Análise Arkade: ProtoCorgi e o poder da nostalgia criativa
Nos confins do espaço sideral, uma raça alienígena ameaça aniquilar uma planeta desprotegido com ataques devastadores e muito poder bélico. Não há qualquer escolha lógica aceitável que não seja… enviar um cãozinho e toda a sua fofurice para resolver a situação. Simples, direto e sem rodeios, ProtoCorgi é exatamente isso que parece: um shoot ‘em up side scrolling (ou, como prefiro, um típico “jogo de navinha”) onde controlamos um cachorro cheio dos recursos — incluindo seu poderoso latido — contra as hordas inimigas. O que poderia dar errado nessa ideia do auspicioso estúdio chileno Kemono Games?
Quem se importa com história em jogo de navinha?
Qualquer um que tenha jogado, nos áureos tempos dos anos 1990, games cujo objetivo é basicamente limpar tudo o que se mexer na tela com uma única espaçonave (ou algo que o valha) muito provavelmente não deve se lembrar de nenhum deles cuja história tenha se mostrado especialmente marcante ou algo capaz de aguçar nossas mentes. Quando muito, elas, as narrativas, estavam lá mais como parte de uma ambientação do que propriamente como algo com o qual deveríamos nos importar, nos engajar.
Já falamos de muitos representantes do gênero “jogo de navinha” aqui no site. Como Boiling Bolt, FullBlast, Airheart – Tales of Broken Wings, sem esquecer da edição que celebra o pai de todos eles, o inesquecível Space Invaders. Salvo raras exceções, como o brasileiro Esquadrão 51 Contra os Discos Voadores, a narrativa, em geral, não é o ponto forte desse tipo de jogo.
ProtoCorgi, com uma pegada retrô evidente, não foge do padrão e está muito pouco preocupado em criar um universo que se leve a sério de forma crível, dedicando-se a dar vida a essa ideia inusitada onde controlamos Bullet, um híbrido da classe C³ (Cute Cyber Corgium), obviamente da raça Corgi, que se torna a última esperança de um povo frente à ameaça implacável de um agressor e que, no processo, descobre que ainda precisa resgatar o grande cientista e seu fiel mestre (basicamente uma versão dedicada só a pets do pai de Mega Man), das garras desse terrível adversário.
Conta a favor deste plot improvável e lúdico a forma como ela nos é apresentada logo na abertura do jogo, com uma cena animada digna de bons animes japoneses que abre mão da palavra falada para se apropriar do espetáculo visual e do deslumbramento quase pueril de uma aventura espacial, não só tendo um apelo muito familiar sobretudo para crianças e jovens de todas as idades, como sem qualquer amarra em termos de idioma. Tudo isso é apresentado de uma forma muito instintiva e que realmente nos propõe a tal da suspensão da descrença para comprarmos a ideia. Em menos de dois minutos, já estamos convencidos: vamos lá controlar um cachorro no espaço e destruir alguns aliens!
Voando e atirando em ProtoCorgi
A familiaridade temática de ProtoCorgi não está só na apresentação narrativa ou visual, mas principalmente em sua gameplay. No formato de progressão horizontal — como Gradius nos doutrinou ao longo de décadas — iniciamos a jornada controlando nosso intrépido protagonista e utilizando os caracteres da palavra BARK (ou latido, em inglês) como munição. Não é necessário jogar nem cinco minutos para que o arsenal esteja muito mais recheado e logo estaremos atirando mísseis, ondas de choque, ossinhos e todo tipo de projétil para todos os lados, tornando a tela do jogo um verdadeiro festival de cores e formas quase incompreensíveis.
A movimentação do herói por todos os lados é bastante satisfatória e permite manobras arrojadas bastante confortáveis para veteranos do gênero, mas a fluidez dos tiros parece menos responsiva. Os power ups que coletamos por vezes se mostram caóticos e alguns até parecem trazer um downgrade, com efeito negativo em nossos equipamentos. Não é raro coletar algo que limita, por exemplo, o alcance do nosso tiro principal.
É necessário aprender, pelo bom e velho método empírico, quais melhorias são realmente interessantes para o nosso estilo. O que é… estranho. Nesse tipo de jogo, estamos acostumados a coletar ícones brilhantes para ficarmos mais poderosos. É contraintuitivo termos que “desviar” de certos power ups para não correr o risco de piorarmos o potencial de nosso cãozinho espacial.
Jogo de navinha, porém, é muito mais do que atirar sem parar em todos os inimigos até não sobrar mais nenhum. Ou se faz isso com estilo, ou melhor nem começar. E ProtoCorgi é muito eficiente em nos bonificar o tempo todo por bons resultados, não só em um sistema de pontuação cheio de efeitos surreais — como doces pipocando de todos os lados e multiplicadores insanos — como rankings que nos desafiam, o tempo todo, a tentar fazer um pouco mais, um pouco melhor. O fator de replay e, consequentemente, a vida útil de jogos desse estilo dependem do quão motivado você está para recomeçar tudo de novo, e aqui o incentivo é constante.
Para fazer valer os quatro níveis diferentes de desafio, o jogo vai muito além de aumentar a barra de vida de inimigos ou simplesmente multiplicá-los desmedidamente na tela. Mudar de dificuldade nos faz perceber alterações mais profundas e cuidadosas inclusive na configuração dos obstáculos na tela, timing de eventos catastróficos e outros perigos iminentes. Não se deixe ser enganado pela temática mais infantil do game, porque mesmo nas escolhas menos complicadas, há que se desdobrar para fazer cada run valer a pena para superar a anterior. O tempo de campanha não é longo, então não se afobe e passe por todas as dificuldades sem soberba, para assim aproveitar tudo o que foi planejado.
Maior vida útil por modos diferentes
Se o desafio não for o suficiente para retornar ao game, a melhor notícia é que este é o tipo de jogo que quanto mais se joga, mais fácil e confortável ele fica. Isso porque ele adota um modelo de bonificação quase roguelike onde a cada progresso feito na partida anterior, mesmo que sejamos eliminados antes de chegar ao fim, recebemos como bônus uma quantidade maior de vida ou de continues. Ou seja, quanto mais você aprende a jogar nas piores condições, mais chances de errar você recebe, o que automaticamente permite que cheguemos mais longe na partida seguinte tanto pelo aprendizado quanto pelas benesses de ser resiliente.
A campanha principal com cinco níveis básicos e seu sistema de progressão são essenciais para se aproveitar ProtoCorgi, mas não necessariamente é a única forma de se jogar. Além de modos de treinamento e tutoriais suplementares que são liberados conforme se alcança algumas metas, há ainda um poderoso editor de níveis para os level designers aspirantes que, acreditem, nos exige mais tempo do que gostaríamos de assumir. A única questão negativa que eu vejo na dependência da progressão é que alguns elementos possíveis precisam, uma vez mais, de objetivos secundários da campanha para serem liberados. Então para se ter todas as ferramentas à disposição, não tem jeito, tem que fritar os inimigos mais e mais vezes durante o modo principal.
Outro problema com esse editor é que ele simplesmente parece desajeitado e pouco intuitivo principalmente considerando os controles padrão do Nintendo Switch. Depois de experimentar ótimas ferramentas recentemente, como a de Meet Your Maker, e relembrando a excelência, no próprio Switch, de Super Mario Maker 2, fica difícil não se frustrar com os enroscos e dificuldades para criar alguma coisa que seja minimamente jogável mesmo depois de um bom tempo investido. Para aqueles que não tem muita paciência com esse tipo de funcionalidade, certamente não é ProtoCorgi que vai fazer essa opinião mudar.
Fofura e intensidade
Provavelmente não vou me cansar de destacar o trabalho estético apurado de ProtoCorgi, mas ao mesmo tempo, confesso estar sentindo o mercado ficar um tanto quanto saturado do modelo pixel art. Não me entenda mal, eu realmente aprecio o estilo e creio que aqui ele é muito coerente com a proposta saudosista de ressignificação de um formato clássico que só tem a ganhar com novas experimentações como esta, mas ao mesmo tempo, há sinais de desgaste e limitação nesta escolha na composição de cenários, por exemplo, que mesmo muito bem trabalhados em termos de camadas e profundidade, acabam se mostrando um tanto quanto repetitivos em texturas ao longo da curta jornada.
O próprio protagonista deixa para trás, depois das belas cenas de abertura, parte de seu carisma, e mesmo guardando alguns bons traços estilizados típicos do estilo artístico oriental, ainda se apoia naquilo que vimos inicialmente para segurar seu apelo. Quem mais perde estilisticamente são os inimigos genéricos, incluindo chefões, que tem pouco ou quase nenhum tipo de destaque que os tornem ao menos reconhecíveis segundos depois de os deixarmos para trás. Não há nada que seja especialmente memorável — exceto pelo Peixe-Diabo Negro cantor, esse é incrível — e isso se dá inclusive pelo design mais genérico de cada um deles. Mesmo com um ou outro recurso que se sobressaia sobre a pureza dos 16 bits, o jogo mais perde do que ganha com esta escolha.
Por outro lado, a trilha sonora é extremamente feliz em nos trazer canções temáticas muito bem trabalhadas para cada ambientação, o que se soma a bons efeitos e ruídos em uma mixagem bem orquestrada. Ao contrário do design visual, o trabalho de vozes nas batalhas contra chefes ajuda a tornar o embate um pouco mais agitado e com aquele tom de tokusatsu prometido desde a abertura. Até mesmo o uso dos silêncios, as batidas mais eletrônicas ou a balada típica de aventuras mais emocionais, tudo está muito encaixado e funciona a contento, e não é difícil ficar com alguns temas na cabeça mesmo depois de desligar o jogo, cantarolando por aí. Impecável!
Conclusão
ProtoCorgi é definitivamente um ótimo shoot ‘em up de progressão lateral, com mecânicas sólidas, muitos incentivos ao replay e belas soluções de jogabilidade que, se não reinventam o gênero, certamente o respeitam profundamente. A estética pixel art tem seus méritos e se encaixa com a proposta, mas cobra seu preço ao oferecer poucas opções de design de ambientes e de personagens, ao contrário da trilha sonora que é simplesmente excepcional.
Se a campanha não é particularmente longa, a vida útil do game é muito maior não só por um modelo de progressão que incentiva o contínuo retorno, bem como permite que o modo de edição seja constantemente incrementado, mesmo que não seja dos mais confortáveis para quem quer se divertir criando fases novas. Soma-se a isso o carisma do cãozinho Bullet e certamente os fãs de um bom jogo de navinha estarão bem acompanhados no eterno embate contra as forças nefastas do espaço.
ProtoCorgi está disponível para Nintendo Switch e PC, com localização de textos para vários idiomas, incluindo o nosso português brasileiro.