Análise Arkade: The Dark Pictures Anthology: Little Hope assusta, mas sabe pouco o que fazer depois
O terror é dos gêneros do entretenimento mais tradicionais e não faltam exemplos que sabem lidar com a imersividade característica dos games. Mesmo os que se apoiam muito mais em experiências narrativas interativas, como é o caso de The Walking Dead, da Telltale, os games da Quantic Dream ou, como é o caso desta análise, os da Supermassive Games, responsável pelo ótimo (e subestimado) Until Dawn e mais recentemente pela Dark Pictures Anthology, coleção da qual Little Hope faz parte, a capacidade de envolver o jogador em um clima todo particular e lhe oferecer sensações intensas é surpreendente.
Falando mais especificamente de The Dark Pictures Anthology: Little Hope, segunda investida da desenvolvedora na antologia que se iniciou em 2019 com Man of Medan, temos alguns dos aspectos mais característicos novamente presentes e com algumas melhorias significativas quando comparadas aos jogos anteriores, e desses aspectos falaremos ao longo do texto. O mais importante a ser dito, logo de início, é que o game tem tudo para agradar grande parte do público ao qual se destina, ainda que necessite saber melhor para onde deseja levá-lo. No terror, depois do susto momentâneo, o que você pode oferecer?
Uma cidadezinha do interior norte-americano…
Originalidade de plot narrativo não é, certamente, o grande forte de Dark Pictures Anthology, e Little Hope não foge à regra. Depois de uma abertura impactante – vamos evitar ao máximo falar de spoilers aqui para não estragar a sua experiência – somos colocados na pele de cinco pessoas perdidas, a pé, sem qualquer tipo de recurso ou preparo, em uma estradinha acanhada daquelas que atravessam pequenas cidades interioranas, com quase nada por perto, já madrugada adentro, quando certos eventos estranhos começam a perturbar cada um deles.
Nas imediações de Little Hope, cidade típica do interior estadunidense com um histórico bastante ligado ao fanatismo religioso alguns séculos atrás, esse grupo irá conhecer um pouco mais sobre aquele local, seus moradores e eventos impactantes que deixaram marcas mais profundas do que seu povo poderia imaginar. Esse universo é muito bem explorado em documentos, jornais velhos e até mesmo lápides que vão sendo encontrados pelo caminho, e mesmo leituras um pouco mais longas valem o tempo investido.
Aqui, porém, mais importante do que o contexto, é o que faz as melhores histórias de terror: a relação entre os personagens. Os eventos que vão se encadeando em uma crescente de tensão e suspense, com doses caprichadas de fantasia sombria, são o gatilho para testar e levar aquelas pessoas ao extremo, com cada uma delas se percebendo parte de um grupo improvável. E é nesse aspecto em especial, o de construção de relacionamentos, onde o game encontra seu maior acerto. Diálogos e escolhas que, em parte dos jogos do gênero são somente contextuais, ou de construção de mundo e personalidade, aqui fazem toda a diferença.
Por se tratar de uma antologia de histórias contidas em si (e, portanto, sem a pretensão de serem continuadas nesta ou em outras mídias), o destino dos personagens não está amarrado, e ninguém está seguro. Ou seja, todo mundo pode chegar ao fim e sobreviver, ou todo mundo pode morrer pelo caminho. Ao contrário de franquias onde esperamos que alguém sobreviva (porque afinal, tem um próximo episódio a seguir), aqui o apego a personagens por parte do jogador parece mais real exatamente pelo risco inerente de uma escolha equivocada ser o suficiente para perdê-lo para sempre.
Essa construção da narrativa é muito bem estruturada ao permitir que o jogador possa controlar todos os integrantes do grupo, e não só um ou outro protagonista. Ainda que o momento de em que estamos na pele de um ou de outro seja estabelecido pelo roteiro, essa alternância é muito salutar, inclusive para quem gosta de incorporar a personalidade de cada um dos heróis e fazer escolhas coerentes com isso. Afinal, você pode decidir ser mais corajoso com um deles, mais inconsequente com outro, e isso garante uma certa construção de mundo. Afinal, agir da mesma forma com todos eles pode deixar essas individualidades apagadas. Vale aqui jogar algumas jornadas diferentes e curtir essas variáveis.
Todavia, quando se trata de ritmo narrativo, o jogo peca por se arrastar em passagens desnecessárias, e atravessar apressadamente por outras, e alguns recursos narrativos são usados de forma tão repetida que chegam a perder o efeito da metade para a frente. Se no começo, eu realmente estava tomando alguns sustos repentinos, foi só avançar um pouco que eles se tornaram não só previsíveis como preguiçosos. O jogo acerta em esconder os perigos até quando pode para manter o clima de mistério, mas quando mostra, torna-os subutilizados.
Destaque ainda para a figura do curador, uma espécie de guia que dialoga conosco não na pele dos personagens, mas enquanto o jogador em si. Ele sabe que estamos acompanhando uma história a ser desvendada, sabe que somos nós a tomar as decisões e sabe muito mais do que isso. O encontramos em passagens por entre alguns eventos importantes da trama, quase que em um universo paralelo, e ele faz o papel de nos ajudar a refletir sobre o que acabamos de vivenciar, oferecendo, ora ou outra, alguma dica sutil e codificada do que está por vir. Um recurso narrativo interessante e realmente pouco usual, similar ao utilizado no clássico seriado de TV Contos da Cripta, guardadas as devidas proporções.
Assista muito e jogue de vez em quando
Confesso que, por muito tempo, fui relutante ao modelo de histórias narrativas com interatividade, que se estabeleceram e se consagraram na transição da geração anterior para a atual principalmente com uma profusão de experiências que se apropriaram desse modelo, ainda que tragam peculiaridades. Mas depois de me envolver de verdade com jogos como os da Telltale (The Walking Dead, Batman, The Wolf Among Us, Game of Thrones e tantos outros), os da Quantic Dream (Reavy Rain, Beyond Two Souls e Detroit Become Human) e os da Dontnod (e sua franquia Life is Strange), acabei me apaixonando pelo formato e pelo engajamento que ele propicia.
Claro, há casos e casos, experiências mais interessantes e outras mais arrastadas, mas fato é que Until Dawn já tinha chamado atenção pela liberdade de escolha e pela consequente diversidade de finais possíveis, elevando o sarrafo para o gênero e para a própria Supermassive Games. Mas compreendo que há certas limitações em termos de gameplay em si que podem não agradar todos os jogadores, porque em algum momento eu estive dentre eles. Então, não há como determinar se a forma de se jogar Little Hope é boa ou não por si, e talvez seja essa uma decisão muito mais particular de cada jogador.
Assim, deixo claro: se você é daqueles que não gosta do modelo onde se caminha pouco, se assiste muitas cinemáticas, e as interações são limitadas a escolhas de diálogo e trechos de quick time events (os famigerados QTEs), esse não é o jogo para você. Contudo, vale a ressalva: este é um ótimo momento para experimentar o formato, conferir o que ele pode oferecer e, principalmente para os fãs de uma boa história de suspense, acompanhar uma história imersiva muito mais pela narrativa do que pela jogabilidade.
Dito isso, o game inova muito pouco naquilo que já está bem estabelecido pelo gênero. As maiores passagens onde estamos no controle total do personagem são de caminhada e exploração limitada e linear na busca por pistas e colecionáveis. São pouquíssimos os trechos onde o caminho não é uma linha reta de fato, e nem sempre essas exploração é bem recompensada. Basicamente, caminhar é exatamente aquilo que há de mais básico na ação: ir do ponto A (onde assistimos uma cena) ao ponto B (para disparar a cena seguinte) e, se der sorte, encontrar um cartaz ou um cartão postal só para ter uma visão mais ampla do local onde estamos, ou até um vislumbre do que está por vir.
Mesmo algumas mecânicas mais sofisticadas, como o controle de respiração e eventuais combates, são muito pouco explorados e ocorrem em momentos contadinhos ao longo das 4h a 5h horas de campanha. É importante destacar, assim, que a antologia é composta por episódios independentes, mas menores em comparação a jogos como o próprio Until Dawn, por exemplo. Enquanto uma antologia temática, a referência é mais próxima a um seriado de TV, como Contos da Cripta, por exemplo, onde cada episódio é mais curto do que um filme, mas se mantém independente dos demais. Nesse caso, é um jogo mais rápido que a média, e felizmente também custa menos que o preço cheio padrão.
Voltando a falar das mecânicas do game, os eventos pontuais, aqueles onde um comando é necessário no momento certo, estão lá, funcionam, permitem um ou outro erro, mas uma sequência ruim pode ser fatal. Não chegam a ser complicados e, por um sistema de antecipação – o controle vibra um pouco antes para te deixar atento e há um ícone que, com o tempo, será de fácil interpretação – são relativamente tranquilos mesmo para jogadores menos experientes com o formato.
Tudo isso dá mais destaque para o sistema que realmente faz diferença ao longo da jornada: os diálogos e atitudes. Isso porque há um controle que determina o seu nível de afinidade com cada um dos integrantes do seu grupo e essa barra se torna maior ou menor na medida que você a agrada ou não com suas respostas aos estímulos específicos do jogo. Diante um momento de tensão, por exemplo, você pode ser mais racional ou mais emocional, ou ainda se manter inerte, e as pessoas reagem a isso. Ser grosseiro com alguém que está em pânico pode distancia-la de você, ao mesmo tempo que ser positivo e prático pode agradar quem espera essa reação.
Importante perceber que esse feedback é imediato e bastante binário, por assim dizer. Logo no canto superior da tela, você sabe se aquilo agradou ou não o seu companheiro, ou suas companheira. Esse histórico é ainda registrado e pode ser consultado a qualquer momento no menu de suporte e o jogador, o tempo todo, tem consciência de cada ação que tomou e o que isso resultou em seus relacionamentos.
Nem sempre o efeito é o esperado, e um sistema de extremos – sim ou não, gosto ou não gosto, fiquei feliz ou triste – parece bem raso quando se trata de relacionamentos humanos, algo que deveria ser um pouco mais complexo que isso. Mas para efeitos didáticos, e até para desenhar o escopo das ramificações da narrativa, atende o seu propósito.
Um visual (quase) impressionante
Olhando de forma direta, The Dark Pictures Anthology: Little Hope mantém o ótimo nível estético audiovisual de seus predecessores quando se trata de seus personagens. Utilizando alguns atores e atrizes de relativo reconhecimento no campo do entretenimento, como é o caso de Will Poulter (o primo Eustáquio da franquia Crônicas de Nárnia e um dos protagonistas de Black Mirror: Bandersnatch), a semelhança da versão digital com suas contrapartes reais é espetacular, e você certamente já deve ter reparado nisso a partir das telas capturas que ilustram essa análise.
Contudo, ainda estamos na vale do estranhamento, e por muitas vezes a animação nos dá aquela impressão incômoda de cadáveres animados. Em algumas passagens onde o close up precisa nos transmitir sentimentos mais sofisticados a coisa parece um tanto quanto bizarra. Nada tão diferente ou inferior ao que vemos do padrão do mercado de games atualmente, mas em um jogo cuja essência narrativa é seu ponto central isso pode ficar mais evidente. Exceção aos momentos de morte (sim, você irá presenciar alguns desses independente de suas escolhas) onde a coisa parece tão realista e macabra quanto deveria.
Esse mesmo cuidado estético pode ser visto no ambiente, e quando não se trata de coisas vivas, esse distanciamento não existe. Isso significa que casas e outras instalações abandonadas estão especialmente bem acabadas aqui. A escuridão e a névoa onipresentes, claro, ajudam a disfarçar qualquer imprecisão ou aresta mal recortada, mas com um sistema de iluminação muito preciso, com fontes como lanternas ou postes mal-cuidados, as coisas parecem belíssimas. Obviamente, são poucos os momentos de um horizonte deslumbrante, mas a elaboração artística realista responde muito bem aos objetivos.
Trabalho bem realizado também no aspecto sonoro, com vozes e interpretações muito acima da média, mesmo que exageradas em alguns momentos, algo que é muito mais característica do gênero do que um defeito (ou uma qualidade) por si. A música sutil e os efeitos de ambiência são responsáveis por um clima tenso permanente (algo que precisa funcionar em um jogo desse estilo) e os momentos de ação também são muito bem sonorizados. Os clichês, como não poderia deixar de ser, estão presentes como deveriam, e até o recurso de subir o som nos momentos de jumpscare estão lá, intocáveis.
Em termos audiovisuais, portanto, Little Hope leva a geração atual ao seu máximo, faz um bom uso do HDR (quando disponível) e acerta em cheio em apostar no mistério sem extravagâncias ou exibicionismo. Você pode estranhar a cara de boneco de cera de alguns personagens em algumas passagens, mas com certeza irá se envolver ainda mais com a história sendo contada por um aspecto realista competente, interpretações coesas e efeitos de iluminação cuidadosos para garantir o frio na espinha.
Conclusão
The Dark Pictures Anthology: Little Hope refina a fórmula que os desenvolvedores estão utilizando para esta antologia e, por isso mesmo, consegue entregar uma experiência narrativa mais sólida e intrigante quando comparada a Man of Medan, ainda que repita alguns dos equívocos na condução do terror e do suspense na história sendo contada. Quando os sustos passam, sobram alguns atrativos e entender o que está acontecendo se torna mais importante do que o processo em si.
Se o sistema de gameplay não é tão atraente para parte dos jogadores, a sedimentação das boas mecânicas do gênero funciona, o estilo artístico mantém um alto padrão e a história, se peca em alguns momentos no que tange o ritmo, consegue nos deixar envolvidos até o final, que certamente vai gerar muitos questionamentos e teorias em termos do desfecho e dos eventos que nos conduzem até lá. Se você gostou de The Dark Pictures Anthology: Man of Medan, experimente esse segundo episódio sem receio. Particularmente, ainda prefiro Until Dawn enquanto experiência fechada, mas como parte de uma antologia de terror, Little Hope é maduro e consegue se garantir bem para os fãs do gênero.
Disponível a partir de 30 de outubro de 2020 para Playstation 4, XBox One e PC, o game (que traz como uma cena pós-créditos o teaser que anuncia o terceiro episódio da antologia) não conta com localização para o português brasileiro na dublagem, mas está totalmente traduzido em menus e legendas.