seus próprios desafios e a dificuldade não se encontra exatamente neles. O que realmente faz a cuca fritar e os dedos se embaralharem é fazer tudo ao mesmo tempo em que se preocupa em simplesmente estar vivo. O jogador tem que inspirar e expirar, piscar, caminhar e manter a coluna firme (cada ação dessas com um ritmo e um botão diferente) e ainda fazer a tarefa determinada. É uma loucura!
Os controles acabam parecendo desajeitados e em momentos mais tensos acabam ficando um pouco confusos. A ideia, ao menos é o que parece, é que realmente seja assim mesmo para passar a sensação de que as coisas que fazemos com nosso corpo de forma naturalizada seriam muito trabalhosas se tivéssemos que pensar em cada uma delas na nossa rotina. Imagine estar lendo esse texto agora se preocupando em não esquecer de respirar ou de piscar, por exemplo.
Ao mesmo tempo, Manual Samuel segue a risca a cartilha do level design no que diz respeito a ensinar a jogar o jogo, algo que parece bobo e até óbvio, mas que nem sempre é tão bem realizado hoje em dia. Durante a jornada, o jogador consegue evoluir no sentido de aprender cada nova função que, mais tarde, será cobrada de forma mais rígida. A caminhada, onde o jogador controla uma perna de cada vez, por exemplo, é só mais uma piada quando se aprende e se erra o próximo passo, mas em certa altura, esse ritmo será mais exigido.
Curioso ainda é que já na parte final, mesmo os erros serão cobrados enquanto parte da aprendizagem. Ou seja, até aquele deslize que a gente teima em repetir o jogo inteiro será utilizado de forma mais direta na hora mais importante do jogo. Sem entregar os rumos que a história toma, posso dizer que o jogo tinha tudo para ser irritante na medida em que aumenta de dificuldade, mas consegue fazer isso de forma tão descompromissada que mesmo o jogador errando, vai achar engraçado. Dá uma olhada no gameplay que gravamos logo do começo do “treinamento” de Sam:
Há ainda a possibilidade de se jogar colaborativamente com um segundo player local. Eu até imaginei que isso significaria alguém controlar a Morte e, de alguma forma, haver tarefas a serem realizadas por ela ou algo tipo. Mas é óbvio que isso não é o que foi feito. Pelo contrário, a coisa fica ainda mais caótica já que um segundo jogador controla metade do corpo de Sam, dividindo com o primeiro a tarefa de sincronizar os movimentos. É uma bagunça enorme e uma verdadeira lição do que é colaboração.
Parece confuso saber como se controla o protagonista? Então dá só uma olhadinha no esquema de controle para dois jogadores só pra ter uma ideia do que cada um precisa controlar. Aí imagine que quando se joga sozinho, todos esses comandos devem ser feitos por uma pessoa só. E decida o que parece mais confuso e atrapalhado:
Audiovisual
Uma coisa é bastante tradicional no jogo: a construção 2D. Todos os cenários, objetos e personagens seguem a estética do desenho livre, obviamente com um estilo bastante peculiar, como pode ser visto ao longo das diferentes ilustrações desta análise. A base está ali, inclusive no uso de diferentes camadas (ou layers) para dar a sensação de profundidade como visto em outros tantos jogos.
As vezes há até uma sensação de descuido quando há planos mais próximos de certos personagens que ficam meio borrados, característica clara de quando se aumenta uma imagem no Paint, por exemplo. Se é uma escolha estética ou realmente um problema de produção, é difícil saber. Depende muito mais da expectativa do jogador em assumir aquilo como um artista mais porcalhão ou realmente um defeito artístico. A mim, incomodou em alguns momentos.
O som também não foge muito dessa linha artística, sendo correto e bem funcional, até pelo estilo mais despojado assumido pelo jogo. Músicas econômicas, efeitos práticos e uma dublagem bem canastrona completam o pacote. Mais uma vez, o destaque é a interpretação vocal para a Morte e sua linguagem dos guetos americanos. Ainda que todas as demais vozes sejam bem encaixadas no estilo proposto, essa rouba a cena pra si. Outra ótima adição é um narrador todo pomposo e que solta ótimas tiradas.
Como um conjunto, Manual Samuel passa uma sensação de animação feita em Flash nos tempos onde a tecnologia era o que de mais avançado havia para conteúdos para a internet, inclusive com os mesmos problemas e limitações. Mesmo os movimentos, fluidos mas que as vezes deixam evidentes os pontos de articulação como bonecos de papel, carregam essa linguagem em si.
Conclusão
Manual Samuel é um achado. Sem nenhuma aspiração a ser uma obra de arte ou um jogo memorável, consegue seduzir pela simplicidade dos conceitos e pela originalidade com que toma a sua temática. Não tem vergonha nenhuma de ser caricato ou ainda de usar recursos clichês a serviço de uma história que toma rumos completamente inesperados em tão pouco tempo e usa de um humor muito bem dosado para divertir de forma verdadeira e como poucos jogos hoje conseguem fazer.
Peca, porém, por abusar desse estilo, perdendo um pouco de brilho visual e, principalmente, porque é uma experiência curta demais. Pode ser finalizado em menos de 3 horas, dependendo da capacidade do jogador em conseguir aprender a fazer tantas coisas ao mesmo tempo, o que é uma pena já que há muito potencial no que poderia acontecer em um dia comum na vida — e na morte — do Sam.
É possível, porém, prolongar a vida útil do jogo por meio do modo de Time Attack, procurando formas de avançar mais rapidamente em trechos mais atrapalhados. Ainda assim, é um tempo curto, mas muito bem gasto, sem barriga. Uma experiência recomendada.
Manual Samuel está disponível para Playstation 4, XBox One e PCs (via STEAM) desde o dia 11 de outubro (O game chega hoje na Steam). Infelizmente, está totalmente em inglês e a versão testada parece ter um bug, já que em teoria há o recurso de legendas (também em inglês) mas que, mesmo ligado, não funcionava. Uma pena, porque para quem não tem facilidade com o idioma original, perde-se muito do humor contido nas falas ao longo da jornada. De qualquer jeito, as trapalhadas do próprio jogador já são suficientes em si para render ótimas gargalhadas.