Análise Arkade: Seja um ditador (ou não) em Tropico 6

19 de outubro de 2019
Análise Arkade: Seja um ditador (ou não) em Tropico 6

Construir uma cidade, uma fazenda, um parque temático ou um país como líder político ou o dono da coisa toda não é lá uma grande novidade. De SimCity a Jurassic World Evolution, há uma infinidade de títulos onde se pode sair de um grande terreno vazio para um empreendimento megalomaníaco. O grande diferencial da franquia Tropico, que chega ao sexto título, está no fator de protagonismo: há muito de interpretação no game, algo que lhe confere algo fundamental para manter o engajamento: personalidade.

Uma ambientação caribenha

Vamos com calma. Primeiro, é importante dizer que, antes de mais nada, este é um jogo no melhor estilo tycoon, onde o jogador assume o gerenciamento macro (e as vezes micro) de algo, que neste caso, é um país tropical dos mais estereotipados. Como um ditador (ou um líder mais democrático), o jogador precisa decidir sobre o que e como será construído, como será a organização política deste país, suas relações com outras nações, bem como economia, educação, turismo, etc. Em palavras mais simples, é um simulador de presidente.

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Se não há qualquer afirmação direta sobre onde exatamente esse país — sempre baseado em uma ilha (ou um conjunto delas) — também não há qualquer ambiguidade em se afirmar como uma pequena nação latino-americana organizada sob um poder totalitário não só pelo clima ou pelo sotaque latino digno dos filmes de ação dos anos 1990, mas também pelos pequenos-grandes detalhes.

A começar pela trilha musical, recheada de ótimas (mesmo que poucas) canções com boas influências da salsa e do mambo. Não é de se estranhar que mesmo quem não é fã desses ritmos se pegará cantarolando ao longo da jogatina, já que toda a construção sonora foi criada para estabelecer uma ambientação muito própria. Claro, é uma leitura ainda estrangeira da cultura latina, e exagera em alguns aspectos, mas é importante compreender que a obra está, sobretudo, se pautando na sátira em todos os sentidos.

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E neste caso, outros aspectos colaboram para essa imersão: os arquétipos que se apresentam para negociar com o jogador são muito marcantes e nada sutis. Há o revolucionário engajado de boina, o militar conservador com bigodão, o capitalista metido a burguês, o governante ameaçador da matriz com monóculo, o burocrata glutão, e por aí vai. O sub-texto é, neste game, tão ou mais nítido do que os discursos em si. E neste caso, não há muitas surpresas: tomar uma decisão a partir de uma linha clara de ação é bem simples. Executá-la, porém, nem tanto.

Entre a democracia e o autoritarismo

Podem ficar tranquilos, não é a intenção deste texto entrar em discussões e polarizações políticas. Em Tropico 6, essa questão passa longe dos nervos à flor-da-pele e trata desse tema de uma forma quase inocente. “Quase” porque, de novo, a sátira e a ironia estão presentes, nas entrelinhas, mas muito mais como combustível para que o jogador pense sobre isso do que qualquer outra coisa que vá influenciar diretamente na jogatina.

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Como um todo, o jogo oferece algumas linhas ideológicas de atuação: é possível decidir alguns graus de liberdade para a população, enrijecendo algumas leis e normas, assumir uma postura contrária ou favorável a eleições diretas, se submeter ou não à capital (ao menos no período colonial), fortalecer as relações comerciais com alguns grupos de países – como por exemplo, decidir se aliar a este ou aquele lado de uma guerra – e, enfim, interpretar várias facetas de uma liderança política.

Na parte mais sólida da evolução do seu país, o jogador deverá decidir dentre uma série de construções — desde moradias comuns e palácios a estradas e monumentos turísticos — para dar lhe dar sustentação, sempre pensando em melhorar a infra-estrutura, aumentar recursos e viabilizar o crescimento. Claro, é possível entre uma ação e outra guardar seu dinheirinho em alguma conta em paraísos fiscais mas… é a vida de um ditador.

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Também cabe ao jogador decidir por leis, ações comerciais, tipos de comércio, indústria e produção agrícola, transporte público e pesquisa. Conflitos e relações internacionais são parte da pauta permanente, e até qual o alinhamento político terá cada um dos seus ministros principais. Se você se lembra das aulas na escola sobre o que era o chamado poder moderador, bem… aqui há um exercício bem prático de como funciona a centralização de decisões.

Interessante, uma vez que ao jogar no modo de Missões e cada caso é diferente do outro, experimentar posturas diferentes. Se em um primeiro momento você quer agradar os militares e, assim, fortalecer seu potencial bélico, em outro pode dar incentivos à revolução comunista; favorecer ações comerciais solicitadas pelos capitalistas ou fomentar a devoção dos religiosos. E não, não estou rotulando personagens. Eles são divididos explicitamente nesses grupos, quase que clãs. É a simplificação lúdica da coisa toda. Encampar esse princípio é fundamental para embarcar ou não em Tropico 6.

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Quem disse que seria fácil?

Manter uma linha política definida nem sempre é fácil. Isso porque nem tudo parece estar, de fato, sob controle. Ok, talvez não deveria estar mesmo. Mas explico melhor: em alguns momentos, você tem a missão de aumentar a satisfação em termos de liberdade do seu povo. Para isso, há algumas ações, como diminuir sistemas de vigilância — inclusive de construções militares — fomentar práticas democráticas, melhorar leis trabalhistas, etc. Porém, nem sempre essas ações geram o resultado esperado e, por vezes, traz outros completamente estranhos.

Em outros casos, a sangria do orçamento parece inevitável e não importa o que se faça, as despesas sempre estarão acima das receitas. Nesse sentido, faz falta ter alguns controles mais objetivos, como existem em SimCity. Aumentar impostos residenciais ou industriais, por exemplo, ou mesmo ter alguns sistemas de projeção do impacto no orçamento de uma ação como construir uma clínica ou uma fábrica seriam de grande ajuda, mesmo com uma infinidade de variáveis que ajudam ou atrapalham em termos de despesas.

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Já nas primeiras missões, o jogador perceberá que nem sempre é fácil calcular causa e efeito das decisões tomadas. Escolher entre monocultura ou diversidade em uma fazenda não parece grande coisa, mas essa decisão trará consequências. Decidir melhorar condições de trabalho em todas as construções parece uma escolha óbvia, mas nem sempre seu orçamento conseguirá cobrir um lucro menor; aumentar o nível de educação deveria ser natural, mas um ditador precisa se preocupar com a criticidade de seu povo; se unir ao lado historicamente vencedor de uma guerra pode não ser tão vantajoso como deveria, e assim vai.

Ok, então para facilitar, você pode jogar no estilo sandbox com dinheiro infinito. Sucesso, certo? Depende. Você pode construir, em um ano, um país inteiro com todas as melhores estruturas e condições sociais de acordo com uma linha conceitual que escolher. E aí quando roda a simulação, a população está insatisfeita, as fábricas param por falta de matéria-prima, os estoques das fazendas ficam parados por falta de consumo, e os barracos começam a surgir em cantos inimagináveis. Pois é… nem tudo pode ser feito com dinheiro em Tropico 6.

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Afundando na papelada

Diferente do que já foi visto em outros jogos, há muitos detalhes em Tropico 6 que são importantes, mas nem sempre divertidos. Decidir que tipo de espetáculo um circo vai oferecer pode ser bem interessante na primeira vez, mas mandar uma expedição em busca de recursos pela vigésima vez pode acabar enjoando. A construção de prédios também pode sofrer com esse problema: criar um quarteirão com moradias variadas, uma taverna e uma praça é muito legal; criar o trigésimo quarteirão é um saco. Algumas atividades que poderiam ser automatizadas acabam ficando manuais demais em alguns momentos, e a repetição pode se tornar um martírio.

Chega um ponto onde as solicitações também começam a se empilhar no HUD, principalmente se não há dinheiro para tudo. É possível, por exemplo, que o jogador tenha acabado de construir uma delegacia de polícia e, mesmo assim, apareça alguém pedindo outra, independente da criminalidade estar controlada ou não. Ou ainda é possível alguém solicitar a produção de milho e existir duas fazendas paradas com mercadoria sobrando. E assim por diante.

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E, pior, algumas dessas demandas podem atrapalhar o andamento daquilo que realmente é necessário. Por exemplo, alguém solicita a construção de um porto, mesmo que o existente esteja sub-utilizado. Ao disparar a obra, o dinheiro é comprometido e os operários idem. Se nesse período algo realmente estiver faltando e não tiver dinheiro para construir ou gente para executar a obra, tudo para. E se o orçamento estiver desequilibrado, se torna um círculo vicioso do qual não dá mais para sair. Não tem dinheiro para alguma construção que gere receita e não se termina aquilo que já gastou. Sair do negativo é um verdadeiro desafio de gestão.

De certa forma, Tropico 6 cria estruturas tão complexas que, por vezes, acabam prendendo o jogador para que ele precise resolver muitas pendências antes de conseguir progredir, construir algo novo, pesquisar coisas novas, expandir a nação. Essa burocratização tem como tendência diminuir (ou seria aumentar?) a vida útil do jogo, já que em algum momento a tentação de simplesmente começar uma nova nação do zero parece muito mais interessante do que investir tempo em um país já consolidado.

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O modo com missões é interessante por ter prazo para começar e terminar, mas ao mesmo tempo, perder um trabalho longo (bem feito ou nem tanto) pode ser frustrante. Saber lidar com decisões nem sempre acertadas é parte da experiência, e provavelmente só lá pelo quinto ou sexto novo país iniciado que o jogador terá plena capacidade de um desenvolvimento sustentável de governo.

Um paraíso tropical

Tropico 6 é inegavelmente belo. Com paisagens incríveis, construções variadas e um grande período histórico coberto, passear pelas ruas de seu país é um deleite para um ditador. Tanto para curtir os detalhes de cada obra, ver o povo indo e voltando do trabalho como, só por diversão, perseguir um cidadão qualquer e até mandar prendê-lo a seu bel prazer. Acompanhar uma invasão militar só não é mais divertido porque estraga muita coisa feita, e toda a organização da interface é bem instintiva, ainda que com mais detalhes do que se possa imaginar.

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Claro que as construções, finitas como são, podem começar a se tornar repetitivas, mas com as diferentes eras presentes, as coisas vão se atualizando, e a modernidade chega. Se a trilha, como já comentado, ajuda muito a colocar o jogador no clima, a elaboração visual está mais madura do que nunca, sabendo lidar bem com a atual geração e dosar uma estética realista com um estilo cartunesco de personagens e ambientes. Há, sobretudo, vida circulando, algo fundamental para um jogo desta natureza.

Se não é exatamente algo novo, já que as inovações em relação aos jogos anteriores são bem pontuais, Tropico 6 consegue se atualizar bem, acrescentar elementos de jogabilidade muito adequados à sua proposta e, se não é exatamente um mundo exuberante como em produções AAA, certamente não faz feio e consegue cumprir bem sua proposta estética.

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Sua maior falha, para nós brasileiros, é a falta de localização para o nosso idioma. Mesmo o espanhol, prometido no menu e óbvio pela ambientação, não estava disponível até a data da publicação deste texto. Uma pena, porque é um jogo que demanda e merece uma compreensão efetiva e total de textos, menus, opções, diálogos e tudo mais. Quem sabe no futuro.

Conclusão

Tropico 6 consegue encontrar um ótimo equilíbrio em termos de tom, de gameplay e de apresentação audiovisual, estabelecendo identidade e diferenciais que são importantes na comparação com outros simuladores parecidos. É uma experiência que demanda dedicação aos detalhes e tempo para saber lidar com tantas possibilidades.

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Há um certo excesso de burocracias em alguns pontos, e a falta de clareza em outros. Algumas decisões não parecem surtir efeito e outras fazem efeito até demais, e podem trazer consequências permanentes. Isso significa que muitas vezes o jogador pode precisar se dedicar a ações muito menos instigantes que outras, algo que certamente é parte da escolhe de governar uma nação, mas que poderia não ser tão pesado em um jogo do gênero.

Entre a sátira e a profundidade de gestão, o estereótipo e a subversão das convenções políticas, o descomprometimento e a responsabilidade, Tropico 6 certamente tem seu espaço, diverte, vicia e desperta uma estranha sede de poder em cada um de nós.

Disponível para PC há algum tempo, o jogo chegou também para Playstation 4 e XBox One, infelizmente, sem qualquer recurso de localização para o português brasileiro.

Paulo Roberto Montanaro

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