Análise Arkade: primeiros passos pelo majestoso (mas decepcionante) mundo de Wander
Caso você esteja sempre ligado no Arkade, e acompanhe nossas colunas e postagens semanais, então já deve ter ouvido falar de Wander, um MMO bastante peculiar que fez parte do um recente post de Lançamentos da Semana.
Contextualizando
Lançado no dia 4 de junho, o jogo se mostra, em um primeiro momento, absolutamente revolucionário quanto ao conjunto de suas propostas. No entanto, em um segundo momento, é possível perceber um desajuste técnico, e se mostra insuficiente a tentativa de materializar uma realidade virtual orgânica.
Antes de prosseguir, é relevante adiantar, desde já, que não parece haver um consenso entre os jogadores que já tiveram contato com o game: uma parcela tem se apaixonado pelo jogo, enquanto outra o tem odiado. Nesta análise, iremos tentar mostrar as duas faces do game, e esperamos que, ao final, você tenha informações suficientes para compor uma opinião.
Bem, mas paremos de vaguear, ao menos por hora. De modo a propor um ponto de partida em comum, vamos checar um trailer de gameplay deste lançamento:
Uma primeira impressão
O potencial do jogo se faz presente, de fato, na combinação de elementos que carrega. Ao associar um olhar poético da natureza a uma estrutura narrativa inovadora na área gamer, se alcança uma atmosfera extremamente bela, cujas possibilidades parecem ser amplas e a surpresa parece estar por todos os lados, sempre à espera de que um jogador a descubra.
A estrutura de narrativa mencionada se mostra, no mínimo, fora do comum: ao iniciar o jogo, percebemos que o personagem com o qual se joga é uma árvore. Isto mesmo, uma imensa e encantadora árvore (como um Dendroid de Heroes of Might and Magic ou um Ent de Senhor dos Anéis). Conforme caminhamos no controle da tal árvore, vamos desvendado um pouco a floresta na qual estamos inseridos.
Em seguida, ao se comunicar com uma espécie de totem, o espírito que habita a árvore toma forma de uma mulher, e o jogo prossegue. Com pinturas tribais pelo corpo e vestes bastante simbólicas, a bela mulher ilumina a realidade com suas próprias perspectivas e capacidades. Sucessivamente, presenciamos constantes transformações corporais, conforme a escolha do próprio jogador: basta ir até o totem com o desenho de um Grifo, por exemplo, e pressionar o botão pré-determinado para assumir a forma do bicho.
Estas transformações são fundamentais para a proposta do jogo e prezam pela exposição de perspectivas de diferentes culturas, o que acontece também por meio da apresentação de diversos mitos, desvendados com a colaboração entre os jogadores online – lembremos que, afinal, trata-se de um MMO.
Em meio a todo este movimento, experimentamos o sereno caminhar entre as matas, o mergulho em um oceano cheio de segredos, o planar sobre a vasta mata selvagem nas asas de um pássaro — a propósito, o voo no jogo realmente tem a premissa de simular o bater de asas de um pássaro, a movimentação das correntes de ar, padrões de voo, etc.
Uma ambientação sonora digna de um concerto a céu aberto
A ambientação sonora do jogo é majestosamente espetacular, e permite que o jogador alcance um nível de acomodação de espírito magistral. O corpo, a mente e os polegares sobre os analógicos tornam-se um: ouve-se a voz das entidades que habitam as florestas fechadas e o hermético oceano ao redor da ilha por onde se vagueia.
O compositor encarregado desse ótimo trabalho de ambientação é o britânico Benjamin Woodgates, musicista, condutor e orquestrador de prestígio. As composições foram todas gravadas no Royal College of Music, em Londres, e são constituídas de óperas individuais e canções com até dez vozes.
Para completar este capricho sonoro, temos ainda sons ambientes que foram gravados no âmago da mata fechada australiana e tornam a experiência realmente imersiva: o canto dos pássaros, o ruído dos insetos e o som de uma cachoeira são realistas e cristalinos, especialmente se você curtir o game com um bom headphone.
Rozhda: um mecanismo de comunicação próprio
O jogo ainda traz um outro elemento bem interessante: um sistema de comunicação que estabelece uma língua própria dentro do game. O chamado Rozhda é um sistema de comunicação composto por símbolos e é a única forma de se comunicar dentro do jogo:não há como digitar qualquer palavra ou qualquer letra do teclado, então mesmo o diálogo entre jogadores é delimitado pelas possibilidades de comunicação deste sistema, num estilo meio Journey.
Na prática, cada símbolo representa uma palavra. Basta desenhar o símbolo desejado na tela com o touchpad (PS4) ou mouse (PC) e você ouvirá o personagem pronunciar a palavra correspondente. Deste modo, o leque de possibilidades interativas se evidencia de uma maneira bastante interessante e distinta.
A segunda e definitiva impressão
Ok, então Wander é um MMO de exploração com visual bacana, trilha sonora incrível e com algumas ideias bem interessantes em sua concepção. Seu visual também passa uma primeira impressão positiva. Mas e depois?
Como o próprio título sugere (já que “Wander” seria algo como “vagar sem destino”), entre majestosas esculturas postas misteriosamente no cenário deserto, vagueamos perdidamente, e, em meio a florestas encantadas, caminhamos rumo aos segredos mais profundos escondidos em cada artefato que nos salta aos olhos nesta caminhada sem destino, cuja origem é também desconhecida.
O jogo, neste aspecto, nos convida a memorar a outros tempos e a outras histórias, como a do nosso querido e carismático companheiro Wander, protagonista do aclamado Shadow of The Colossus. Notemos aí um elemento curioso: coincidência ou não, é o mesmo nome e dele se estabelece a mesma construção de sentido, em ambos os jogos passamos um bom tempo “vagando” por um cenário que é tão belo quanto deserto.
Infelizmente, as semelhanças param por aí e não há, em nenhum grau, alguma semelhança no que se refere à qualidade ou à propriedade técnica que constitui o jogo.
Em um primeiro momento, é preciso dizer que um grande abismo separa Wander de praticamente qualquer outro jogo: em Wander, não há combate. Como foi dito, todo o enredo e, mais precisamente, tudo o que há para se fazer no jogo, parte de uma narração.
Esta característica também tem sido responsável por dividir opiniões. De um lado temos os que a reprovam e veem nela um movimento em direção a um desenfreado e perpétuo nada, uma falta de ação responsável por uma coisa somente: o tédio. Do outro lado, temos os que a aprovam e veem nela um elemento revolucionário, um diferencial, e nutrem a esperança de que, explorando o jogo, surja a possibilidade de um outro olhar para o mundo, um olhar que espera do próprio “nada” uma reintegração à totalidade, à natureza e ao cosmos.
A decepção acontece quando mesmo esta face do game, que poderia se mostrar positiva, redunda em monotonia e, acima de tudo, em falta de propósito. O potencial do game parece nunca se concretizar. A sensação é de que não há nada para fazer, e que o objetivo do game não passa do que o título sugere: vagar, vagar, vagar… e vagar mais um pouco.
O gameplay é bastante vazio. Wander é divulgado como um MMO sem combate baseado em narrativa. Quando se lê isto, no entanto, não se espera que seja também sem ação. E, na verdade, o que se presencia é isto: uma exploração que não permite que nenhuma ação seja efetuada ou mesmo iniciada.
Como não há menu de missões, mapa, ou mesmo indicações a respeito de um objetivo específico, o que resta ao jogador é caminhar irremediavelmente rumo a lugar nenhum e, em meio a estas caminhadas sem fim, fica a expectativa de que apareça a voz do narrador para que finalmente algum evento seja desencadeado e aconteça qualquer coisa que seja.
Como se isso por si só já não fosse bem frustrante, temos ainda uma questão muito inoportuna: é muito raro encontrarmos algum jogador online, o que destrói quaisquer possibilidades de se realizar as “missões” coletivas que constituem a proposta central do game. E um MMO sem jogadores definitivamente não cumpre seu papel.
Em um segundo momento, analisando agora a qualidade técnica, o jogo possui uma série incontável de problemas que são visualizados já nos seus primeiros dez minutos. Estes problemas envolvem uma movimentação deficiente e excessivamente restritiva dos personagens em determinadas situações, além de uma modelagem grosseira de diversas partes constituintes do cenário. Há uma soma destes dois problemas, aliás: um desajuste absoluto entre o movimento dos personagens e a física do cenário.
Surge também, desta característica, uma questão problemática ao jogador brasileiro: considerando que a força motriz de Wander é a narrativa, se torna obrigatório compreender cada palavra proferida pela voz que narra os acontecimentos e, mais do que isso, que indica o caminho do personagem. O que faz desta questão um problema real é o fato de que não há legendas nem em inglês; então, o conhecimento e a capacidade de compreensão sonora do idioma precisam ser bastante avançados, para não ser perdido este elemento que o jogo traz de novo e que em boa medida se faz interessante.
CONCLUSÃO
A respeito do potencial do jogo não há dúvidas: Wander possui uma proposta esplêndida, ousada e convidativa. Porém, como vimos, esta proposta não foi garantia de boa qualidade, pois o produto final deixa a desejar em vários aspectos.
Fundamentalmente, para que se efetive o grande potencial que o jogo possui, precisam ser feitas diversas mudanças no campo da relação entre jogo e jogador. É igualmente imprescindível uma atenção cuidadosa por parte dos produtores quanto à correção dos graves erros técnicos que assolam o game. Somente assim será desconstruída a sensação de se estar jogando um game completamente inacabado. Por último, mas não menos importante, há a questão da acessibilidade: legendas em vários idiomas seriam de grande ajuda.
É possível que Wander nunca chegue a alcançar uma consistência adequada entre seu conceito e o seu conteúdo, o que seria uma pena, pois ele realmente tem potencial. Mas, se seu conceito corajoso, sua produção e repercussão significam algo é que há um horizonte gamer cheio de novas combinações e possibilidades esperando para ser desbravado. E com certeza, há muitos jogadores abertos a novas descobertas.
Wander está disponível para PC (no Steam) e para PS4, via PSN.