Cine Arkade – Meu Vizinho Adolf faz comédia sobre teoria da fuga de Hitler para a América do Sul
Admito que tenho assistido menos filmes latino-americanos do que eu gostaria. Seja por disponibilidade ou conveniência, a desculpa esfarrapada importa muito pouco, porque eu sou um fã declarado da forma como nós nos expressamos audiovisualmente.
Felizmente — e agradecemos à organização do Festival Filmelier pela viabilização disso — tive a oportunidade de assistir a Meu Vizinho Adolf, uma comédia de situação que nos coloca ao lado de um distinto senhor, o polonês Marek Polsky (David Hayman), que acredita piamente que seu vizinho é ninguém menos que Adolf Hitler.
A trama dialoga diretamente com as teorias de que o sujeito que liderou, na Europa, um movimento do qual todos nós precisamos sempre nos lembrar para evitarmos deixar que se repita, forjou a própria morte e se exilou, em segredo, na América do Sul para viver seus dias no anonimato, tal como tantos outros adeptos daquele regime, ideia que gerou reportagens e documentários ao longo das últimas décadas.
De tão estapafúrdia, a história ganhou contornos de lenda, algo que cai como uma luva nas mãos de um bom roteirista para criar das situações mais tensas às mais cômicas.
A começar por ser daqueles bons filmes cujo final é imprevisível — e sinceramente, a resolução acaba importando muito pouco — e a curiosidade surge não do mistério em si, mas sim dos eventos cada vez mais absurdos que se desencadeiam a partir de uma simples desconfiança.
Afinal, se ninguém acredita na palavra de um homem rabugento qualquer e que já tem certeza de suas convicções, como ele faz para provar sua constatação para as autoridades? E, pior que isso, como ele conseguirá lidar com tudo isso quando seu vizinho tentar se aproximar dele?
Ao beber de fontes diversas, dentre elas filmes como Janela Indiscreta e outros que abordam a paranóia e o vowerismo investigativo, Meu Vizinho Adolf segue por um caminho pouco convencional no gênero de comédia ao evitar as piadas fáceis ou quaisquer referências satíricas óbvias.
O roteiro de coautoria do também diretor Leonid Prudovsky está muito mais interessado em explorar as nuances de um relacionamento de encontros e desencontros entre dois velhos homens que carregam consigo suas angústias, amarguras e dramas de vida, tudo o que os levou até esse lugar (físico e emocional) onde se encontram.
Tecnicamente, a representação dos anos 1960, momento de efervescência política aqui em nosso continente, está muito bem trabalhada por uma direção de arte que evita o exagero e que acerta nos tons que transitam entre o terroso típico de uma cidade pequena do interior com as cores que percorrem o cinzento de um dia nublado para uma saturação plena de uma bela tarde de sol.
A fotografia transpira sensações ao nos levar ora para o soturno misterioso, ora para a resplandecência de tornar tudo reluzente, por vezes no contraluz para nos desorientar, priorizando o tempo e as sutilezas da interpretação do elenco. O câmera não tem pressa, não se assusta, e permite que olhares se cruzem, que o mundo desses dois homens vividos siga no ritmo deles.
Sem reviravoltas rocambolescas ou núcleos narrativos paralelos, o filme conta, em essência, com diálogos afiadíssimos e duas atuações simplesmente impecáveis.
Udo Kier, provavelmente o rosto mais conhecido do elenco — o ator esteve brilhante em Bacurau, por exemplo — traz uma sensibilidade a um papel que em outras mãos poderia descambar para o estereótipo, e desempenha, ao lado de Hayman, uma troca generosa que transforma, pouco a pouco, a animosidade em uma vulnerabilidade mútua, sem perder, no processo, a leveza rara com a qual a direção consegue tratar um assunto que poderia muito bem cair no dramalhão ou no sensacionalismo barato.
Enquanto uma obra de origem independente e fora do eixo convencional — esta é uma co-produção entre Colômbia, Israel, Polônia — não espere pelo padrão enlatado do gênero. A graça (se assim podemos chamar) aqui, está para além das piadas fáceis ou da comédia física pastelão, e se desempenha pelos detalhes, na rabugice de Polsky, na forma como Herman Herzog (nome assumido pelo pretenso füller) lida com seu vizinho e sua pouca disposição à amizade, ou mesmo na dúvida que paira no ar de, afinal, ser ou não aquilo que se desconfia.
Uma vez mais, tal como a traição de Capitu, pouco importa a resposta, mas sim a forma como a trama brinca com nossos sentidos de desconfiança. Ah, antes que eu me esqueça de confirmar, há sim uma resposta para a dúvida cruel, e surpreendente ou não, tanto faz. Aqui, é o caminho que importa, não como ele termina.