Editorial: A crise auto-infligida da indústria de games AAA
Virou comum vermos notícias de estúdios fechando, de milhares de desenvolvedores sendo demitidos e recordes faturamento. Mas por que isso está acontecendo? Vamos conversar sobre isso?
Comecemos pelos fatos
A indústria de video games está se autodestruindo. E a culpa é das grandes publishers e dos AAA. Basta acompanhar as notícias para nos depararmos com uma gigantesca contradição: Os faturamentos das grandes publishers estão quebrando recordes após recordes, engordando os bolsos de seus CEOs e acionistas. E mesmo assim, milhares de demissões estão acontecendo em todos os cantos do mundo, com estúdios inteiros tendo suas portas fechadas.
Ao pesquisar sobre “indústria de video games” na internet, o que mais aparecem são notícias sobre seu crescimento, sobre como video games atualmente faturam mais do que a indústria cinematográfica e musical. Além de notícias que dizem que é esperado que os lucros sejam ainda maiores para os próximos anos. Essas são notícias antigas, mas são os primeiros resultados que aparecem ao se pesquisar sobre o assunto.
Há, é claro, o outro lado das notícias, como a crise dos chips semicondutores, guerras no leste europeu e oriente médio afetando estúdios, aumento geral da inflação, as “sequelas econômicas” da pandemia da COVID-19 e outros fatores mundiais que afetaram muito negativamente a produção e distribuição de video games.
Mesmo não sendo um economista, e não tendo qualquer base sólida de conhecimento sobre o assunto fora notícias e pesquisas de internet, é possível ver que as coisas estão mais caras. No mundo dos games em especial, visto que o novo padrão de preço de um lançamento AAA agora é de U$ 70,00, que em conversão direta para nossa moeda, na data da escrita desse artigo (28/04/2024) é a bagatela de R$ 358,14.
E por que, afinal, o preço de um game de lançamento agora é 70 dólares? A resposta rápida são os motivos citados acima, em especial a inflação. E há também outros fatores importantes, mais relacionados à gestão de produções e distribuições, e as recorrentes e transitivas “modas” na criação de video games.
Você já deve estar familiarizado com essas modas. É o procedural, o Battle Royale, o Season Pass, Battle Pass, microtransações e por aí vai. É o caso de sempre: um case de sucesso se transforma na saturação desenfreada dessa novidade até que ninguém mais queira saber dela e seu “mercado” colapse (ou perdure apesar do desgosto geral). No fim, a pergunta é sempre a mesma: Como aumentar o lucro e diminuir os gastos? E a atual resposta para isso é: Fazer um Game as a Service.
Os Live Services
Para entender o que é um Game as a Service, primeiro vamos entender a origem desse conceito, que é o formato de Software as a Service, ou SaaS, que está integralmente presente em nossas vidas, mesmo que você não se dê conta disso.
De forma simplificada, um SaaS é um programa de computador que você contrata e usa conforme sua demanda, acessando-o através da nuvem. Um exemplo simples disso é uma conta de email. Você utiliza seus serviços via internet, mas todo o seu conteúdo e programação estão salvos em servidores localizados em outro lugar, muitas vezes do outro lado do mundo.
Outro exemplo ainda mais fácil é um serviço de armazenamento em nuvem, como o Google Drive, o Dropbox e o Microsoft One Drive. Você pode criar contas gratuitas nesses serviços, recebendo uma quantidade limitada de espaço de armazenamento (normalmente entre 5 a 15 GB). Se você quiser, ou precisar de mais espaço de armazenamento, pode pagar uma assinatura, que desbloqueia novas funcionalidades e espaço de armazenamento para você. Essa é a premissa básica de um SaaS: um software que você paga de acordo com o que você usa.
Esse conceito começou a ser implementado no mundo dos video games já há um bom tempo, mesmo quando ainda não tinha esse nome. De certa forma, podemos considerar os MMOs dos anos 2000-2010 como “precursores” desse sistema dentro dos video games. Você compra o game, ou paga sua assinatura mensal, e tem acesso a todo o seu conteúdo base. E para jogar as expansões, você deve comprá-las. E se considerarmos apenas as expansões em si, podemos datar a origem disso tudo lá na década de 90.
O modelo de negócios de games online mudou muito atualmente, e o estilo GaaS (Game as a Service) popularizou-se por toda a indústria, para o bem e principalmente para o mal. Usemos o maior case de sucesso desse estilo como exemplo: Fortnite.
Fortnite é um game gratuito, que oferece uma quantidade imensa de conteúdos também gratuitos, como modos de jogos, skins e vários eventos especiais. O game se sustenta através de seus passes de temporada, que adicionam conteúdos exclusivos, em especial skins, mas sem bloquear recursos de gameplay atrás de paywalls.
Com o sucesso que Fortnite, além de outros games que vieram antes, como League of Legends e etc, a indústria logo começou a crescer os olhos para esse novo formato, essa nova e quase literal galinha dos ovos de ouro que surgiu: faturamento contínuo após o lançamento de um produto. Os números de venda se tornaram meramente em parte da receita, agora havia o longo prazo como maior foco.
A proliferação dos Live Services
Porém, se Fortnite é o exemplo máximo de sucesso, ele é 1 em cada 10 exemplos de fracasso. De Crossfire X a casos extremos como Anthem e Marvel’s Avengers. Temos muitos casos de fracassos e pouquíssimos casos de sucesso. E ainda assim a indústria insiste nesse modelo de negócio. E por quê?
Um dos principais motivos do atual colapso da indústria é, ironicamente, o mesmo motivo que resultou na insatisfação por parte do público com cada “moda” que surgiu e morreu nesta indústria: As grandes companhias tentando ditar o que o público quer e, consequentemente, necessita. “Ninguém quer single player”. “Todo mundo quer Battle Royale”. “Todo mundo quer procedural”. “Todo mundo quer NFTs/Blockchain”. Blá, blá, blá.
É fato que uma indústria é movida por objetivos. Que o que a mantém viva é o “combustível” que a fez surgir. E o combustível, obviamente, é dinheiro. E isso é errado? Não. De que adianta trabalhar e gastar dinheiro num projeto que leva tempo e esforço para ser feito e depois não poder receber por isso? O problema é que a “INDÚSTRIA”, em maiúsculo e entre aspas, move montanhas de dinheiro para manter o dinheiro para si, e os games criados com esse objetivo são meramente o meio para isso. Parafraseando “O Poderoso Chefão”: “Não é pessoal, é estritamente sobre negócios”.
O problema então são os live services? Não. Afinal, como é bem visível, a maioria deles nasce, mal tem tempo de “viver” e já morre. E quando esse formato é bem feito, o resultado é muito positivo. O problema está em como a maioria desses live services é conceptualizado, de formas que parecem ignorar coisas básicas que tornaram Fortnite e League of Legends o que são hoje: A entrega de conteúdos.
Sejamos sinceros, pagar para comprar um game (e pagar caro, afinal estamos no Brasil) e depois ainda ter que pagar mais para desbloquear conteúdo básico, que não é uma expansão completa, é bem broxante. E muitos live services não entendem esse simples conceito. São vendidos a preço cheio e bloqueiam conteúdos através de novas paywalls. Um exemplo bem forte disso é Star Wars Battlefront II. O game é divertido? É. Mas foi lançado num sistema de vendas simplesmente abominável e aterrorizante de tão ruim que era.
Onde, então, está o verdadeiro problema? Estamos começando a chegar lá.
A indústria AAA
Vamos pensar em como um negócio normalmente funciona (de uma forma bem ingênua e simplista): Alguém tem uma ideia, junta um dinheiro e investe para que ela se torne realidade. Assim que a ideia ganha tração e começa a gerar retorno, a demanda aumenta. Para suprir a demanda, o negócio cresce, junto de suas despesas, com a contratação de novos funcionários, expansão de seu local físico, de suas ferramentas e etc. Aí entra a balança de lucros e gastos. O lucro sempre deve ser maior. Quando o lucro está abaixo das despesas, rolam demissões, reestruturações e etc.
E como isso funciona na criação de games? Aí está a complicação. Já vimos estúdios de uma pessoa só fazendo coisas incríveis. Estúdios de 30 pessoas criando verdadeiros clássicos. E até estúdios de 300 pessoas trabalhando exclusivamente em um projeto. Não há um padrão, e isso é um ponto muito positivo, afinal, não é necessário um estúdio gigantesco para produzir um bom game.
Só que atualmente a indústria não é movida para a criação de bons games. É movida pelos resultados financeiros. Ou, mais especificamente, a cobertura dos gastos e o acúmulo contínuo de resultados. E é aí que mora o verdadeiro problema: Custos que não se justificam.
O custo de produção de games ficou mais caro. Compra de equipamentos, de licenças de software e o custo geral de produção de um projeto está maior, sem mencionar nos salários para profissionais capacitados, que devem ser compatíveis com a experiência exigida e trabalho requerido. Por exemplo, produzir Uncharted 4 hoje custaria bem mais do que o que foi gasto em sua produção lá antes de 2016.
A balança entre risco e recompensa na criação de um game AAA está bem difícil de se manter. Produzir um game AAA é um investimento de alto risco, pois é necessário que esse investimento alto se pague, e rápido. Do contrário o prejuízo, especialmente a longo prazo, é bem alto. Os games AAA formam parte do problema maior que está afetando a indústria como um todo, mas é preciso olhar mais aprofundada para podermos ver o panorama completo.
Activision Blizzard, EA, Playstation, Xbox, Ubisoft, Rockstar e outras grandes empresas divulgaram resultados no período dos últimos 12 meses que mostram aumento significativo em suas receitas. Muitas quebrando recordes de faturamento. E mesmo assim, com tanto dinheiro entrando no caixa, estamos vendo demissões em massa, estúdios inteiros sendo fechados e desenvolvedores talentosos ficando desempregados. E a desculpa é sempre a mesma: “Não queríamos fazer isso, mas a indústria está mudando e precisamos nos adequar”.
Como, afinal, a indústria está mudando? A resposta superficial é que com a integração cada vez maior de inteligência artificial mitigando custos e substituindo talento humano, a insistência em trabalho presencial nos grandes estúdios, após dois anos de trabalho remoto devido a pandemia, a crise dos microchips, que diminuiu a produção de consoles e peças de computador, além de outras razões, está fazendo a indústria mudar sua forma de negócios, sempre focada na redução de custos.
Porém, ao mesmo tempo que se reduz custos com funcionários, aumentam-se os orçamentos na criação de games AAA. E já temos estúdios surgindo com o papo furado de “AAAA”. O custo atual de U$ 70,00 por um lançamento está diretamente relacionado ao custo de produção dos AAA, pois muitos estúdios já anunciaram o aumento de preço de seus games usando exatamente essa justificativa: “Fazer um AAA é caro e U$ 60,00 não cobre seus custos”. O que, infelizmente, não é mentira, tudo ficou mesmo mais caro.
E olha que eu nem mencionei os salários com muitos zeros de CEOs, que crescem em zeros constantemente, enquanto vemos demissões atrás de demissões.
É a “indústria AAA” que é a responsável pela situação atual. Essa “indústria”, entre aspas, a que tanto me refiro não é somente os games AAA lançados. A culpa não é exclusivamente de God of War, de The Legend of Zelda, de Halo, Marvel’s Spider-Man, de Final Fantasy e etc. Aliás, a culpa nem mesmo é desses títulos em específico, pois seus retornos financeiros foram positivos. A culpa é da cultura corporativa que determinou como um AAA deve ser gerenciado em termos de negócios. Que o AAA é o caminho a ser seguido para geração de retorno financeiro.
Especificamente, quando falo de “indústria AAA” estou falando dos grandes estúdios. Da EA, da Activision Blizzard, da Ubisoft, da Square Enix, e também da Playstation, Xbox e Nintendo, em conjunto. Se é uma produtora ou publisher grande que passou por demissões em massa, entra nessa lista também.
O custo para a produção de um game aumentou bastante nos últimos anos (estou propositalmente batendo repetidamente nesta tecla). Porém, além desse custo a que todos estão sujeitos, há decisões internas cruciais que afetam o preço atual de games novos. Gasta-se milhões de dólares numa ideia que muitas vezes não foi bem pensada. Ou pior, gasta-se milhões num projeto, mas alocando esse dinheiro nos lugares errados, deixando desenvolvedores em extrema pressão para cumprir um objetivo muitas vezes irreal por não terem orçamento e tempo suficiente, determinado por alguém da diretoria ou presidência que nunca deve ter sequer pego num controle de video game na vida. Como o que aconteceu com Cyberpunk 2077, por exemplo.
É nessas horas que a verdadeira crise aparece, e não é uma crise financeira, é uma crise gerencial. Desenvolvedores não estão sendo demitidos somente porque os custos estão muito altos. E definitivamente não é porque está faltando dinheiro. É porque quem está no comando parece não ter a mínima ideia do que é preciso para se criar um bom game. Afinal, parece que não importa se o game atinge um padrão de qualidade alto e ofereça algo que vá cativar os jogadores. O que importa é atingir um padrão de qualidade mínimo e oferecer algo que PRENDA o jogador, para que continue a gerar receita contínua num produto feito para gerar dinheiro. Pelo menos, essa é a impressão que os CEOs dos grandes estúdios passam com bastante força.
E aí, chegamos numa das ideias mais arriscadas dos últimos 5 anos: Unir live service com AAA.
Como não oferecer algo no modelo “As A Service”
Dentro de uma empresa, um SaaS é um software que é contratado conforme demanda. É firmado um contrato com um valor a ser pago mensalmente pelo fornecimento do serviço requerido, incluindo manutenção e suporte. Pense por exemplo num sistema ERP, um sistema básico que uma empresa qualquer, como um comércio, pode ter. É um serviço que oferece operações de cadastros de matérias primas, de itens fabricados e/ou produtos, emissão de nota fiscal, geração de relatórios, mensagens internas e etc. Um software desse é adquirido mediante pagamentos.
Sendo assim, por que não pagar por um game criado para ser um Live Service? Nesse ponto, expressarei puramente a minha opinião pessoal: O problema é o “valor” entregue pelo Live Service. E “valor”, nesse caso, é o quanto o game me entrega em relação ao que foi pago por ele. Em outras palavras, é o custo-benefício.
Esse valor, para mim, é medido baseado em todo o conteúdo entregue em sua versão base, aliado a quais tipos de conteúdos extras serão adicionados e como eu posso ter acesso a esses conteúdos. E, obviamente, a qualidade geral do game.
Vou usar dois exemplos recentes para comparação. O primeiro será Helldivers 2. O game custa U$ 40,00 (R$ 199,50 na PS Store aqui no Brasil – usarei a PS Store para exemplificar preços por normalmente ser loja mais cara entre os consoles). Esse era um game que pelos trailers parecia ser divertido, mas nada demais. E tornou-se o game mais popular da atualidade, ao ponto de congestionar todos os seus servidores em seus dias iniciais pós-lançamento! Eu comecei a jogar o game há cerca de um mês, e ele é realmente excelente e altamente viciante. Fora que é fácil de aprender, fácil de achar partidas e simples para desbloquear novas armas, recursos e skins. O game possui seus créditos in-game que podem ser comprados com dinheiro real, mas você pode desbloquear tudo simplesmente jogando.
E olha que, mesmo Helldivers 2 sendo um sucesso astronômico, a Sony foi lá e colocou tudo a perder ao tentar forçar conexão com a PSN para que o game pudesse ser jogado na Steam. Além disso ser uma decisão puramente mercadológica invasiva, pois exige que jogadores da Steam tenham contas de outra plataforma, isso ainda faria o game ficar indisponível em 177 países em que não é possível criar uma conta PSN.
A revolta do jogadores foi tão grande, com centenas de milhares de reviews negativos para Helldivers 2 na Steam, fora a própria Valve alterando suas regras de reembolso para permitir que jogadores pedissem seu dinheiro de volta, que fez com que a Sony desistisse por completo de forçar conexão com a PSN na Steam. Graças a verdadeira revolta da comunidade, a Sony voltou atrás em uma decisão que é o mais perfeito exemplo de como um péssimo gerenciamento deixa tudo ruim para estúdios e jogadores.
E o segundo exemplo é Skull and Bones, um game que, se me permite a franqueza (e um pouco de rispidez), só foi lançado por verdadeira teimosia, pois passou por anos e anos de adiamentos, quase foi cancelado, teve seu projeto inteiramente “rebootado” e foi enfim lançado para uma recepção mista para negativa por público e crítica. Os maiores problemas do game são sua falta de polimento e geral falta de criatividade, o que fez com que jogadores voltassem a jogar Assassin’s Creed IV: Black Flag, por considerá-lo um game de piratas muito melhor. Outras reclamações incluem seu gameplay sem inovação, bugs e, é claro, suas microtransações e Battle Pass pago. Ah, e Skull and Bones custa U$ 70,00, ou R$ 329,90 em sua versão BASE aqui no Brasil.
Consegue ver a diferença só com esses dois exemplos? A diferença de “valor” entregue pelos dois games e em como esse valor se relaciona com os preços de cada um? Apesar de não sabermos exatamente quanto Helldivers 2 custou para ser produzido (e sabendo que, como o game é publicado pela Sony, houve investimento em sua produção), sabemos que ele não é um game AAA. Muito provavelmente trate-se de um AA, um game de alto orçamento, mas que não chega perto das quantias gastas por outros AAA. E Skull and Bones? Segundo Yves Guillemot, CEO da Ubisoft, esse é o “primeiro game AAAA” de todos. Ambos são live services, e precisam ser comprados. Mas o valor entregue pelos dois é muito diferente.
Bom, se um AAAA será assim, então isso só dá validade a conclusão que estou me encaminhando com este artigo: A indústria AAA está prejudicando todos.
A indústria está mudando, mas com foco na direção errada.
Quase dezenas de milhares de desenvolvedores perderam seus empregos nos últimos doze meses porque a “indústria está mudando”. Mas ela está mudando de um jeito ainda pior. Essa indústria, formada pelos grandes estúdios e publishers bilionárias, determinou o custo que um game supostamente “bom” deve ter para alcançar sucesso de mercado. O que é irônico, visto que essa mesma indústria entrou no mercado mobile por ver a promessa de lucros altos e investimentos ínfimos.
A direção que a indústria quer seguir é a da criação de mais e mais live services, mesmo com a maioria delas falhando miseravelmente em entender e vender neste formato, vide o recente Suicide Squad: Kill the Justice League. Só que o que a grande maioria desses estúdios está fazendo é focar no Live Service usando orçamentos de AAA. Ou seja, coloca-se muito dinheiro em projetos com o objetivo de obter faturamento a longo prazo, mas sacrificam seus próprios desenvolvedores no processo.
A própria EA revelou que seu plano daqui para frente é focar com tudo nos live services, mesmo com o fracasso comercial de Suicide Squad: Kill the Justice League. Parte disso é o entendimento da empresa de que o AAA não está mais se sustentando. Mas, a culpa é de quem?
O que os grandes estúdios falham em entender (e às vezes o público também falha em entender isso), devido a forma como essa mensagem é disseminada, é que sim: O AAA está em forte declínio. Mas a interpretação disso é vista como “single player AAA não é mais rentável”. E vira e mexe vemos artigos bem tendenciosos levantando essa mesma falácia que há anos e anos os estúdios querem fazer os jogadores engolirem.
Por exemplo, de um lado temos God of War Ragnarok e The Legend of Zelda: Tears of the Kingdom. Do outro, temos Forspoken e Immortals of Aveum. Agora me diga, é o single player que está morrendo, ou são investimentos AAA em projetos mal planejados que são o problema?
De novo, o problema não está especificamente em God of War, em Zelda, Final Fantasy, Resident Evil e outros tantos games AAA de enorme sucesso de público, crítica e comercial. O problema está no padrão de desenvolvimento AAA. Estúdios grandes gastam verdadeiras fortunas em games sem originalidade, ou que falham por X, Y ou Z em conquistar o público, na grande maioria das vezes não direcionando seus milhões ou bilhões de dólares para áreas cruciais como… por exemplo… O PRÓPRIO DESENVOLVIMENTO.
Cultura excessiva e extensiva do crunch, cortes de orçamentos (mesmo com orçamentos gigantes), muitos desenvolvedores protestando e formando sindicatos, toda a cultura de abusos que infelizmente é comum em todas essas grandes empresas, e, no fim de tudo, demissões em massa por conta de todo esse mau gerenciamento. Todos esses fatores são cruciais para a crise atual, e de forma não-surpreendente, quase sempre são ignorados na hora de colocar os números na calculadora.
A independência dentro da indústria
Toda essa situação escalou como uma panela de pressão, devagar e por um longo tempo. E chegou num ponto em que tornou-se insustentável. Não para EA, Activision, Nintendo, Sony ou Xbox, mas para os estúdios abaixo de suas asas.
Vide por exemplo nesta semana, em que a Xbox, que nos últimos anos parecia até o próprio Silvio Santos jogando aviãozinho para comprar estúdios como se estivesse num atacadão, fechou quatro estúdios internos da Bethesda, incluindo a Arkane Austion, criadora de Redfall, e a Tango Gameworks, fundada por Shinji Mikami, o pai de Resident Evil, em 2010 (e que o mesmo deixou em 2023 para fundar um novo estúdio independente), criadora de The Evil Within, Ghotswire Tokyo e do recente e muito elogiado Hi-Fi Rush.
O fechamento desses estúdio trouxe a tona ainda a contradição da própria Xbox, que na época declarou que não desistiria de games como Hi-Fi Rush, mesmo se não derem o resultado esperado de início. E ainda elogiou muito Hi-Fi Rush como um de seus grandes lançamentos dos últimos tempos. O game inclusive chegou a tornar-se multiplataforma este ano. Mas no fim, parece que mesmo com tanto elogios, o game não foi lá o sucesso que a Xbox dizia ter sido. Triste, não?
Deixei um importante detalhe de toda essa crise atual de lado até esse momento, que é de suma importância discutir: A Embracer Group. Esse grupo surgiu com a promessa de ser um verdadeiro auxílio para desenvolvedores e preservação da história dos video games. E pelo menos de início, ela foi isso mesmo, salvando projetos do cancelamento, agregando estúdios e fazendo um louvável trabalho de preservação de cópias físicas de games e consoles de todas as gerações.
Até que… veio o fracasso em uma negociação de 2 bilhões de dólares com o governo da Arábia Saudita. Até hoje não sabemos o que era essa negociação, nem porque falhou. Mas sabemos muito bem as consequências disso: A Embracer Group não conseguiu firmar um acordo bilionário e quem pagou o preço disso foram os estúdios que ela própria comprou e anexou a si.
Milhares de demissões, estúdios inteiros com décadas de história, fechando as portas do dia para a noite, vários e vários projetos sendo cancelados e outros sob grande risco. A Embracer Group entrou em “modo de sobrevivência” às custas dos estúdios sob sua asa.
Quase todas as grandes publishers da atualidade estão fechando estúdios que eles próprios compraram. A “guerra” pelo crescimento, em agregar mais e mais estúdios, provou-se ser uma estratégia péssima. Não para essas publishers, mas para os estúdios que hoje não existem mais ou que viram seu quadro de funcionários ser cortado drasticamente por causa da “indústria estar mudando”.
Por culpa disso tudo, entrar na indústria de video games é um risco, pois quem acha que controla a bola está mandando todo mundo pra fora do campinho. E sem perceber, porém, que não existe só um campinho que todos devem obrigatoriamente jogar.
Acontecimentos recentes mostram que finalmente, após décadas e décadas, os estúdios finalmente estão tendo condições de dizer “NÃO” para tudo isso. Um grande exemplo é a Toys For Bob, estúdio que produziu os excelentes remakes de Crash Bandicoot e Spyro, além de produzir Crash Bandicoot 4, Crash Team Racing: Nitro Fueled e Crash Team Rumble. Em 2021, após obter grande sucesso com os remakes citados, a Activision Blizzard tomou a péssima decisão de transformar esse estúdio em uma mera ferramenta de suporte para trabalhar em Call of Duty.
Hoje, felizmente, a Toys for Bob tornou-se independente, separando-se da Activision Blizzard e livrando-se de ser um estúdio que existe somente para oferecer suporte a Call of Duty. Eles não iriam nem criar um game para a franquia, eles iriam somente ajudar com seus modos online. Não mais! E além disso, recentemente a Toys for Bob firmou uma parceria com a Xbox para a produção de seu primeiro game independente.
Outro caso é o da Saber Interactive, que atualmente estava produzindo o remake de Star Wars: Knights of the Old Republic, e se separou da Embracer Group. Este, além de outros estúdios menores dentro de sua estrutura, foram vendidos para um grupo privado de investidores. Se essa venda será benéfica ou não para esses estúdios, ainda não sabemos, mas pelo menos eles não estão no Titanic da Embracer Group.
Não é fácil separar-se de uma grande publisher. A Bungie, que por anos fez parte da Activision Blizzard, lutou para conquistar sua independência e manter seus direitos sobre Destiny 2, o que eventualmente conseguiu. Algum tempo depois, o estúdio foi comprado pela Sony para a produção exclusiva de live services, e hoje, é um dos estúdios que passou por demissões em massa. Sua independência foi breve, e pelo que vemos hoje, a Bungie saiu de uma forca para entrar em outra.
E falando nisso, me permitam desabafar aqui. A Sony conseguiu a façanha de perder os direitos de Crash e Spyro, que hoje pertencem à Xbox, sem, pelo menos que se saiba, tentar qualquer ação para recuperar duas de suas franquias mais importantes. Porém, os investimentos em live service estão aumentando!
Entrar na indústria de video games é relativamente “fácil”, apesar dos riscos. Aprender a programar e criar games é algo muito acessível para todos, e a possibilidade de lançar games independentes, principalmente nos PCs, ajuda não só a conquistar um retorno financeiro, como a conquistar espaço e visibilidade.
Manter-se independente, dependendo dos objetivos e escopo de um estúdio, é algo difícil. E é isso o que faz com que o “mercado” de publishers seja a fatia mais rica da indústria, tanto para o bem, quanto para o mal. Se, por um lado temos Playstation, Xbox e Nintendo ajudando a fundar projetos independentes (assegurando exclusividades no processo), por outro temos a mesma Playstation e Xbox, além de Ubisoft, EA, Activision Blizzard e Embracer Group gastando bilhões para comprar estúdios sem nem saberem o que fazer com eles. E demitindo milhares de desenvolvedores porque, de novo, “a indústria está mudando”.
A ascensão (espero) dos indies e do AA
Não é o “live service”, pois é um formato que dá certo nas mãos de quem entende como entregar valor. Não são exclusivamente os games AAA, pois como dito, o estado atual das coisas não é culpa de Zelda, God of War e Halo. É a “indústria AAA” que jogou lama no campinho e agora quer que todo mundo saia só para a “criançada” de terno e gravata jogue, depois que essa mesma lama secar.
É o gasto excessivo com projetos de conceito falho, de planejamento a longo prazo que ignoram até mesmo seus lançamentos, e principalmente os investimentos milionários e bilionários em projetos de live service que não se sustentarão por nem mesmo 2 anos, chutando alto. Grandes publishers alocam quantidades exorbitantes de dinheiro e pessoal para a produção de games feitos sem o devido cuidado, para depois demitir todo mundo por esses mesmos games “falharem em alcançar as expectativas”.
É aquele velho problema que qualquer um que acompanhe notícias de video games conhece: Os CEOs querem games sendo criado de forma rápida. E acabam interferindo nas produções de seus estúdios, cancelando projetos puramente por “decisão de mercado”, desconsiderando o esforço que deve ser empregado na produção, e depois culpando as “mudanças na indústria” quando tudo atinge o ventilador.
Em 2010 as DLCs eram as pragas dos AAA. A partir de 2015 era o Procedural. Depois as microtransações, o Battle Royale e, agora, os live services sem sentido. Criar um game que seja envolvente e divertido, acima de todo o resto, é algo que felizmente não é incomum, mas é visto por muitas das grandes empresas como algo que não faz mais sentido.
Foi-se o tempo em que a Blizzard empregava verdadeiro amor em suas produções. Hoje temos Diablo IV com portais de cores diferentes vendidos a U$ 30,00 e montarias vendidas por DLC que custam mais que o próprio game base! Até mesmo o conceito de “microtransações” está ultrapassado, pois o que é considerado “micro” hoje custa no mínimo 30 dólares!
Foi-se o tempo que um game da Ubisoft, mesmo com seus muitos bugs e lançamentos anuais, era capaz de envolver os jogadores por anos. E, principalmente, foi-se o tempo em que aqueles grandes estúdios que tínhamos confiança plena em suas criações, nos transmitem confiança.
Inclusive, já faz algum tempo que o Yves Guillemot disse que “os jogadores deveriam começar a se acostumar a não serem mais donos dos games e compram”. E adivinha? Ele foi lá e fez isso acontecer, removendo o game de corrida The Crew das contas dos jogadores, após os servidores do mesmo serem desligados. A Ubisoft não ofereceu a possibilidade de jogar o game em modo offline, muito menos em preservá-lo, eles simplesmente retiraram o acesso total do game para TODOS os jogadores. E reembolso pra quem comprou o game? Fora de cogitação. Como é possível ter confiança assim?
Reforçando mais uma vez: A culpa não é exclusivamente dos games AAA. Temos Baldur’s Gate III como um exemplo disso. Seu orçamento foi astronômico, mas seu valor entregue e a quantidade imensa de conteúdo e cuidado inserido no game são de outro nível. Elden Ring também é um AAA que traz uma enorme quantidade de conteúdos e desafio para os fãs da From Software. E, recentemente a From Software conseguiu os direitos da IP de Elden Ring para si! Até então, a marca pertencia a sua publisher, a Bandai Namco!
E do outro lado, temos dois grandes exemplos de como a indústria AAA falhou: Temos Suicide Squad: Kill the Justice League, que pelo o que foi visto não é um game ruim, mas é não é um game que prende os jogadores, e é um exemplo de live service que não entrega valor suficiente para manter seus jogadores envolvidos por anos e anos. E, temos Skull and Bones, o “primeiro AAAA”, segundo o CEO da Ubisoft. Um game que demorou muito tempo para ser lançado, e após adiamento atrás de adiamento, foi lançado como um produto sem polimento, com pouco valor e que não conseguiu prender sequer uma quantidade razoável de jogadores. E ainda assim, é um live service com promessa de durar por anos e anos.
Há ainda um terceiro exemplo bastante emblemático e recente: O lançamento de Dragon’s Dogma II. Esse game, que há anos é esperado por seus fãs, recebeu críticas muito positivas da mídia e de influenciadores. Porém, ao ser lançado para o público, recebeu alguns “extras” não presentes nas versões de review. E esses “extras” são uma quantidade abismal de microtransações puramente predatórias e sem sentido.
Você pode pagar para pular a área inicial do game. Você precisa pagar para comprar um item que permite mudar a aparência de seu personagem (e precisa comprar esse item todas as vezes que quiser fazer alguma alteração visual). Há microtransação para comprar itens de fast travel e até para reviver aliados mortos, e muito mais. Dragon’s Dogma II é um exemplo de um game excelente e feito com bastante cuidado, que foi manchado por corporativismo agressivo que empesteou o game com microtransações feitas puramente para sugar dinheiro de forma predatória.
Não precisamos de uma “revolução indie”, pois os indies tem seu espaço bem definido e sempre crescente há anos. E eu adoro relembrar quando Peter Molyneux, o lendário criador da série Populous, disse em 2014 que os indies eram “apenas uma moda com prazo de validade para acabar”. Hoje, ele é ativista de NFTs e games em blockchain (que também são uma das grandes pragas da indústria atual, que propositalmente deixei de mencionar neste editorial para tentar “diminuir” um pouco o volume de texto), sem falar que criou a bomba inacabada (que podemos até chamar de golpe) chamada Project Godus. Enfim, os indies não perderão espaço, eles continuarão a ganhar visibilidade.
Deixei de lado nesta longa discussão a inserção de NFTs e Blockchain nos games. Pessoalmente, não sei o impacto que essas tecnologias tiveram na indústria em si, mas sabemos o seu resultado: Prejuízo. A Ubisoft tentou e não deu certo. A Square Enix insiste, e promete insistir com mais força no futuro, mas a grande maioria do público parece não se importar. Lembra do anúncio de Symbiogenesis, que levantou esperanças de ser um retorno de Parasite Eve e, no fim, foi só um game puramente de NFTs que o público rejeitou fortemente?
O ponto é que NFTs e Blockchain são uma das modas atuais que estão infestando os games atualmente, e são parte do problema, pois compõem altos investimentos que pelo visto são mal planejados e não atraem o público. Isso compõe sim parte do problema, mas, como espero ter conseguido expressar, o problema é bem mais embaixo.
Finalizando, os AA estão mostrando que não são os orçamentos colossais que fazem bons games, mas sim ideias boas, desenvolvedores tratados com respeito e o entendimento de que não adianta nada planejar lucros sem pensar que do outro lado da equação está o público, aqueles que se espera que comprem os games que estão sendo produzidos hoje. E principalmente, a receita do fracasso é desconsiderar que deste lado da equação estão os talentos humanos necessários para a criação de um game com qualidade e conteúdo.
Foi-se o tempo em que a Blizzard fazia games por amor, mas chegou o tempo em que Path of Exile e Last Epoch suprem o que Diablo não consegue. Foi-se o tempo em que AAA era sinônimo de qualidade (não que isso tenha sido realmente parâmetro para algo), mas chegou o tempo em que o formato atual de investimentos não faz mais sentido. Nem em termos de produção e nem economicamente.
Fazer um game demanda tempo e dinheiro. Dependendo da ideia, muito dinheiro, a ponto de ser necessária uma estrutura cara e bem construída, o que resulta em investimento de grandes publishers. Mas fazer um bom game, um que vai ser bem aceito pelo público, e um que vai gerar o retorno financeiro esperado, não necessariamente demanda gastos milionários e bilionários. É a conceituação de uma ideia e o gerenciamento de sua produção o que realmente importa.
E se me permitem uma autorreflexão para encerrar: quanto mais velho eu fico, mais eu vejo que 10 anos atrás, Phil Fish, o criador de Fez, estava realmente certo em muitas da coisas que reclamou.
As coisas vão mudar? Vão, elas já estão mudando. Elas mudarão para melhor? Infelizmente isso vai depender de quem está lá no topo da indústria. Mas, os indies continuam surgindo, a criatividade nunca morreu. A indústria AA finalmente está ganhando o espaço que há muito tempo já deveria ter.
Os games AAA continuarão existindo e entregando experiências inesquecíveis, e eu mesmo estou muito ansioso pelo lançamento de alguns. Mas a indústria AAA segue distanciando-se do público. Ela ainda vai faturar os seus bilhões, mas tenho a esperança de que num futuro não muito distante, o espaço que ela mesma deixou surgir para o nascimento de novos estúdios independentes e novos formatos, vá ganhar mais e mais espaço. Ou melhor, recupere espaço que por muito tempo foi cercado pelos “padrões de indústria”.