Análise Arkade – The Library of Babel é único de várias formas

7 de maio de 2023
Análise Arkade - The Library of Babel é único de várias formas

Adaptações de obras literárias para o universo dos games é um campo ainda pouco explorado, mesmo que alguns expoentes sejam sempre referência no que diz respeito a formas de trazer para um mundo interativo textos por vezes criados para provocar a imaginação e evocar as referências do leitor.

Poderíamos citar um sem número de exemplos, como o ainda recente Call of Cthulhu ou o subestimado Dante’s Inferno, mas é sempre evidente que a passagem de uma mídia para outra se dá, atualmente, muito mais na esfera da livre inspiração do que necessariamente da transposição fiel. Esse é, também, o caso do objeto desta análise.

Bebendo de uma boa fonte

The Library of Babel, desenvolvido de forma independente pela Tanuki Game Studio, é daqueles eventos onde a obra original não é das mais populares ou facilmente reconhecíveis, mas que acaba se tornando um pouco mais procurada pela curiosidade que o jogo pode gerar no público.

O livro compartilha o título com o game e foi escrito pelo autor argentino Jorge Luis Borges, e narra uma aventura pela perspectiva de Ludovik, que é incumbido de investigar uma série de crimes cujo responsável, ao que tudo indica, é um culto de posse de todo o conhecimento que um dia já foi escrito, e até daquele que será produzido no futuro.

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Um “pequeno” detalhe: o jogo, que pela sinopse mais parece uma narração de uma passagem religiosa, se passa em um futuro bem distante, um pós-pós-apocalipse se assim podemos chamar, onde a humanidade extinta já é uma vaga lembrança e o mundo é habitado por máquinas sencientes que desenvolveram uma nova organização social que parece reiterar as origens da nossa civilizaç˜ão.

A ambientação estabelecida logo nos primeiros instantes do game é primorosa, propiciando densidade e profundidade a um mundo tomado por uma mistura curiosa entre a natureza crua e milênios de desenvolvimento tecnológico. Simplesmente encantador.

Ao longo da campanha, quase linear e bastante apoiada no desenvolvimento narrativo, tudo vai ficando um pouco mais complexo e, exatamente por isso, ainda mais interessante.

Os diálogos podem ser um pouco cansativos, inclusive porque o português não é um dos vários idiomas das legendas disponíveis, mas vencida essa barreira, quaisquer elementos maniqueístas acabam ficando de lado para dar lugar a questionamentos um pouco mais sofisticados.

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Afinal, o que é ser um indivíduo nesta sociedade? O que torna cada sujeito uma mente única e provida de seus próprios sentimentos? E qual é o verdadeiro sentido do conhecimento? Questões que, claro, não se colocam para serem respondidas pelo jogo, mas que problematizam motivação e propósito.

Aliás, para aqueles que gostam de conclusões objetivas, talvez haja aqui um grande problema porque a condução da história não respeita bem os princípios convencionais. O fim, sobretudo, está longe de ser uma solução e está muito mais para o início de questionamentos maiores. The Library of Babel, definitivamente, não se interessa pelas respostas, mas pelas incógnitas.

Assumindo o controle

Se a forma como a condução da trama é ousada, mas sabe exatamente quais são os princípios que a norteiam, não sei afirmar o mesmo sobre o sistema de gameplay. Ao assumir mecânicas de furtividade, já que nosso herói é um seeker, e não exatamente um combatente, temos momentos bem demarcados para exploração em plataforma, passagens de stealth e solução de puzzles.

Por um lado, o level design tem seus momentos de brilhantismo e outros mais genéricos e comuns. Há uma pitada de metroidvania na criação de caminhos complementares que se abrem a partir de chaves e habilidades a serem adquiridas, mas no geral a meta é atravessar do ponto A ao ponto B abrindo portas, acionando dispositivos e solucionando caminhos.

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Por outro, há um certo desequilíbrio ao nos colocar em trechos que exigem precisão e habilidade que o jogo, por sua vez, não proporciona. Há uma curva de aprendizagem não exatamente em como lidar com comandos e ferramentas, mas sim em como se adaptar principalmente ao modelos de salto e agarrão em beiradas.

Se não chega a ser rígido, é um jogo pouco maleável e não serão raros os momentos onde vamos nos frustrar ao tentar segurar uma quina e trombar com ela sem sucesso porque simplesmente estávamos perto demais. É preciso aprender bem a medir distâncias, e descobrir qual é a melhor abordagem para evitar o improviso e o eventual fracasso.

A dinâmica 2D nos lembra bastante a franquia Oddworld, até pela preferência por evitar o conflito, mas a maleabilidade é bem mais restritiva. A boa notícia é que há muito espaço para aprendizagem, porque os pontos de checagem são bem distribuídos e uma eventual morte acidental não causa mais que alguns segundos de atraso.

Para não dizer que a punição é praticamente zero, há um tipo de coletável em forma de cristal, utilizado como a moeda do jogo em lojas e outros pontos com comerciantes, que se perdem, pouco a pouco, a cada falha. Felizmente, em momento algum cheguei a deixar para trás quantidades significativas do recurso, mas o fato de estar perdendo algo nos cria uma pequena necessidade de repensar riscos desnecessários.

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Outra tarefa importante à qual só vamos nos importar verdadeiramente depois de algumas boas horas é a gestão de inventário, que não é econômico, mas que demanda um certo cuidado, sobretudo na mixagem de itens.

Seguindo os melhores exemplos do gênero point-and-click ou ainda de Resident Evil e seus semelhantes, é possível misturar coisas distintas de formas inesperadas para gerar aquele elemento que vai resolver aquele enrosco que parecia sem solução.

Como há poucos indícios do que pode ser misturado com o que, será necessário sempre uma mescla entre criatividade instintiva e, principalmente, empirismo. Eu, na dúvida, tentava misturar tudo o que eu pegava com o que eu já tinha pra não deixar passar nada.

Em resumo, nossa maior atividade será caminhando, pulando e nos abaixando para entrar em passagens estreitas ou para nos esconder em escombros e outros obstáculos. Há também interruptores e outros acionáveis, e há muitos NPCs com quem podemos conversar e descobrir mais sobre o mundo, ter dicas sobre nossas próximas metas e até receber missões secundárias.

Como o game não alivia ao explicitar a direção para onde devemos ir ou qualquer ponto de interesse no mapa, que serve basicamente para navegação em viagens rápidas, é fundamental prestar atenção nesses diálogos para não ficar perdido no mundo. A lista de tarefas é bem objetiva e ajuda bastante, mas ela diz muito mais o que deve ser feito do que como fazer.

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Esta forma mais crua de condução é bastante eficaz em nos provocar para o mundo que se apresenta, evitando que passemos inertes a ele. Conhecer aquele lugar deixa de ser um complemento e se torna parte inerente da experiência, o que significa que até é possível tentar curtir o jogo sem se importar com o background, mas isso significa abrir mão daquilo que lhe é mais peculiar e especial.

Jogabilidade e narrativa, aqui, são quase que uma coisa só, onde uma está intrinsicamente dependendo da outra para fluir. Ainda que essa condução pareça por vezes solta demais e dependente da memorização do jogador em saber quem é o fulano com quem ele deve falar e onde ele está, é fato que isso ajuda no engajamento.

Ousadia audiovisual

Se alguém me perguntar o que foi que primeiro me chamou a atenção para o jogo, a resposta é tão clara quanto óbvia: o traço e a direção de arte do game são nada menos que sublimes.

Há uma textura tão específica na criação dos ambientes e na composição da cenografia que mesmo nas passagens mais minimalistas eu ainda me pegava admirado com as pequenas nuances da profundidade de campo, no uso cuidadoso de cores mais sóbrias (sem abrir mão do contraste e da vivacidade quando necessário) e pouco esperançosas, mas nem por isso menos sedutoras.

A luz noturna com uma lua esfacelada é fascinante, o figurino de cada clã tem fortes e diversificadas inspirações culturais e a fluidez das animações é surpreendente.

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Soma-se a tudo isso uma bela ambientação sonora que trabalha com sons incidentais como uma trilha de contínua construção do suspense, flertando com os clássicos trillers noir do cinema da metade do século XX. Até pelo estilo de jogo mais cadenciado que não vai ter, salvo alguns picos de ação, uma sonoplastia poluída com diversas fontes concomitantes, há um senso de contemplação contínuo que só é rompido quando passamos da conta e tomamos aquele tiro impetuoso.

Aqueles que esperam mais oportunidades de ação ou ainda uma opção de combate aberto não se encontrarão em The Library of Babel, mas uma vez que assumimos este estado catártico de tensão contínua sem sobresaltos, o jogo entrega audiovisualmente exatamente aquilo que propõe.

Conclusão

The Library of Babel está longe de ser um produto refinado destinado a todos os públicos e, na verdade, cada uma de suas peculiaridades acaba tornando-o um pouco mais restritivo. O sistema de plataforma pouco convidativo e por vezes travado demanda mais resiliência do que eu estava preparado e foi necessário um ajuste de expectativas e execução.

A abordagem furtiva não é das minhas favoritas e com o tempo, pode acabar cansando, mesmo em uma campanha que dura em torno das cinco horas em uma primeira run. A solução de puzzles e a gestão de recursos também exigem paciência e uma dose de paz interior.

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Por outro lado, a história contada aqui em suas diversas camadas é muito profícua ao permitir várias leituras possíveis, todas válidas e impactantes. Se a condução de metas e objetivos é vaga e, em alguns casos, até falha, há uma necessidade de se prestar maior atenção a cada novo detalhe que nos agarra para dentro da história deixando a linha entre mecânica, estética e narrativa um pouco mais turva. Se essa mescla traz um certo estranhamento no começo da jogatina, insistir é a chance de que esse sentimento se torne parte intrínseca da experiência.

The Library of Babel foi lançado em 07 de abril de 2023 para Xbox Series X/S, Xbox One, PlayStation 5, Nintendo Switch, PlayStation 4 e PC, infelizmente ainda sem suporte para o nosso português brasileiro.

Paulo Roberto Montanaro

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