Análise Arkade – Doctor Who: The Edge of Reality é um afago aos fãs… e só isso
Mesmo que você não tenha assistido a sequer um dos mais de oitocentos episódios do seriado mais longevo da história do entretenimento, provavelmente consegue reconhecer um certa nave-cabine policial de deslocamento espaço-temporal como um dos ícones mais importantes da cultura pop e da ficção científica. É possível até mesmo saber que ela se chama TARDIS e que é muito maior por dentro do que parece por fora. E quem sabe, tem noção de que o tal “Doutor Quem” já passou por mais de 10 encarnações desde que estreou na TV britânica, lá nos anos 1960.
Doctor Who é um daqueles pilares nerds atemporais e, como tal, traz consigo uma legião de fãs, conhecidos em festivais e convenções como Whovians, uma comunidade bastante fiel e, como não poderia deixar de ser, ávida por tudo o que for relacionado com a série. Confesso que não tenho esse nível de envolvimento com a franquia, mas mesmo não tendo assistido à fase clássica, a exceção de alguns poucos episódios que encontrei por aí ao longo da vida, sempre tive bastante interesse desde que vi aquele que provavelmente é o mais conhecido episódio de toda a nova geração: Blink, aquele com os assustadores anjos lamentadores, que assisti ainda em uma aula de roteiro na faculdade.
De lá para cá, acompanho tudo o que posso sobre o tema, e daí o meu interesse por Doctor Who: The Edge of Reality, um novo-velho jogo inspirado pelas histórias do doutor e seus inseparáveis companions. Novo-velho, deixe-me explicar melhor, porque esta é uma versão revisada e ampliada, por assim dizer, do original Doctor Who: The Edge of Time, jogo em realidade virtual lançado em 2019. Como ainda não tive a oportunidade de experimentar o jogo base, chegou a hora de enfim, descobrir se finalmente teremos uma bela representação de um universo (metafórico e literal) dos mais ricos já criados.
Um episódio como outro qualquer
Certo, reconheço que o rótulo de que este pode ser considerado só mais um episódio, só que interativo, não é lá muito original, principalmente em jogos baseados em seriados de TV ou cinesséries, mas não ser novidade não significa que não seja verdade. O game trata de um recorte original no cânone de Doctor Who, nos colocando na pele de um parceiro, à distância, da versão mais atual da protagonista, esta vivida aqui, como no material primário, por Jodie Whittaker, a décima terceira versão deste alienígena aventureiro. Descobrimos, quando em uma entediante visita à lavanderia, que a realidade está infectada com um vírus que tem o poder de destruir tudo, presente, passado e futuro, e basicamente dissolver a realidade, e que somos a última esperança para evitar o colapso da realidade.
Cabe ao jogador, portanto, sob as orientações da mentora, encontrar três cristais espalhados em pontos específicos do tempo e do espaço para frear o avanço do vírus e deter a destruição do universo. O game original, com uma duração bastante adequada para os padrões de produtos VR, levava algo em torno de duas horas e meia à três horas para ser concluída, e o caminho era basicamente esse mesmo da premissa: três fases, três cristais, junta tudo e o dia está salvo.
Esta nova edição acrescenta uma passagem relativamente grande como epílogo da jornada. Além de trazer uma fase inteira e mais algumas missões especiais, adiciona a participação mais do que especial de uma outra versão do doutor, a interpretada pelo favorito de muita gente (inclusive deste que vos fala) David Tennant, o que adiciona algo em torno de uma hora, uma hora e meia para além da versão original. Em outras palavras, a edição 2021 do jogo dura entre quatro a quatro horas e meia de campanha. Talvez um pouco mais para os colecionistas e adeptos dos 100% das conquistas e troféus.
Esta jornada, então, nos leva a três lugares muito conhecidos dos fãs de longa data da produção, e traz para a versão jogável de alguns dos cenários e antagonistas mais clássicos da história: além dos próprios Anjos Lamentadores (ou Weeping Angels, do original), que protagonizam a passagem mais angustiante e, na minha visão, o ponto alto do jogo, também encontraremos os tradicionais Daleks, máquinas sencientes (e com personalidade difícil) que surgiram lá no segundo episódio da saga clássica, ainda em 1963, e considerados os maiores vilões da saga, sendo responsáveis diretos, inclusive, pelo extermínio da raça dos Timelords, da qual pertencia o próprio doutor.
Os Daleks seriam os adversários com o visual mais cafona de toda a ficção, com aquela cara de droide, voz robótica e instinto assassino, não fossem os inimigos apresentados no terço final do jogo, o puxadinho adicionado para esta edição, que nos coloca em uma espaçonave cheia dos implacáveis Cibermen, máquinas destituídas de qualquer emoção que ficaram marcadas com as responsáveis pela primeira regeneração (termo adotado quando foi necessário trocar o intérprete do herói e precisavam de uma explicação de que ele se restauraria em uma nova forma sempre que estivesse à beira da morte) da série, em 1966.
Em suma, o game é uma colcha de retalhos com algumas passagens sem qualquer conexão mais lógica com o claro objetivo de agradar a fanbase da franquia. Sabe aqueles episódios que eram muito comuns nos seriados dos anos 1990 que basicamente contavam com personagens relembrando trechos de episódios anteriores? Edge of Reality meio que cumpre o mesmo papel, retomando, sob uma nova perspectiva, os pontos mais icônicos de Doctor Who muito mais pela relevância histórica do que pela sua importância para a trama. Ainda que traga alguns bons lampejos de uso criativo das mecânicas e características de cada mundo, essa escolha traz consequências nem sempre positivas para o conjunto da obra.
Isso não significa, necessariamente, que a escolha seja ruim por si ou que não funcione. O fanservice, quando bem-feito, pode ser um grande trunfo de obra licenciada, principalmente porque é evidente que seu público primário é composto por quem já conhece a marca, já a acompanha e já tem afeição por ela exatamente por passagens como estas aqui representadas. Ignorar isso seguiria na contramão de qualquer produção licenciada. E olhando por esse prisma, Doctor Who: The Edge of Reality está cheio de easter eggs e referências para vários níveis de conhecimento.
Dos colecionáveis encontrados pelos cantos de cada ambiente aos detalhes no cenário, das missões que revisitam planetas e momentos temporais específicos, do uso intensivo da icônica chave-de-fenda sônica, tudo está lá, funciona dentro da lógica típica do seriado e confere uma identidade autêntica toda própria à produção. Infelizmente, porém, esses elementos parecem muito mais uma muleta de apoio do que um recurso, e aí carecem de sustentação para configurar um conjunto único, coerente, relevante dramaticamente. O fio de história está, sempre, em segundo plano, quase que só uma desculpa (pouco esforçada) para conectar cada viagem da TARDIS. O resultado é que separados, os trechos parecem muito mais interessantes do que a soma das partes.
Puzzles, FPS, Stealth… ou nada disso
Essa montagem de recortes acaba transbordando também para as mecânicas da jogabilidade, onde a mistura de estilos compromete a coesão das possibilidades de ação. Os primeiros níveis nos colocam na dinâmica de percorrer os mapas, a grande maioria composta por corredores, as vezes labirínticos, e cercados por paredes — grande parte delas invisíveis — e sempre bem limitados. Como ação, nos cabe coletar os já citados colecionáveis e alguns itens para o limitadíssimo inventário, que mais tarde serão parte da solução de quebra-cabeças. Estes, com soluções encontradas em detalhes do cenário, são objetivos interessantes, mas pontuais.
O modelo funciona melhor no segundo grande trecho, quando estamos em corredores apertados, com a necessidade de não tirar os olhos dos famigerados anjos, que felizmente tem ali um respiro um pouco maior do que uma piscada de olhos. É um trecho tenso, com um mapa opressivo e que realmente transporta para o game a agonia do episódio em que se baseia. Este é o primeiro momento onde sentimos a possibilidade do fracasso, da derrota, e sem um checkpoint intermediário, ser pego significa voltar ao início e recomeçar a busca. Confesso que fiquei aliviado em não estar passando por ali jogando a versão VR.
Ainda assim, esses melhores momentos não são imunes de problemas contidos na gênese do projeto. A área de interação e de seleção do que pegar, do que apertar, do que mover, é bastante incômoda e bastante confusa. Se com um dispositivo de movimento há quase que uma naturalidade ao acionar um botão ou guardar um crânio, com o cursor (utilizando o analógico de um controle comum) a coisa fica bem mais complicada pela precisão e pela distância. Não foram raras as vezes onde o objeto não estava ao alcance por algum detalhe bobo, como estar ou não agachado, ou com algum elemento na frente, ou por não estar perfeitamente alinhado ao ponto de interesse.
A última fase desse primeiro bloco mistura salas onde é necessário passar despercebido por sentinelas e, mais adiante, mudamos para um modelo de combate mais direto. Ambas as mecânicas funcionam pouco e de forma simplória, além de ignorarem tudo o que havíamos aprendido antes. Ainda que traga diversidade de gameplay a um jogo que não traz tantos recursos assim, algo que pode renovar o interesse de quem já tinha se esgotado do que veio antes, isso evidencia, ainda mais, essa falta de unidade do jogo, e com isso também uma falta de imersão e de engajamento por parte do jogador.
Sem percebermos, estamos encadeando uma série de minigames esparsos, algo que só ganha mais força com a emenda frágil desta base com o complemento que vem a seguir. Por um lado, sim, Doctor Who é uma salada de gêneros desde o princípio, e toca a comédia, o terror, o mistério, o drama e a fantasia com o mesmo desprendimento que uma antologia, mas ainda assim, há fios condutores mais sólidos que permitem essa flutuação, algo que por sua vez se mostra bastante turvo no game, principalmente porque nenhum dos estilos acaba sendo implementado de forma satisfatória quando na comparação com tantas outras opções no mercado.
Limitações (também) estéticas
A herança do design projetado para o VR, seja nos aspectos de jogabilidade e interação com o ambiente; seja no visual, é tão latente quanto limitante. Olhando como produto por si e não como uma derivação, há algumas boas soluções de construção de cenários, com cores intensas e uma boa modelagem em várias elementos, mas no geral há uma precariedade bastante evidente com detalhes esquisitos, arestas mal refinadas, cenários vazios ou com uma cenografia empobrecida, texturas repetitivas e vegetação sem qualquer movimento ou naturalidade.
Contudo, são dois os aspectos mais problemáticos nesse sentido: o primeiro e mais perceptível é que há uma modelagem humana limitadíssima, que lembra os piores exemplos da passagem da geração PS2/XBox para a resolução HD da geração seguinte. Não fosse por conhecermos os personagens que aparecem em cena e suas versões reais, jamais os reconheceríamos. Bom lembrar, todavia, que são pouquíssimos os momentos onde olhamos para um ser humano ao longo de toda a campanha. O outro quesito bem aquém do que esperamos de uma produção em 2021 é a iluminação, completamente desconectada com o mundo e sem qualquer reação dinâmica ao que acontece.
O aspecto sonoro, contudo, se sai um pouco melhor, com algumas boas músicas de ambiência que traduzem o clima de mistério espacial sem comprometer o todo; efeitos e ruídos que cumprem o protocolo; e um ótimo trabalho com vozes que traduzem bem a interpretação característica da série, com bons diálogos, piadas e conversas paralelas de preenchimento que realmente adicionam valor à produção. Bom destacar que o jogo se encontra totalmente legendado para o português, e seria perfeito caso legendas e conteúdo na tela não conflitassem em momentos de gameplay, as vezes até atrapalhando a visibilidade.
No geral, olhando de longe, Doctor Who: The Edge of Reality até oferece boas paisagens e alguns prints legais para a análise, mas quando prestamos mais atenção, os detalhes — ou a falta deles — falam mais alto e não podem mais ser esquecidos. Ainda que descontemos nosso senso crítico pelo entendimento de que a versão original não foi pensada para a definição da TV, a sensação de que este parece um jogo de 12 anos atrás é inevitável.
Conclusão
Doctor Who: The Edge of Reality não esconde que tem pretensões bastante modestas, e na maior parte do tempo é muito mais uma experiência expandida para fãs do programa de televisão do que um jogo com identidade própria. Enquanto uma coleção de recortes com algumas referências das mais marcantes para os fãs do seriado, faz um trabalho satisfatório, por umas quatro horas, com algumas passagens realmente interessantes e puzzles que, isoladamente, têm seus méritos.
Contudo, enquanto jogo, está cheio de lacunas, limitações técnicas e narrativas, tem uma jogabilidade instável que pouco consegue fazer com aquilo que se propõe, e não se sustenta por conta própria. Então, é um produto de nicho, talvez nem mesmo isso, já que lembra em certos momentos os exemplos licenciados mais malsucedidos de uma história recente de produções que pegam carona no sucesso do material original em outras mídias. Para quem não tem qualquer ligação emocional com Doctor Who, não há qualquer atrativo que valha o investimento de tempo, dinheiro ou emocional.
Com tantos temas a serem explorados ao longo das últimas décadas, é de se esperar que um dia tenhamos um jogo que faça jus ao legado da franquia. Que consiga transportar sim aquela breguice dos robôs que mais parecem o homem-de-lata de produções baratas, aquelas soluções absurdas para situações escabrosas, aquele humor tão característico da cultura britânica que nos acostumamos ver na TV. Como sátira, como arremedo, sugiro fortemente o especial não canônico que traz Roman Atkins (o eterno Mister Bean) interpretando o doutor. Já no mundo dos games… bem, esperemos a próxima regeneração de Doctor Who.
Disponível para Playstation 4, XBox One, Nintendo Switch, PC e nova geração por meio da retrocompatibilidade, Doctor Who: The Edge of Reality foi lançado em 30 de setembro de 2021 com vozes originais em inglês e legendas e textos em português brasileiro.