Análise Arkade: Um misto de sensações em Oddworld: Soulstorm
A franquia Oddworld é um caso bastante particular na indústria dos games. Não é uma marca desconhecida, mas ao mesmo tempo parece ser composta por produtos de nicho; não é exatamente uma série mainstream, tampouco traz produções que se enquadrem em um sistema independente de desenvolvimento e distribuição. Desde os primeiros games lá do início da geração 32 bits, parece ser algo que está entre esses dois extremos e, ao mesmo tempo, não pertence a nenhum deles.
Esse “nem lá, nem cá” parece ser algo presente também na experiência de Oddworld: Soulstorm, mais novo jogo da franquia, uma espécie de remake de Exoddus (de 1998) e sequência direta para o reboot/remake de 2014, Oddworld: New’n’Tasty. Ainda que traga algumas inovações e renovações para as mecânicas de resolução de puzzles já conhecidas, ele mantém uma estranha sensação de ser algo antiquado para o momento atual da indústria, e talvez por isso mesmo pareça mais autêntico que tantas outras produções contemporâneas.
Opressão e revolução
Se fôssemos resumir toda a jornada de Abe em uma única linha de texto, certamente este poderia soar como uma grande figura revolucionária que lidera seu povo contra a opressão escravagista de um sistema de produção abusivo, uma espécie de mistura entre uma figura messiânica com um líder sindical. Curioso perceber que essa jornada, contudo, está muito longe da grandiosidade que a premissa leva a crer, pelo menos não como as narrativas clássicas constroem seus protagonistas. Abe não é um herói tradicional pela grandiosidade de seus atos, mas pelo que suas atitudes representam para seu povo.
Neste recorte da história, os Mudokon recém libertos seguem Abe como uma comunidade cheia de dificuldades, mas feliz e orgulhosa pela recente vitória sobre seus opressores (que vimos ao final de Oddworld: New’n’Tasty). Esta, porém, não é permanente, e o grato e gentil povo logo deverá passar por novas provações enquanto são perseguidos mais uma vez pelo terrível Mullock e seus fieis seguidores, os Glukkons. Mais uma vez em um estado de fuga constante, o plot narrativo coloca o protagonista em busca do The Keeper, enquanto luta para curar seus companheiros de uma doença causada pela tal Soulstorm do título e, mais uma vez, guiá-los para a liberdade.
A busca pela paz desconhecida para seu povo leva Abe a compreender o seu papel dentro de um contexto maior do que ele conseguiria imaginar, e mesmo que por linhas tortas, ele parece aceitar melhor seu papel depois de tudo o que viveu antes. Esse segundo capítulo — de uma série que se pretende ter cinco partes — parece cumprir bem o recorte da travessia do segundo limiar que preconiza a famosa Jornada do Herói que, agora aceitando melhor a convocação que recebera para a aventura, precisa entender quais as consequências de suas escolhas e o que isso vai lhe custar.
Com dois finais possíveis (que dependem diretamente de quantos companheiros você consegue resgatar e manter vivos ao longo da campanha), o jogo é relativamente longo para aqueles que buscam explorar cada cantinho do cenário na procura por todos os Mudokons perdidos, e prepara o terreno para eventos ainda mais grandiosos em termos de escala.
Ao longo de dezessete níveis — dois deles secretos — o jogador irá se deparar com uma série de desafios inesperados que exigem uma boa dose de paciência e resiliência em um gameplay que mescla a ação furtiva e a resolução de puzzles, dos mais diretos aos mais elaborados.
Cadência e adaptação
Confesso que o aspecto que mais me demandou adaptação e aprendizagem foi a forma como Abe lida com as interações e o ambiente a sua volta, algo que sempre foi uma marca de toda a linha Oddworld. A imprecisão de certos comandos e até uma certa burocracia para certas ações simples não foge do que já vimos no jogo anterior e, visto que lá se foram sete anos entre um game e outro, esperava-se que houvesse uma atualização mais contundente nesse quesito. A escolha, contudo, segue uma coerência narrativa ao nos lembrar o tempo todo que nosso herói não é lá um dos seres mais habilidosos do mundo, e resta descobrir como superar isso.
Contudo, alguns comandos, ferramentas e ações abrem um pouco mais o leque de possibilidades e ampliam nossas possibilidades. Há um extenso (ainda que descompassado) sistema de construção de itens que nos ajudarão a driblar as limitações de Abe, sempre privilegiando a criatividade e não o combate direto. Claro, ainda é possível cantar e possuir inimigos para sair massacrando seus colegas de trabalho com suas potentes armas de fogo, ou ainda atravessar trechos bem vigiados, mas mesmo essa função é bastante limitada pelos providenciais sistemas de prevenção espalhados por todos os cenários.
Oddworld: Soulstorm, todavia, traz mecânicas que parecem mais simples no começo, e demora um pouco para oferecer essa diversidade toda. Nos primeiros níveis, há muito pouco o que fazer e quase nada a se criar. É no segundo terço da jornada, momento em que já estamos mais adaptados ao seu formato, que o jogo começa a desafiar o jogador para novas abordagens. A variação aqui é um tanto quanto estranha, já que para certas ações continuamos desajeitados e para outras parecemos verdadeiros ninjas treinados. É uma inconstância quase incoerente, mas que, dentro do jogo, funciona, apesar da estranheza.
Outro ponto que me surpreendeu é o quão longas podem ser as fases do jogo. Não foram raros os níveis onde o tempo chegou a quase duas horas na primeira tentativa. Claro, quando se compreende as soluções para cada passagem, ou até quando se ignora caminhos alternativos, essa duração pode cair absurdamente. Em alguns testes que fiz, algumas runs de uma hora e meia foram refeitas em menos de trinta minutos, fazendo só o mínimo possível. Mas se a meta é salvar companheiros e encontrar passagens secretas, prepare-se para investidas densas, que certamente podem ser melhor aproveitadas em doses cautelosas.
Isso porque Oddworld: Soulstorm tem uma cadência que pode cansar ao apresentar uma sequência quase ininterrupta de desafios sequenciais e puzzles bastante tensos. Serão raros os momentos onde passaremos por um trecho sem algum enrosco e mesmo com checkpoints bastante generosos (ainda que espalhados de forma meio bizarra), a elaboração mental se mantém sempre em alta. O game nos desafia o tempo todo a usar mecânicas conhecidas de formas diferentes, novas habilidades recém-adquiridas e, principalmente, a mistura criativa de ambos os aspectos. Aprender algo novo é sempre um acréscimo ao que já se sabe, e talvez por isso essa progressão seja um pouco mais lenta: é necessário aprender, dominar e internalizar recursos para usá-los bem até o fim.
Ainda assim, essa inconstância citada anteriormente pode gerar algum descontentamento em certos momentos. A fragilidade de Abe e seus colegas é parte do sentimento de perigo constante, mas as habilidades acrobáticas nem sempre respondem como gostaríamos, sobretudo em momentos emergenciais. O tempo de resposta de vários comandos atrapalha, bem como uma necessidade quase protocolar de usar algumas funções só quando o jogo libera a possibilidade de interação.
Como exemplo, a primeira coisa que se aprende para defesa é que ao nocautear um adversário, pode-se roubá-lo e amarrá-lo usando-se o mesmo comando. Mas para tal, é necessário esperar o momento exato para o comando estar apto, e qualquer enrosco nesse processo pode significar a morte certa. Exatamente por isso, a furtividade se torna quase que o princípio primário, em detrimento do confronto. que vira meio que o último recurso. Para quem está acostumado a se organizar para pegar os inimigos desprevenidos pelas costas em tantas outras produções, é quase que um desperdício esse aspecto ser desaconselhado aqui. Seria de grande ajuda se funcionasse de modo mais orgânico e simplificado.
Possivelmente essa dificuldade está diretamente ligada a um sistema de inteligência artificial mais modesto e protocolar, que lembra daqueles inimigos acéfalos da geração 16 bits com ciclos previsíveis e padrões superficiais de movimentação. Mesmo quando em alerta, esse comportamento é bastante cartesiano e se torna parte das estratégias para travessia. Compreensível dado o formato do jogo, mas contextualmente deslocado. Seria de se esperar que ao menos alguns tipos de inimigos, por mais estúpidos que sejam, pudessem ser um pouco mais espertos e reativos a certos estímulos.
Também não ajuda o fato do game apresentar pouca variedade no que tange os inimigos. No final, podemos contar em uma das mãos os tipos de adversários, e todos eles são iguais uns aos outros. Mesmo o level design, que por (poucas) vezes apresenta algumas construções inventivas, passa a maioria do tempo cumprindo tabela e apresentando desenhos bem convencionais e nada criativos, incluindo armadilhas que já vimos em dezenas de outras produções, soluções óbvias (mesmo as vezes difíceis pelas circunstâncias) e pouco incentivo real à exploração com um sistema de crafting bem simplório.
Plataforma 2D, 3D ou algo assim
A versão usada como base para essa análise foi a de Playstation 5, liberada gratuitamente para assinantes da PSPlus neste mês de abril. Como tal, a experiência audiovisual pode ser vista, por um lado, bastante aquém do que se espera de jogos para essa nova geração, mesmo compreendendo que Oddworld: Soulstorm está longe de ser uma produção de grande escala system seller. Por outro, dentro do escopo da série, é um jogo sólido, muito bem resolvido naquilo que propõe, e com aspectos específicos surpreendentes e especialmente belos.
A modelagem de personagens é excelente e a passagem entre gameplay e cinemáticos nunca foi tão fluida e natural na franquia. Expressivamente, Abe ganha contornos mais sofisticados, e outros personagens secundários também conseguem se destacar da massa. O ponto baixo aqui é em relação aos inimigos, mais padronizados, e mesmo o principal vilão parece genérico demais. Deste modo, o mundo parece mais vivo, e o povo de Abe realmente parece ter mais individualidades, fugindo daquele estranhamento em que tínhamos, basicamente “o protagonista e o resto”.
Já os ambientes seguem um padrão bastante detalhado, considerando o ponto de vista quase sempre lateral, com uma boa profundidade de campo, principalmente nos ambientes abertos. Contudo, instalações e outros cenários internos parecem menos inspirados, cheios de texturas repetitivas e uma composição de cores instável. A direção de arte também não se destaca ao apresentar uma cenografia pouco inventiva, mesmo em cenários não tão explorados nos jogos anteriores. Ainda assim, texturas muito detalhadas e belos efeitos de iluminação e partículas fazem valer o esplendor dos 60fps a 4K.
Os movimentos de câmera, por vezes, valorizam a escala dos cenários, que exatamente por comporem níveis bem longos, parecem muito maiores do que o são de fato. Mas esse truque também é pouco utilizado, seja para passagens de transição entre um ambiente e outro ou para trechos mais cinematográficos. Por vezes, o ângulo do enquadramento também mais atrapalha do que ajuda, e ainda que na maioria das vezes seja um artifício a mais de dificuldade, em outros casos parece só uma escolha errada, mesmo.
As escolhas sonoras, por sua vez, são econômicas e funcionais, sem grandes destaques. O trabalho de vozes original é bom (ainda que pessoalmente eu me irrite um pouco com o timbre dos Mudokon) e boa parte do jogo se passa sem um acompanhamento musical, que quando surge, em trechos de maior tensão, consegue acrescentar uma camada de adrenalina a mais, valorizando pontos-chave da ação. A ambiência, por sua vez, é muito bem tratada, com efeitos e ruídos melhor aproveitados jogando com um bom headset.
Conclusão
Oddworld: Soulstorm é muito provavelmente o jogo artisticamente mais bem resolvido de toda a série, e narrativamente uma das investidas mais seguras de Abe e sua eterna jornada involuntária como um grande líder para o seu povo. Visualmente é lindo, ainda que não surpreenda pelo contexto de nova geração, e se mantém seguro na maior parte do tempo. A vantagem disso é ser estável graficamente, mesmo em passagens mais movimentadas e cheias de efeitos e partículas. A desvantagem é não dar um passo além do que se esperava.
O que parece não ter evoluído o suficiente é mesmo a jogabilidade. Sistemas de interação burocráticos, movimentos imprecisos e meios de exploração e crafiting forçados e pouco orgânicos parecem deslocados no projeto, e mesmo mantendo um alinhamento conceitual com seu antecessor, o game parece estar deslocado no espaço e no tempo. Se é verdade que esse aspecto datado lhe garante certa identidade, pode ser também aquilo que o distancia dos jogadores atuais e de um reconhecimento maior dentro da indústria.
Disponível para Playstation 5, Playstation 4, XBox One e PCs desde 23 de abril de 2021, Oddworld: Soulstorm tem textos e legendas em português brasileiro e áudio original em inglês.