Análise Arkade: O mistério lynchiano de Virginia

10 de outubro de 2016

Análise Arkade: O mistério lynchiano de Virginia

Lucas Fairfax desapareceu e cabe a você, e sua parceria, investigarem o misterioso caso. Porém, a trama vai muito além de algo que sequer imaginaríamos. Confira a nossa análise de Virginia.

Virginia é ousado. É o primeiro jogo do estúdio independente Variable State e é fácil notar as inspirações que a equipe teve na hora de produzir o projeto, na verdade eles mesmos admitem que Virginia foi baseado em séries de TV como True Detective, Arquivo X, e o mais notável de todos, Twin Peaks, assim como o jogo Thirty Flights of Loving, de Brandon Chung. E assim como essas formas de entretenimento, Virginia promete se destacar o máximo possível enquanto se mantém nos mesmos arquétipos apresentados por eles. Mas será que mesmo com tanta influência, Virginia consegue se destacar? Assim como o seu enredo, a resposta é um pouco mais complexa do que um simples sim ou não.

Antes de falar sobre o que mais importa em Virginia — o seu enredo — preciso levantar uma discussão antiga que a equipe da Variable State fez questão de abordar em seu jogo: Afinal, até onde podemos considerar jogos que focam em experiências narrativas como Gone Home, Firewatch, The Vanishing of Ethan Carter e Everybody’s Gone to the Rapture, os famigerados walking simulators, como jogos de verdade?

Análise Arkade: O mistério lynchiano de Virginia

Afinal, isso é um jogo ou um filme?

Para mim essa questão nunca foi muito importante, sempre fui do ponto de vista que se o jogo é bom e a experiência com ele é satisfatória, eu não me importaria se a interatividade é mínima em comparação a shooters e outros gêneros mais tradicionais, que muitas vezes saturam o mercado e acabam servindo como um motivo para desenvolvedores reagirem desta maneira e produzirem jogos que fogem dos elementos que vemos em um jogo AAA. E sem querer entrar muito nos Bastidores do Jornalismo Gamer (cunhado pelo nosso editor Rodrigo), mas é por esse mesmo ponto de vista que acabo escrevendo análises sobre esses jogos para você, caro leitor.

Mas Virginia quer borrar a linha entre jogo e filme ainda mais, se mantendo nos conceitos mais básicos de um jogo contemporâneo enquanto conta a sua história como um filme em POV. Virginia se orgulha tanto disso que a tela de inicio foge do tradicional “Inicie o jogo” para um “Inicie o filme”, as fases são separadas em “cenas” e o jogo não te dá um tutorial porque ele simplesmente não precisa, já que a única interação real é mover o seu personagem e interagir com objetos para continuar a história.

Não acho a decisão necessariamente negativa mas é esperado que isso afaste algumas pessoas. Porém, ainda acho que o mínimo de interatividade em um jogo consegue manifestar sensações que um filme não conseguiria, então o fato de Virginia me dar a possibilidade de andar e interagir, mesmo que minimamente, é positivo por ter me dado uma experiência mais visceral e sincera, algo que, ao meu ver, não teria o mesmo impacto se estivesse em outra mídia.

Análise Arkade: O mistério lynchiano de Virginia

Mas jogabilidade está longe de ser o foco de Virginia, com a Variable State fazendo o máximo para apresentar este misterioso conto que aborda temas que sequer imaginei quando comecei a jogar, e isso porque estava de braços abertos para qualquer coisa que viesse em minha direção.

A premissa de Virginia é inicialmente baseada no sumiço do garoto Lucas Fairfax, um acontecimento incomum em uma cidade tão pacata como a de Kingdom, cabendo somente a você, Anne Harper, e sua parceira do FBI, Maria Halperin, descobrir o que está acontecendo. Em seu percurso, Virginia apresenta uma segunda trama em que o chefe da organização coloca Anne para trabalhar em assuntos internos envolvendo Maria, com você investigando tanto o sumiço de Lucas quanto as aparentes práticas suspeitas de sua parceira.

E nestes dois arcos que Virginia se entrelaça enquanto apresenta visuais surreais e difíceis de compreender no que imaginamos serem os sonhos de Anne, sendo que é feito o máximo para não sabermos quando que a realidade começa e os sonhos terminam . Búfalos aparecendo em quartos e salas. Imagens de uma porta emanando uma luz vermelha de suas frestas. Um pássaro vermelho que está presente em diversos lugares, e vários itens recorrentes na trama, servindo como símbolos para significados mais profundos e complexos.

Análise Arkade: O mistério lynchiano de Virginia

Virginia quer te deixar confuso. Não tem como você termina-lo e achar que entendeu o contexto por completo, e não é porque o jogo quer te faze-lo de burro, mas sim porque ele é extremamente ambíguo, abrindo diferentes interpretações para os objetos que você adquire e as cenas testemunhadas. A falta de coerência é proposital e jogar mais de uma vez é necessário para entender um pouco mais sobre a trama, cenas que talvez não faziam sentido podem fazer agora que você está jogando uma segunda, terceira ou até quarta vez, além dos diversos textos e análises que podem te ajudar compreender o que realmente aconteceu. E mesmo assim há grandes chances de você não ter uma resposta definitiva, possuindo uma conclusão própria dos acontecimentos.

Então o segredo é saber quando Virginia quer te deixar no escuro intencionalmente e quando se torna um erro por falta de compreensão dos desenvolvedores, e neste caso Virginia tanto acerta quanto erra.

Virginia apresenta sua história utilizando cenas e um trabalho interessante de edição que não faz uso de cutscenes propriamente ditas, deixando a trama fluída e ainda mais visceral pelas cenas fazerem parte da jogabilidade. Para isso são feitos cortes de dinâmicos que pulam de uma cena para outra, com estes cortes sendo utilizados para acelerar os momentos tedioso de andar por corredores ou para facilitar a história sendo contada.

Em um momento você está na casa onde Lucas mora e num rápido corte você já está no assento de passageiro com a sua parceira dirigindo o carro de volta para o escritório do FBI. Assim você, como jogador/espectador, entende a cena sem que ninguém precise falar o que aconteceu entre esses cortes, e isto é que Virginia consegue fazer surpreendentemente bem em quase todos os momentos.

Análise Arkade: O mistério lynchiano de Virginia

O problema se encontra em algumas das cenas mais importantes, onde Virginia não quer que você não entenda o que está acontecendo. A grande diferença neste caso é que uma coisa é você não entender os simbolismos e significados dos objetos, assim como o desfecho da história, algo aceitável em tramas como a de David Lynch. Outra coisa é o jogo te impedir que você não entenda nada porque deixou uma cena importante curta demais e mudou para outro momento incompreensível, impedindo que você comece encaixar as peças do quebra-cabeças de uma maneira entendível.

E o segundo fator que fortalece este problema é a falta de um diálogo, sendo que os personagens de Virginia são completamente mudos e a história não tem uma palavra sendo proferida. O conceito é  interessante e ousado, além de acertar mais do que errar, porém os erros se destacam mais do que deveriam, aumentando a incompreensão ainda mais. Isto não quer dizer que a trama de Virginia seja ruim ou mal construída, eu adorei a maneira que ela foi contada, além de seu desfecho ambíguo e surpreendente, mas é fácil perceber quando a falta de clareza é um erro do jogo e não proposital.

AUDIOVISUAL

Por outro lado temos um trabalho excepcional no design de som e na trilha sonora graças ao compositor Lyndon Holland e a Orquestra Filarmônica de Praga, a música adiciona camadas e mais camadas de tensão e suspense na trama, além de acertar a emoção das cenas e dos personagens. É impressionante a maneira que ela foi inserida e merece todo o reconhecimento por causa do tempo e esforço que foi gasto para fazer com que a trilha sonora seja um elemento vivo e importante para história, reagindo de lado a lado com os personagens.

Outro elemento que merece elogios é a direção artística, abordando um visual low-poly extremamente cativante que não diminui a seriedade da trama, além de abraçar o seu estilo que beira ao minimalismo poligonal nas feições dos personagens enquanto apresenta cenários de tirar o fôlego, mostrando em detalhe mas ainda de uma maneira simples e coesa.

CONCLUSÃO

Virginia é um jogo competente e consegue apresentar exatamente o que foi intencionado desde o seu anúncio, uma jornada enigmática que consegue tanto se inspirar nas formas de entretenimento mais relevantes do gênero quanto movê-la  para frente com ideias interessantes e inovadoras.

No entanto, faltou pouco para que Virginia excedesse suas expectativas e acertasse ao ponto de ser um completo sucesso, errando em alguns momentos por erros que deixam a trama complexa demais em cenas que eram feitas para esclarecer, e não intensificar a escuridão. Virginia ainda se mantém um ótimo jogo para os amantes de histórias originais e surpreendentes, indo para caminhos dificilmente vistos em jogos mais tradicionais. Adicione um visual cativante e o excelente trabalho de áudio, e temos uma recomendadíssima experiência narrativa.

Virginia está disponível para PC, PS4 e Xbox One.

Henrique Gonçalves

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