Análise Arkade – Projection: First Light e a delicadeza nas sombras
A produção independente de jogos, nos dias atuais, é sem dúvidas o maior celeiro de inovação e criatividade na indústria. Vez ou outra surgem produções que conseguem fugir do óbvio, das tendências de mercado, das mecânicas pasteurizadas e do estilo artístico mais palatável das grandes franquias, apresentando algo fresco, que nos desafia, que nos comove, que nos incita. Não faltariam exemplos, sobretudo nos últimos anos, para ilustrar essa afirmação, e certamente Projection: First Light pode muito bem figurar dentre as mais tocantes experiências deste ano e quiçá, de toda a geração. E isso não é pouca coisa.
Se em um primeiro olhar desavisado, você identificar semelhanças com outro game indie famoso – sim, Limbo, estou falando de você – fique tranquilo, pois mesmo que essa relação seja quase automática, ela tem sentido de ser. Mas bastam poucos segundos andando pelas terras misteriosas do jogo que logo nota-se uma forte identidade, uma construção carismática que consegue se apropriar de poucas cores e de muitas sombras para envolver o jogador em uma jornada com muitos desafios, puzzles desafiadores e, bem, um dragão. O que mais podemos querer de um bom jogo, certo?
Um história singela
É melhor eu explicar do que se trata o jogo: Projection: First Light é um game de plataforma 2D de progressão lateral onde acompanhamos Greta, uma esperta menina nascida na Indonésia que acaba, sem querer querendo, se metendo em algumas confusões. Não, não é a premissa básica de um filme infantil da Sessão da Tarde, mas sim o ponto de introdução de uma história muito melhor. Depois de certos desencontros com sua família e um bando de adultos um tanto quanto intolerantes, Greta se vê obrigada a fugir e logo se encontra envolvida em uma aventura cheia de encantos e perigos.
Todas as motivações e os encontros da heroína do game são narrados de modo singelo, sem o uso de qualquer palavra falada ou texto mais explicativo. Ao evitar um didatismo fácil, o game se aproveita de uma construção estética muito particular para transmitir sensações e reações que tornam cada nova fase vencida uma vivência inteiramente nova. A imersão e a empatia pela protagonista é imediata, e logo a simples busca por borboletas ao lado de uma companhia incomum se torna a missão mais importante do mundo. E pelo mundo todo, aliás.
Jogando com as sombras
Esse acompanhante inesperado, aliás, é o ponto central da mecânica inovadora de Projection: First Light. Basicamente, além da menina, temos um segundo “personagem” que é um ponto luminoso controlado também pelo jogador — por padrão, pelo direcional analógico direito em controles ou pelo mouse no PC — que, ao ser posicionado corretamente ao lado de objetos maciços, projeta sombras pelas quais Greta pode caminhar. Em outras palavras, toda a jogabilidade do game está baseada na criação de plataformas transitáveis utilizando sombras projetadas, justificando objetivamente o título do jogo.
A princípio, a função é bastante simples e óbvia: é só posicionar esse ponto de luz na diagonal de um quina ou um degrau que, naturalmente, a sombra resultante se torna uma rampa. Essa, aliás, será a função mais utilizada ao longo de toda a campanha do jogo — que não é necessariamente curta, ainda que suas cinco ou seis horas passem tão rápido que pouco percebemos — mas não será o único modo de avançar pelos ambientes, muito bem construídos em um trabalho exemplar de level design.
Objetos opacos são os mais comuns (e úteis), mas outros transparentes, como redes e folhagens, não produzem sombras sólidas, e logo se apresentam como um desafio a mais. Posicionar cestos e vasos para logo depois projetar suas sombras é parte integral da resolução dos quebra-cabeça mais difíceis. Não demora para que tenhamos que não só criar artifícios para a movimentação da personagem principal, mas também para movimentação de objetos e acionamento de mecanismos dos mais variados.
Além do controle dessa fagulha luminosa, se assim podemos dizer, o controle da personagem principal é também bastante simples e não demanda qualquer grande habilidade. É, afinal, uma criança comum, que caminha, pula pequenos obstáculos, carrega alguns objetos menores, mas nada muito especial. A luz que a acompanha é que a faz transpor obstáculos e solucionar puzzles aparentemente intransponíveis. Desde subir em plataformas impossíveis ou acender tochas, mover pedregulhos enormes ou pequenos cestos, esse domínio das possibilidades do uso dessa ferramenta determina o sucesso no jogo, ainda que a sequência final acabe por desmerecer um pouco essa aprendizagem consistente que tivemos ao longo de todo resto da campanha.
Há alguns enroscos e, assim, a mecânica não é totalmente perfeita. Algumas vezes acontece de ficarmos presos na sombra criada sem motivo — teoricamente, isso só acontece quando geramos uma projeção em cima da posição da personagem — mas são exceções. A parte ruim disso é que as vezes um movimento mais complexo pode se perder por um detalhe assim. O atenuante é que os checkpoints são abundantes, então mesmo que a falha resulte em morte, por exemplo, caindo na água, o retorno é quase que imediato do ponto de onde se caiu.
Fatalmente, como esperado, o jogo começa a ficar um pouco mais complicado conforme se avança pelas fases, sobretudo caso o jogador queira coletar todas as 40 borboletas, basicamente o único colecionável do game. Normalmente, elas ficam localizadas em espaços de difícil acesso e em muitos casos, em caminhos divergentes do que leva ao fim do nível. Há, portanto, um incentivo à exploração, ainda que não seja uma obrigação ou haja qualquer cobrança mais aguda nesse sentido, a não ser pela contagem desses colecionáveis na tela de seleção de fases e para os complecionistas de plantão, troféus e conquistas.
Com comandos simplificados, Projection: First Light foca em explorar sua essência, sua característica fundamental, sem complicar demais, sem florear e correr o risco de exaurir as ótimas ideias que apresenta. E o grande trunfo do jogo é dar tempo para que o jogador se acostume com a ferramenta sem pressa, sem exigir malabarismos exagerados antes que se domine as funções principais. Ainda que pareça algo óbvio em qualquer desenho, nem sempre se executa de forma adequada. Aqui, tudo é orgânico, a evolução da dificuldade e da criatividade é condizente com uma experiência rica e suave.
Parecer, até parece… mas não é
Confesso: quando vi o trailer do game pela primeira vez, na pressa, na tela pequena do smartphone, imaginei que poderia ser mais uma tentativa de emulação do consagrado Limbo, trabalhando com sombras e silhuetas –algo que outros jogos já fizeram. Ledo engano. O estilo artístico do game é bem diferente, ainda que se aproveite de alguns dos mesmos recursos técnicos. Projection: First Light é um jogo sobre aparências, e isso está muito bem estabelecido também no aspecto visual da produção.
Perceba, nas telas que ilustram essa análise, que há discretas hastes em cada um dos elementos animados. Sim, os personagens são apresentados como marionetes naqueles tradicionais teatros de sombras orientais. Todo o trabalho artístico atende a essa premissa, a emulação de uma encenação tátil. As camadas, as layers funcionam muito bem com aquele conceito básico de se projetar sombras em uma tela: quanto mais perto da fonte de luz, maior a sua projeção, mas também menos nítida.
Então, é possível perceber objetos da cenografia claramente mais definidos, com contornos mais firmes, e outros mais borrados, criando uma sensação de profundidade muito interessante, que quando somada ao efeito base da paralaxe, permite que mesmo em uma construção como essa, sem contornos ou volume nas ilustrações, ainda se possa perceber o ambiente em suas nuances, suas dimensões. A elaboração do ambiente, seja em momentos mais minimalistas ou construções mais ousadas, consegue oferecer ao jogador um controle do que se está vendo muito confortável.
O traço não fica atrás. Ainda que possa parecer uma síntese do estilo artístico mais infantil, que remete diretamente a um mundo todo elaborado para uma criança, também traz referências ao estilo oriental desse tipo de arte e, particularmente para nós, brasileiros, ainda pode remeter — obviamente que não de forma intencional — ao estilo da literatura de cordel, com olhos expressivos, traços retos e alto contraste. Tudo isso é muito adequado ao estilo de animação articulado, como uma animação de recortes, e dialoga com todo o background criado. Há uma fábula sendo contada e tanto forma como conteúdo dizem muito mais do que parecem.
Obviamente, não poderia deixar de falar do cerne do game, os efeitos de iluminação dinâmica. Não, não é nada como aquela loucura do ray tracing, nem nada disso. Mas como a dualidade entre a luz e a sombra, entre o claro e o escuro, é o centro da experiência de Projection: First Light, impossível não salientar o quão funcional ficou o jogo nesse aspecto. As variações da física para delimitar alcance e densidade das sombras criadas pelo jogador é invejável. Tem lá seus deslizes e alguns bugs surgem, mas são exceção. Também tem alguns entraves quando se alcança o limite da tela, mas são problemas menores. A iluminação do jogo mostra que é na simplicidade sofisticada que estão as suas maiores virtudes.
A sonorização funciona muito bem também e transmite um sentimento de solidão muito próprio do game, que não necessariamente é algo pesado, opressor, pelo menos não a todo momento. Há leveza nesse diálogo interiorizado da protagonista, há beleza também no estar consigo mesma, sobretudo em um momento de auto descoberta. Por isso mesmo, os efeitos sonoros, mínimos, são muito bem colocados e convergem para um trabalho narrativo imersivo. Talvez não seja o jogo que exija um headset de extrema qualidade ou um sistema surround de última geração, mas definitivamente, é um game para se aproveitar no silêncio.
São poucas as vezes onde a tríade narrativa – estética – jogabilidade funciona tão bem em um único discurso coeso e muito bem articulado. Claro, há produções mais pomposas onde qualquer um desses elementos alcança níveis impressionantes de fidelidade e qualidade, mas são poucos os games como esse, onde cada aspecto, cada ponto, cada movimento está à disposição da experiência e do engajamento.
Conclusão
Projection: First Light é mais uma prova cabal de que a criatividade está longe do fim na indústria dos jogos. Há alma, há um espírito muito particular no projeto que, claro, não é livre de pequenos probleminhas ou elementos a se melhorar, mas que consegue transcender qualquer limitação quando a vivência que ofereceu sequer nos permite a preocupação com coisas menores. Não fosse pela necessidade do olhar crítico para essa análise, eu sequer me importaria em ter ficado preso em uma parede aqui ou caído num abismo ali.
Esteticamente, o jogo consegue não só se diferenciar de qualquer coisa que esteja por aí, estabelecendo uma identidade forte e muito bem projetada, como também se tornar ele mesmo um novo marco onde quem vier depois precisará se balizar.
Por outro lado, a simplicidade narrativa e de jogabilidade não significam qualquer prejuízo, ao contrário, valorizam o conjunto da obra sem rebarbas, sem exageros, sem esgotar a sua fórmula, sem cair nas armadilhas previsíveis.
Produzido pela Blowfish Studios, Projection: First Light acabou de ser lançado (29 de setembro de 2020) para Playstation 4, XBox One e PC. O game está totalmente localizado para o português brasileiro.