Análise Arkade: decida se vai ser o médico ou o monstro em Vampyr
Já reparou como os vampiros são subaproveitados no mundo dos games? Há zumbis para todo canto, mas os vampiros são bem raros de se ver. Eis que chega Vampyr, dos produtores de Life is Strange, e faz um ótimo trabalho para colocar os sanguessugas em evidência!
O médico e o monstro
Vampyr se passa na Londres vitoriana do início do século XX, em pleno auge da gripe espanhola, vírus que dizimou 5% da população mundial e se tornou a pandemia mais letal da história da humanidade.
Porém, esta não é a única ameaça que assola a cidade: há uma infestação de vampiros se alastrando pelo submundo. Assumimos o controle do mais novo vampiro da cidade, Jonathan Reid, que por ironia do destino também é um médico. Não sabemos quem foi o vampiro que nos criou, e este mistério é um dos pilares que mantém a história interessante.
Confira abaixo os 17 minutos iniciais do game, legendados em português:
Depois de matar a própria irmã e vagar sem rumo por algum tempo, Jonathan é socorrido pelo dono de um importante hospital, que tem certa fascinação por vampiros e acredita que eles podem ser reintegrados à sociedade. Ele lhe oferece uma muda de roupas, um lugar para ficar e um emprego: ajudar a cuidar da saúde das pessoas.
Aí entra o dilema de médico e monstro que é o cerne do game: iremos manter a humanidade do protagonista e nos abster do sangue humano, ou sucumbir à sede e deixar um rastro de sangue por Londres? Quem decide isso é o jogador, mas tenha em mente que suas escolhas terão consequências.
Explorando Londres
Vampyr se apresenta na forma de um RPG de ação que é relativamente simples em suas mecânicas, mas denso em suas possibilidades. Como controlamos um vampiro, só saímos durante a noite, mas devemos tomar cuidado não só com outros vampiros hostis (o game cria sua própria hierarquia, com ekons, skals, entre outros), mas também com os vários grupos de caçadores de vampiros patrulhando as ruas.
Enquanto explora as decadentes ruas de Londres, você irá vasculhar armários, gavetas e latas de lixo para conseguir matéria-prima para criar equipamentos e remédios, ou dar um upgrade nas suas armas.
Armas? Pois é, o combate é uma parte importante do game, misturando superpoderes vampirescos e mordidas com esquivas sobrenaturais e ataques usando bastões, lâminas e armas de fogo. Confira um gameplay que mostra algumas habilidades e pancadaria:
Entre skals, ekons e caçadores de vampiros, prepare-se para encarar algumas monstruosidades que parecem lobisomens e algumas boss battles bem desafiadoras. Seja em becos decrépitos, ruas mal iluminadas ou pelos sórdidos esgotos, você sempre estará em perigo em Vampyr — mas pode usar seus poderes vampirescos para evitar alguns combates, claro.
Morder ou poupar?
O combate é apenas uma parte do game. Vampyr também é um jogo sobre relacionamentos e diplomacia, então você vai gastar muito tempo conversando com cidadãos, que irão lhe pedir coisas (sim, temos muitas sidequests do tipo “garoto de recados” aqui), e precisarão de cuidados médicos ocasionalmente.
O lance aqui é: cada cidadão é uma vítima em potencial. E decidir se vai morder ou poupar alguém é uma decisão difícil, que pode causar drásticas mudanças na qualidade de vida de todo um distrito.
Morder alguém é a maneira mais simples de ganhar XP, e a quantidade de experiência aumenta conforme você passa a conhecer melhor uma pessoa, bem como se ela estiver saudável. Porém, conhecer bem demais uma pessoa pode acabar tornando a decisão de mordê-la ainda mais complicada.
As pessoas também têm círculos sociais, que são afetados caso elas morram. Por exemplo, você pode achar que um charlatão aproveitador merece ser mordido, mas ele pode ser casado com uma enfermeira, e se o marido dela morrer, isso irá afetá-la, e seus pacientes serão afetados por tabela.
Quanto mais influente é um cidadão, mais XP ele concede, mas sua morte também causa mais impacto. Se você morder o diretor do hospital, por exemplo, ganha 6 mil pontos de experiência sem esforço… mas isso pode desmotivar todos os funcionários, o que se reflete no cuidado aos pacientes.
Durante suas jornadas por Londres, você vai acumulando XP, e só irá upar realmente seu personagem quando for até um esconderijo para descansar. Isso também faz o tempo passar, e ao virar da noite, você pode ver as consequências de suas ações no diagrama dos distritos, que mostra quem está vivo, quem está morto, quem está doente e qual o nível de saúde de cada distrito.
Decidiu morder alguém? Ok, mas nunca é só chegar mordendo. Os humanos comuns precisam ser hipnotizados e levados para um local reservado antes de serem “abraçados” (pois é, é assim que o jogo chama). Se o nível do seu poder de hipnose for menor que a resistência da sua presa, ela não poderá ser mordida.
Veja minha primeira mordida abaixo, com os diálogos e a hipnose inclusos:
Vez ou outra você também deve escolher o destino de um cidadão. Há gente fazendo coisas erradas por motivos nobres — tipo roubar remédios do hospital para atender aos pobres da periferia –, e você pode fazer vista grossa ou puni-los. Isso também acaba reverberando pelo distrito, gerando consequências que nem sempre são positivas (falo por experiência própria).
Essa dicotomia entre ser um médico piedoso ou um vampiro cruel é muito interessante, e torna as escolhas de Vampyr bastante tensas. Já jogamos outros RPGs com decisões importantes antes, mas creio que essa seja a primeira vez que temos o controle sobre a vida ou a morte de cada NPC de um game, e devemos lidar com as consequências de nossas ações.
Audiovisual
Vampyr não é o que pode ser chamado de “triple A”, mas a Dontnod fez um ótimo trabalho com o orçamento que tinha. Visualmente o jogo é muito bem resolvido, com uma atmosfera sombria que casa muito bem com a proposta vampiresca, e é favorecida pelos ótimos efeitos de iluminação (a luz das fogueiras é particularmente impressionante).
Os personagens não são especialmente caprichados, mas o jogo tem noção disso, evitando efeitos de zoom desnecessários. Nos diálogos, porém, fica clara a falta de expressividade dos modelos, e a sincronia labial também deixa a desejar. Considerando o grande volume de diálogos, essas limitações acabam sobressaindo.
Uma coisa que deixa bastante a desejar é o mapa: ele é bem confuso, e como aqui temos muito daquelas missões de procurar um objetivo dentro de uma área específica, é fácil acabar perdido, especialmente porque ele não mostra andares e subníveis. Também não há mini-mapa na tela (apenas uma bússola, ao estilo PUBG), de modo que ficar entrando no menu para conferir o mapa se torna uma necessidade.
As dublagens no geral são boas, um inglês com sotaque britânico condizente com a cidade em que o game se passa. A trilha sonora é simplesmente espetacular, abusando de violoncelos e corais para somar ao clima gótico. A música chega a ser incômoda em alguns momentos, de um jeito que realmente potencializa o clima dark do jogo.
Vale ressaltar que Vampyr chega ao Brasil com menus e legendas em português brasileiro. O trabalho de localização foi muito bem feito, tornando fácil acompanhar o desenrolar da trama. Há muitos diálogos, escolhas e cartas para ler, então o bom entendimento é fundamental.
Conclusão
Vampyr é um RPG de ação diferente. Ele tem bastante coisa em comum com outros jogos do gênero, mas seu conceito de “bem” e “mal” é totalmente diferente, e a forma como nossas escolhas reverberam pelo game torna cada tomada de decisão um suplício.
Só para você ter noção, eu perdi um distrito inteiro por ter descuidado da medicação das pessoas. Eu não esperava que as pessoas morressem de fadiga ou cefaleia (dor de cabeça), mas elas morreram. De uma tacada só, mais de 15 NPCs foram para a cova por um descuido meu. Com isso, perdi alguns pescocinhos em potencial para morder, bem como um punhado de sidequests.
É possível criar outros vampiros, mas isso é algo que eu não fiz, então não tenho noção de como isso afeta o jogo. E isso faz parte da beleza de Vampyr: eu e você podemos jogar o mesmo jogo, mas nossa experiência com ele pode ser completamente diferente, de acordo com nossas decisões.
Eu ainda não terminei a campanha, mas já estou com mais de 25 horas de jogo, e sinto que minha jornada está perto do fim. Ainda não sei se o jogo tem vários finais, ou se o fato de eu ter perdido um distrito terá algum impacto no desfecho da trama. Estou curioso para ver o final, e talvez volte a falar sobre o jogo aqui no site em um “Além do Review“.
O fato é que Vampyr não é para todo mundo: seu andamento é lento, e ele é pesado e cheio de diálogos, o que o torna bem menos “aventuresco” que outros RPGs de ação que tem por aí. Seu mundo aberto é bem pequeno se comparado a outros games do gênero, mas esconde sua parcela de segredos e mistérios.
Se essa descrição não te assusta, pode vir sem medo, pois Vampyr é um baita jogo, ainda que do seu próprio jeito. Denso e obscuro, o que temos aqui é um título que realmente faz um excelente trabalho na hora de transpor o submundo dos vampiros para o mundo dos games, e prova que a Dontnod pode ir muito além dos dramas adolescentes de Life is Strange.
Vampyr está sendo lançado hoje, com versões para PC, Playstation 4 e Xbox One. Este review foi feito com base na versão PS4 do game (rodando no PS4 Pro), em uma cópia que recebemos antecipadamente da assessoria da Focus Home Interactive.