Cine Arkade – Teca e Tuti: Uma Noite na Biblioteca e a animação artesanal brasileira
Uma breve espiada nas listas de maiores bilheterias deste ano no mundo — e mesmo aqui, no Brasil — dá algumas dicas de como o mercado mainstream tem se comportado, e como as grandes produtoras norte-americanas tem respondido a ele. Dos 10 filmes mais vistos nos cinemas em 2024 até o momento, todos são continuações e novas reiterações de franquias já estabelecidas. Se considerarmos só o nicho de animação, não será difícil identificar que as três produções mais assistidas são o segundo filme de uma marca da Pixar e o quarto episódio de séries da Dreamworks e da Illumination. Impossível não perceber um movimento comercial focado na garantia de sucesso financeiro que esgana novas propriedades, novas ideias.
Não foi com esse cenário, porém, que os idealizadores de Teca e Tuti: Uma Noite na Biblioteca, tiveram que lidar quando propuseram o projeto vários anos atrás, ou ao menos eles não poderiam prever estrear no circuito com essa realidade peculiar, mesmo que essa realidade não seja exatamente uma novidade. A Rocambole Produções, fundada em 2003 por um grupo de egressos do curso de graduação em Imagem e Som no interior de São Paulo, tinha a ousada proposta de fazer animação… no Brasil, e se o desafio não era grande o suficiente, eles foram se meter a trabalhar com a nobre arte do stop motion, aquela raiz, com cenários, personagens e movimentação feitos artesanalmente, frame a frame, foto a foto, como a história do cinema nos ensinou a apreciar.
A direção tripla, compartilhada por Eduardo Perdido, Tiago MAL e Diego M. Doimo (que também se dividiram em uma diversidade de outras funções), mal sabia que adentrava uma jornada que renderia muito trabalho e uma certa dose de imprevistos previsíveis para quem se mete a fazer cinema em nosso país. Entre editais de fomento público e meios de viabilização financeira, mudanças de vida de seus realizadores e todas as dificuldades técnicas possíveis para se alcançar a qualidade almejada, foram 12 anos até chegar aqui, com o filme sendo exibido por várias cidades do país e almejando alcançar o máximo possível de pessoas Brasil afora, depois de fazer uma carreira respeitável pelo circuito de festivais, incluindo o prêmio máximo no Festival Internacional de Cinema Infantil deste ano.
Teca e Tuti: Uma Noite na Biblioteca, portanto, entra no circuito de exibição por uma perspectiva distinta da grande maioria dos seus concorrentes mais óbvios, apostando em um roteiro que se divide entre uma aventura vespertina que, buscando o diálogo com as novíssimas gerações, rebate na nostalgia que muitos de nós carregamos pelas obras com as quais crescemos na TV aberta, principalmente a difundida pelas emissoras de caráter educativo tão mais relevantes décadas atrás do que nos dias de hoje. O ritmo cadenciado de uma trama cheia de mensagens poderosas passa longe da imediatez tiktokiana que parece se estabelecer como um novo normal inclusive quando se pensa no público infantil, e traz a sutileza do resgate de valores cada vez mais apagados em nossa sociedade.
Teca é um jovem traça que vive tranquila com sua família, passando seus dias imaginando as aventuras que um dia sonha em realizar, enquanto se delicia, vez ou outra, com as parcas porções da iguaria mais gostosa do mundo, o papel, que seus parentes às vezes lhe trazem de suas andanças. Um dia ela decide acompanhá-los e encontra o paraíso gastronômico: um livro, inteirinho e pronto para ser devorado. Não demora, porém, para que Teca, ao lado do seu inseparável melhor amigo, o ácaro Tuti, perceba que os gigantes que ela vê manuseando esses livros tiram deles narrativas fascinantes, como se os desenhos que ali estavam em tinta pudessem ser o código para jornadas fantásticas.
Curiosa, ela acaba aprendendo a decodificar aqueles traços estranhos, e quando percebe, já está lendo por si só. Porém, ela se dá conta que ao comer aqueles livros, ela estava destruindo a fonte de seu maravilhamento. E quando seu dilema parece um beco sem saída, ela acaba levada para uma biblioteca, lugar de origem daquelas obras tão incríveis. É por uma noite, nos encontros e desencontros com desconhecidos carismáticos, ela acaba descobrindo a si mesma, bem como a paixão pela leitura, vivendo um pouco mais naqueles mundos com os quais sempre sonhou.
A construção narrativa se vale não só do stop motion, mas também sabe dialogar bem com passagens em live action e até mesmo com a animação convencional 2D com toques das técnicas de colagem, em uma parceria com o internacionalmente renomado Split Studios. Todo o estilo estético idealizado pelo diretor de arte Mateus Rios, desenhado para funcionar de forma coesa ancorado na figura icônica de sua heroína, consegue transitar bem por linguagens de fácil assimilação e reconhecimento de seu público. O uso de bonecos com peças intercambiáveis e suas contrapartes desenhadas é um modelo deliciosamente bem articulado para manter e renovar o interesse da audiência ao longo dos 90 minutos da fita, sem apelar para a pressa ou para ameaças arquetípicas.
Outro grande trunfo da produção está no aspecto sonoro, conseguindo mixar bem um trabalho de vozes que flerta muito bem com uma ingenuidade tão autêntica da infância e, ao mesmo tempo, com a ambientação intimista que permeia o universo do longa. A trilha musical, composta e executada pela lenda viva Hélio Ziskind em parceria com Ivan Rocha, é um verdadeiro deleite, com o mesmo toque inconfundível da época dos clássicos da TV Cultura, aplicado à fluidez de uma direção cirurgicamente planejada para que as canções não sejam uma interrupção do que está sendo contado, mas sim parte inerente da história. O trabalho da direção de som do filme, sob responsabilidade de Ana Luiza Pereira, é a cola que confere vida ao universo de Teca e Tuti, e faz do silêncio da biblioteca (ou da falta dele), um ponto de conforto para crianças e também para os adultos.
O que não é sutil, definitivamente, é o fascínio pela leitura que transborda do filme por todos os lados. Teca, no final das contas, questiona a sua realidade a partir das inquietações de seu coração que convergem para todo o fascínio pelas histórias inoxidáveis de Lewis Carroll, Julio Verne e tantos outros criadores de mundos incríveis. Sua coragem a leva para um processo irreparável de transformação de si mesma e de todos que estão à sua volta, porque quando se abre um livro, não é só o leitor que se modifica. Teca e Tuti: Uma Noite na Biblioteca foge, porém, das armadilhas da peça panfletária ao cuidar do discurso enquanto parte da experiência, não objetivo primário dela. É uma verdadeira carta de amor para a animação, para o prazer da leitura e, porque não, para a Arte (assim mesmo, com “A” maiúsculo) que, apesar de tudo, sobrevive, resiste, se reinventa. E transforma.
Teca e Tuti: Uma Noite na Biblioteca está em cartaz em várias cidades do Brasil desde 25 de julho de 2024, e é um lançamento da Sessão Vitrine Petrobras totalmente em português, seu idioma original.