Análise Arkade: Torchlight III e a simplificação de um gênero
Provavelmente, a franquia Torchlight seja a que mais se aproximou de uma experiência similar ao grande expoente dos ARPG com visão isométrica, a franquia Diablo. Não porque ela se colocou como uma cópia, como tantos outros games fizeram, mas porque buscou nas raízes do estilo sua própria identidade. Os dois primeiros jogos, ainda que não sejam considerados grandes blockbusters da indústria, ganharam notoriedade e uma legião de fãs, todos ansiosos por esse terceiro episódio.
Inicialmente, porém, Torchlight III surgiu como uma proposta totalmente diferente, quase que um spin-off. Até então batizado Torchlight Frontiers e desenvolvido depois do fechamento da Runic Games, desenvolvedora original da franquia, o jogo teria como grande novidade ser, desta vez, free-to-play. Em algum momento ao longo da criação, porém, a Echtra Games decidiu rever esse conceito e, em um movimento distinto, tornou aquilo que estava sendo produzido no terceiro capítulo da série, com modelo de monetização mais convencional — aka quem quer jogar precisa comprar o jogo.
Ainda que pareça um contexto muito mais ligado aos bastidores do que à uma análise do produto final, é importante compreender que esses caminhos tortuosos no desenvolvimento trouxeram algumas consequências para Torchlight III e certamente os mais veteranos da marca irão perceber algumas delas. Falaremos mais sobre elas ao longo do texto.
100 anos depois…
A trama de Torchlight II, game lançado originalmente em 2012 para PCs e que muitos anos depois chegou também aos consoles da atual geração, é bastante honesta e muito satisfatória em termos de conclusão, sem aquela obrigatoriedade de deixar ganchos intermináveis para possíveis continuações. Certamente, para não mexer no que está bem estabelecido, o terceiro jogo mostra, logo de início, um salto temporal de 100 anos desde o encerramento do anterior, mostrando que Novastraia está novamente em decadência e à beira de uma nova invasão de Netherim.
O jogador é então chamado à aventura, precisando escolher entre quatro novas classes um tanto quanto diferentes das que já vimos em jogos similares — em português chamados de Forjado, Atirador de Elite, Mestre de Ferrovia e Mago Crepuscular — mas basicamente com as mesmas características padronizadas de uso da força física, da magia, da agilidade ou da engenhosidade, mantendo assim os arquétipos clássicos de ARPGs.
Na pele do seu herói — ou sua heroína, como é o caso deste que vos fala- – você deverá enfrentar hordas e mais hordas de inimigos sombrios, explorar regiões enormes e masmorras e, claro, aniquilar chefões poderosos, buscando restaurar a paz e o equilíbrio no mundo.
Se a motivação narrativa já se arrisca pouco, o sistema de evolução da história também não tenta fazer nada diferente. Em uma base comum do seu exército, você encontra uma série de NPCs esquecíveis que cumprem seu papel protocolar de descrever a próxima missão e, depois, premiá-lo pela conclusão. A dinâmica, portanto, será algo muito semelhante ao que já vimos no próprio Diablo ou até em jogos de ação mais simples, como o recente Darksiders Genesis, incluindo portais de teletransporte para o mapa específico da missão.
Falando em mapas, aliás, ainda que sejam bem amplos, o jogo segue um sistema bastante linear de progressão, onde as missões estão dispostas em cada um dos ambientes disponíveis em uma linha única. Encontrar algumas entradas pode ser um problema de navegabilidade, já que várias dessas missões são basicamente dungeons clássicas e, muitas vezes, é necessário explorar cada região inteira para encontrar essa entrada. O grande pecado aqui é que retornar a uma região já explorada minutos antes pode ser um incômodo, já que tudo se fecha novamente — tanto os inimigos dão respawn como também a visualização da área fica limitada, coberta por aquela nuvem já conhecida.
Soma-se a isso um design de níveis um tanto quanto genérico demais. Em alguns casos, são grandes arenas cheias de inimigos, alguns baús escondidos sem qualquer elemento de grande valia, e hordas e mais hordas em vilarejos que pouco mudam no que oferecem em termos de geografia ou de abordagem estratégica — na maioria das vezes, é chegar, bater, pilhar e seguir em frente, exceto por alguns raros momentos onde é possível utilizar pontes e passagens para afunilar inimigos e aí tirar proveito de ataques diretos ou especiais. No mais, como também já era um problema nos anteriores, mas um pouco mais controlado, é seguir até encontrar a esquina do cenário.
Em outras palavras, a exploração dos ambientes disponíveis — alguns só são habilitados, mesmo que já se tenha o nível mínimo exigido, depois de cumprir certas missões de história — até é possível, mas pouco incentivada. Você pode ir desbravando por conta e risco o ambiente inteiro antes de entrar na tarefa propriamente dita, e isso com certeza ajuda a aumentar o nível do personagem e, com sorte, melhorar seu equipamento. Mas saiba que assim que precisar passar novamente por aquele trecho, terá que fazer tudo de novo, inclusive encontrar passagens que já haviam sido reveladas ou portais já mapeados.
A constituição narrativa de Torchlight III, no geral, acaba por simplificar ainda mais aquilo que já conhecíamos, se mostrando uma experiência absolutamente linear e que pouco incentiva escolhas de exploração. O retorno a áreas já desbravadas é uma perda de tempo — os equipamentos adquiridos são do mesmo nível de quando passamos por lá a primeira vez e os inimigos idem — e a exploração de áreas novas só vale a pena se o jogador for teimoso e quiser mesmo, porque de qualquer forma, terá que repeti-la quando for conveniente para a história. Um sistema bastante limitado para um jogo que se pretende ser chamado de RPG de ação.
Anda, bate, bate de novo, e anda
Desde o primeiro Diablo, lançado lá no longínquo ano de 1996, o sistema de jogabilidade desse gênero mudou pouco em sua essência, e isso faz sentido, já que é uma forma bem divertida e funcional. Diablo II sedimentou ainda mais suas bases e, depois disso, poucas coisas significativas foram inseridas no formato. Basicamente, há alguns botões de ação — um inicial que se utiliza da arma principal e outros com magias e habilidades que vão sendo adquiridas ao longo da jornada — e, conforme se avança e se conquista pontos de habilidade, você pode adicionar novos comandos ou aprimorar os já resgatados.
A forma como o jogador vai configurar e customizar seu personagem, claro, passa pela sua forma de jogar. Você pode mapear um monte de comandos e criar um sistema de batalha que mixa todos eles, tirando aproveitando dos elementos para combater os inimigos conforme suas fraquezas, ou pode ainda investir em habilidades passivas que aprimoram algumas das capacidades já existentes. O importante de se destacar aqui é que a classe de personagem escolhida lá no começo tem pouca importância no sistema do jogo. Ao contrário dos anteriores, essa escolha acaba sendo muito mais estética e contextual do que algo que define seu gameplay.
Explico: você pode escolher um mago, por exemplo, porque prefere ataques a distância, magias diferentes e tudo o que a classe carrega consigo por definição. Contudo, nada impede que você selecione uma armadura pesada e um machado de duas mãos como seus equipamentos, e seus ataques principais se baseiem em força bruta. Você pode ter escolhido um mestre de máquinas, cuja principal característica seria a capacidade de uso de armas de fogo e outras traquitanas tecnológicas, mas decidir usar um cajado com encantamentos como sua arma principal. Não há qualquer amarra ou punição nesse sentido, o que é ótimo em certos aspectos, mas incoerente em outros.
Maior relevância tem a escolha da relíquia elemental principal, basicamente uma espécie de sub-classe de personagem. Essa decisão sim irá ser bastante importante quando o jogador for adquirindo novas habilidades. No caso da jornada realizada para efeitos de análise, decidimos pelo Friocoração, cujo elemento essencial é o gelo, e algumas habilidades relativas a ela foram ficando disponíveis, de acordo com o nível base do personagem, sejam como habilidades passivas (como ir criando uma camada de gelo no corpo para defesa) como ativas (como invocar uma criatura elemental de gelo no meio da batalha). Então, não se preocupe tanto com equipamentos, mas sim com poderes elementais desejados.
No aspecto de gestão de recursos, poderes, magias e características, Torchlight III faz jus ao gênero. O jogador pode equipar partes do torso, ombreiras, elmo, caças e botas; arma de uma mão e escudo, ou arma de duas mãos; e ter no acesso rápido alguma das poções básicas disponíveis de vitalidade. Um dos maiores diferenciais da franquia em relação a outros tantos é a companhia indispensável de um mascote, um sidekick da melhor qualidade, que ajuda tanto no combate quanto para dividir a carga do loot. Essa companhia é também onde podemos equipar alguns amuletos e objetos místicos de auxílio e suporte.
Contudo, essas características passivas também passaram por uma simplificação em relação ao jogo anterior. Não é possível, por exemplo, equipar pedras ou elementos místicos que melhoram as capacidades de uma armadura ou uma espada. Também não há qualquer tipo de possibilidade de melhoria em aspectos como vitalidade, força, defesa ou algo assim no personagem, como bem fez Torchlight II. Esses elementos especiais, como imunidade a um elemento ou outro, ou porcentagem de aumento de mana, ou coisas do tipo, já vêm “de fábrica” nos itens equipados e são mais abundantes conforme a raridade deles.
Somado aos equipamentos, há todo um sistema de habilidades. As mudanças significativas para um formato mais simplificado também influenciaram esse aspecto. No lugar de árvores e ramificações mais complexas para as classes, há uma janela com os recursos especiais citados anteriormente. Basta atingir o nível mínimo para cada categoria, que vai do básico até o quinto estágio, para habilitá-la a partir dos pontos de habilidade conquistados, na maioria das vezes, ao subir de nível de personagem. Há ainda a possibilidade de remanejar esses pontos, mas é necessário um item especial para isso.
Por fim, outra característica principal é que o jogador, além do acampamento do exército aliado, pode também frequentar entre missões seu Forte, que é customizável e permite que se insira algumas construções. A maioria delas é decorativa, mas algumas permitem a fabricação de itens especiais, como barras de metal, blocos de pedra ou placas de madeira, utilizados para melhorias no próprio forte. É ainda o espaço onde estão seus mascotes não utilizados – depois de escolher o primeiro deles quando se inicia o jogo, você pode libertar e adotar outros como seu principal parceiro de viagem. E ainda há aquele baú tradicional para guardar itens extras que você coletou, não está utilizando, mas quer guardar ao invés de vender.
Por fim, a divisão entre o single e o multiplayer parece um tanto estranha, já que basicamente se pode fazer as mesmas coisas em um ou outro, com a diferença, óbvio, de se poder enfrentar missões colaborativas com até quatro pessoas e até visitar fortes de amigos para utilizá-los quando online. Enquanto em outros jogos, essa convergência acontece dentro de um mesmo modo, é curioso como aqui eles dividiram, ainda que se possa deferir que é uma escolha muito mais do jogador em se manter solitário e independente para não ter interferências ou de estar aberto a receber ajuda e ajudar outras pessoas.
Mas enfim, jogar colaborativamente ajuda em muitos momentos contra hordas, ou até quando se ousa ir além do que o nível permite, mas com um jogo bastante equilibrado — e até generoso — em termos de dificuldade, é muito mais uma escolha quanto à forma como se prefere aproveitar o título do que um modo diferente de se jogar.
O jogo é longo o suficiente para valorizar o investimento financeiro e de tempo, e tem elementos pós-game que podem garantir mais algumas horas de engajamento do jogador, e para ser sincero, não será muito difícil se manter envolvido, já que o universo oferecido é charmoso o suficiente para atrair os jogadores mais dedicados a fazer novas incursões com a geração de novas masmorras e missões que podem aproveitar um pouco mais a dedicação, por exemplo, em criar um Forte agradável e bem equipado, algo pouco explorado ao longo da campanha.
Torchlight III traz, como você já deve ter percebido, todo o pacote padrão de jogos do gênero, mas de uma forma bastante simplificada, mesmo que os menus e descrições do jogo se esforcem para que tudo pareça mais sofisticado do que é. Essa é a grande herança, provavelmente, de uma gênese pautada no free-to-play original do projeto, já que o jogo está muito mais voltado ao loot constante, à fidelização e à melhoria contínua sem elementos estratégicos mais complicados. Isso o torna mais acessível em certos aspectos, mas sem dúvida é uma regressão ao que já estava bastante sólido na franquia.
Cores, luzes e um visual caprichado
As semelhanças com a série Diablo são óbvias desde sempre, e talvez não haja qualquer vergonha nisso. Mas se há algo onde Torchlight — em especial, esse terceiro jogo — se difere é na composição visual do mundo. Mesmo quando comparado ao mais iluminado Diablo III, esse game apresenta um mundo vibrante e saturado de cores. Grande parte dos cenários pode ser aproveitado em ciclos de dia e noite, mas certamente sua beleza estética é valorizada em cenários abertos à luz do sol.
Ainda que seja, claro, um game com valor de produção menor que os grandes títulos AAA, ele consegue valorizar bem seus elementos estéticos e, nesse aspecto há um salto generoso em relação à versão anterior. Com um tom mais cartunesco que os anteriores, os personagens são carismáticos, os inimigos, ainda que não apresentem uma diversidade tão grande assim, conseguem fugir da excessiva repetitividade incômoda, armadilha para jogos desse estilo. Os cenários apresentam uma variedade também muito bem-vinda, e mesmo com algumas texturas aproveitadas em vários momentos, são ambientes ricos, com um grau certo de variedade, algo que facilita o reconhecimento e diminui o problema de navegabilidade deficiente.
O HUD, por sua vez, é bem limpo e não fica tão poluído, sobretudo na versão de console, mas essa mesma objetividade não é vista nos menus e, principalmente no inventário. É difícil, principalmente quando se está começando, identificar informações importantes e realmente o que é relevante e o que é curiosidade. Também não ajuda o fato de que o jogo é sim localizado para o português brasileiro, mas alguns trechos de texto ainda são mantidos no idioma original, fazendo uma mistureba um tanto quanto esquisita. Geralmente, esse é o detalhe mais fácil de ser corrigido e possivelmente quando você pegar o jogo ou quando estiver lendo essa análise já esteja tudo bem melhor.
A trilha musical tenta manter aquela linha épica da fantasia medieval com doses de modernidade diesel punk, mas no máximo, consegue passar despercebida. Vozes e efeitos sonoros também são bastante funcionais e cumprem seu objetivo sem qualquer elemento mais marcante, a exceção de alguns textos narrados com uma atuação um pouco mais agradável que a média. Em alguns momentos mais frenéticos de combate, tudo parece extremamente bagunçado também aos ouvidos, mas sinceramente, funciona e é parte de uma experiência do tipo.
É um game que joga seguro, portanto, no quesito audiovisual, ainda que tenha melhorado praticamente tudo do que havia nas edições anteriores e se aproveitando melhor do que as tecnologias atuais podem oferecer para uma produção deste escopo. A poluição de textos nos menus chega a incomodar em alguns momentos, muito mais que a sonora nos trechos de combate intenso, mas o estilo artístico leve e a falta de receio em abusar de cores e efeitos de luz trazem a intensidade que confere ao jogo uma beleza muito coerente com o mundo apresentado.
Conclusão
Torchlight III, um RPG de ação com visão isométrica e que pode ser definido como um diablo-like, começou como um projeto para uma escala diferente da que foi lançada. Toda a identidade da franquia está muito bem preservada, mesmo com a mudança de desenvolvedora, e os elementos consagrados são facilmente reconhecíveis aqui pelos fãs mais antigos.
Mas, é nítido algo acabou se perdendo, e uma série de simplificações nas mecânicas do jogo o deixaram mais superficial que os seus predecessores, algo que pode ser uma ótima característica para novos jogadores, ou mesmo para quem não é tão fã assim de sistemas mais pesados de RPG, mas que pode frustrar quem já está acostumado ao modelo mais dedicado.
Visualmente, o jogo é obviamente um passo adiante no que a franquia tinha oferecido antes, e consegue oferecer um mundo ainda mais vibrante, com criaturas mágicas, heróis e magias de encher os olhos e se não é o ápice do que a geração oferece em jogos de maior escala, certamente é o aspecto que mais agrada. Já no combate, de tão objetivo, é um jogo fácil de se aprender e com um ritmo bem tranquilo para se dominar as poucas camadas que vão sendo adicionadas.
Talvez não seja o Torchlight III que os fãs gostariam, mas é “o que tem pra hoje”. Não é o retorno grandioso que a franquia merecia, mas pelo menos comprova que ela não foi esquecida.
Lançado para Playstation 4, XBox One, Nintendo Switch e PC em 13 de outubro de 2020, o jogo está, como dito, localizado para o português em texto, menus e legendas.