Análise Arkade: concilie a vida de aventureiro e mercador em Moonlighter
A vida está cada vez mais dura nos últimos tempos. Nem mesmo um aventureiro pode partir para sua jornada sem se preocupar com o ganha-pão do dia-a-dia. Sabe aquela coisa de Ash em Pókemon sair por aí como se não houvesse amanhã? Em Moonlighter não tem essa moleza não.
O novo lançamento da desenvolvedora espanhola Digital Sun Games é um Action RPG roguelike onde o protagonista Will terá que conciliar seu desejo em buscar aventuras nas famosas masmorras de sua região… enquanto cuida da loja da família. E, mais do que isso, fazer com que uma coisa possa sustentar a outra. Entendamos.
A Jornada do Herói
Pegando emprestada a famosa expressão de Joseph Campbell no obrigatório “O Herói de Mil Faces“, temos aqui a clássica trajetória do sujeito comum partindo para o desconhecido em busca da salvação, da vitória ou, nesse caso, da glória. O problema dele é que não tem como fazer isso sem cumprir com suas obrigações.
Há uma mítica masmorra cercada de mistérios na região onde ele vive: nenhum herói foi capaz de ir até lá (ou pelo menos voltar para contar a história). Will se acha capaz de tal feito, mas para isso, é necessário vencer outros desafios antes de chegar ao quinto deles, a chamada quinta masmorra.
No melhor estilo dos clássicos The Legend of Zelda das primeiras gerações de videogames, o protagonista enfrenta uma série de criaturas sobrenaturais, monstros e armadilhas mortais nessa jornada, ao passo que encontra vestígios de outros aventureiros que vieram antes dele e que contam mais da história do lugar.
Mas, antes de mais nada, Will herdou de sua família o ofício de mercador, e precisa cuidar da sua loja, num vilarejo pacato e que recebe muitos viajantes, dentre eles, aqueles que também buscam a fama de encarar as masmorras. Como um super-herói dos quadrinhos, Will tem duas personas: a do aventureiro e a do mercador. E uma depende da outra.
Isso porque sua loja precisa de produtos raros e necessários para os viajantes. Esses são os itens que podem ser coletados explorando cada uma das masmorras da região. Deste modo, tudo o que Will consegue trazer de suas escapadas pode ser vendido em sua loja para arrecadar fundos, tornando sua jornada muito mais sustentável.
O ouro arrecadado com as vendas, por sua vez, pode ser usado justamente para financiar as próximas explorações. Pode ser aplicado, por exemplo, para melhorar a cidade e a loja, e assim trazer mais recursos para o local, além de prosperidade para seu povo. Além disso, pode ainda ser usado para melhorias nos equipamentos usados pelo aventureiro.
Deste modo, como um bom RPG, o jogo soma as duas vertentes de forma muito orgânica. É necessário explorar para conseguir itens; e é importante saber negociar bem para que isso gere renda para financiar suas aventuras. Um retroalimenta o outro em uma sinergia muito bem executada.
Explorando o desconhecido
Não é exagero usar aqui a expressão de que cada aventura é uma novidade na vida de Will. Isso porque a reiteração, ou seja, a repetição de ações, é algo necessário na busca por novos recursos. O elemento de craft, portanto, é muito presente no game, já que é virtualmente impossível vencer sem melhorar.
Para que a repetição não seja um fardo, ou algo assim, a solução é muito interessante: as masmorras são geradas de forma dinâmica, quase que proceduralmente, e de fato elas sempre são diferentes a cada nova visita. Não é exatamente aleatória, já que mantém algumas regras estruturais, mas dentro destes limites, é sempre uma novidade.
Assim, é fácil identificar padrões dentro de cada sala e de cada região do mapa. Quando se visita a mesma masmorra pela décima, vigésima vez (e acredite, isso será necessário), o jogador já conhece alguns macetes. Ainda assim, o caminho até o grande chefe de cada uma delas é sempre especial.
Também vai mudando a forma de enfrentamento dos desafios ali presentes. A cada nova visita, o herói pode ter um novo equipamento, ou o mesmo melhorado, para superar aquilo que tinha feito com que ele fosse derrotado ou usasse o recurso de escape antes de sua vida acabar. Ainda que isso zere o trajeto, garante que se possa levar os recursos coletados. É um fugir hoje para lutar amanhã.
O sistema de combate bastante tradicional — ataque normal, ataque forte, esquiva, etc. — é bem funcional e confortável a quem já jogou algo do tipo, com esse formato isométrico que ficou tão famoso com os primeiros RPGs dos 8 ou dos 16 bits, como o já citado Zelda e os Final Fantasy originais.
Isso muda um pouco quando na loja. Aqui, se joga muito mais como um gestor de recursos, distribuindo itens para venda, precificando cada um deles usando da boa e velha lei da oferta e da procura, tendo a sabedoria de vender apenas o que não for necessário para forjar novas armas e armaduras, bem como conseguir poções e encantamentos.
Soma-se a isso a responsabilidade de trazer novas estruturas para o próprio vilarejo, melhorando a vida das pessoas, aumentando o fluxo de turistas e também obtendo novas possibilidades de melhoria; expandindo também a própria loja e seu potencial comercial.
Por exemplo: gastar dinheiro para trazer um ferreiro para a cidade é um investimento que, mais tarde, possibilita criar novos equipamentos. Já reformar a loja pode trazer novos clientes, gorjetas mais generosas e, portanto, mais recursos. Tudo é um investimento de infra-estrutura para seguir adiante.
Em resumo, é uma estrutura muito orgânica no sentido de que cada elemento serve de sustentação para o todo. Enquanto a exploração permite a coleta de itens para uso e venda, o comércio proporciona recursos para novas investidas.
Fazendo bonito
É já uma estratégia de mercado, dentro do sistema de produção independente, o uso do pixel art enquanto estrutura estética, sobretudo de jogos que buscam inspirações na era dos 16 bits e dos gráficos 2D convencionais. Moonlighter se apropria deste conceito de forma imersiva e intensa.
Personagens, mapas, objetos, texturas, diálogo… tudo funciona muito bem como uma verdadeira viagem no tempo. Ainda que abuse de cores vivas e mais intensas do que os grandes clássicos dos anos 1990, o jogo se mantem fiel às suas escolhas de design e entrega uma experiência nostálgica com muita certeza do que quer.
Isso se reflete não só na composição visual, mas também no próprio level design, com câmaras subdividas e enquadramentos inteligentes. Tudo funciona com a mesma dinâmica dos roguelikes mais tradicionais, indo da movimentação aos inimigos e coletáveis, ainda que os menus tendem a ser mais amigáveis.
O mesmo pode ser visto na trilha sonora. A composição musical central do jogo é deliciosa e traz uma leveza épica de inspirações medievais, com alguns toques mais modernos. Portanto, não é tão retrô assim, garantindo um estilo próprio que evita o som metalizado e sintético que, no caso de uma experiência mais longa, poderia incomodar.
Efeitos sonoros seguem bem esse conceito, mantendo a limpeza e o minimalismo, mas sem sacrificar o jogador para isso. Funciona bem dentro da composição final e, como um todo, é muito consonante com a parte visual, criando uma atmosfera lúdica e com muita personalidade, fugindo do perigo de cair no genérico.
Conclusão
Moonlighter é uma leitura muito contemporânea dos clássicos RPGs de ação no melhor estilo roguelike. Funciona bem com dois formatos principais de ação dialogando entre si, algo que só ganha com os acertos estéticos e de mecânica definidos pelos desenvolvedores.
Não é uma experiência fácil, contudo. O jogo demanda dedicação, paciência, exploração e resiliência nas derrotas. É parte da proposta, e você precisa respeitar o timing e a transição entre as duas jornadas de Will para prosperar.
Felizmente, o game sabe sustentar o que exige, inserindo elementos de renovação cíclica das masmorras, adições a cada iteração e motivação para a próxima tentativa. Mesmo os erros são valorizados, para que o jogador nunca se se sinta estagnado.
Disponível para Playstation 4, Xbox One, PC e (futuramente) Nintendo Switch, Moonlighter está totalmente localizado para o português e mostra que a vida de um aventureiro, tal como a do jogador, é uma conjunção de desejos e responsabilidades. Afinal, “não tá fácil pra ninguém”. ¯\_(ツ)_/¯