Editorial: até quando os videogames serão associados com violência?

16 de março de 2019

Editorial: até quando os videogames serão associados com violência?

Na última quarta-feira, um massacre abalou o país. Dois jovens armados invadiram uma escola em Suzano, região metropolitana de São Paulo, e abriram fogo contra funcionários e estudantes. No total, foram 10 mortos — inclusive a dupla de assassinos, que se suicidou.

A voz da mídia das massas

Poucas horas depois, o vice-presidente da república, Coronel Mourão, lamentou o ocorrido, e, em sua declaração, deu a entender que os videogames têm alguma relação com o ato. Nas palavras dele (de acordo com o Correio Braziliense):

“Estou muito triste com essa situação. Temos que entender o porquê de isso estar acontecendo. Essas coisas não aconteciam no Brasil (…) Vemos essa garotada viciada em videogames violentos. Tenho netos e os vejo muitas vezes mergulhados nisso aí. Quando eu era criança, jogava bola, soltava pipa. A gente não vê mais essas coisas”.

Obviamente, esta não é a primeira vez que esse tipo de associação é feita. Há pouco mais de um ano, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, alegou que “o nível da violência nos videogames está fazendo a cabeça dos jovens” durante um debate sobre a violência nas escolas norte-americanas. A declaração veio pouco depois de um outro atentado, na Flórida, deixar 17 mortos.

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É fato que, sempre que algo do tipo ocorre, mais cedo ou mais tarde os videogames acabam sendo “culpados”. Quando não é por políticos mal informados, é pela mídia sensacionalista, que arma um verdadeiro circo sobre o assunto com o intuito de manter a audiência.

O engraçado é que, independente de quem seja o acusador, eles nunca apresentam provas, evidências, algo que corrobore com esta opinião arcaica. Na cabeça deles, videogames violentos tornam as pessoas violentas “porque sim”.

O lado científico

Curiosamente, o outro lado da moeda está o tempo todo apresentando provas científicas de que não há qualquer relação entre videogames e violência: há um mês, a Universidade de Oxford publicou um estudo feito com mais de 1.000 jovens entre 14 e 15 anos que têm o hábito de jogar games violentos. O estudo — que foi publicado no Royal Society Open Science — não encontrou nenhuma correlação entre jogos e comportamento violento ou agressivo.

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Mortal Kombat: violento e polêmico desde os anos 90

No início de 2018, outro estudo — este da Universidade de York, na Inglaterra — analisou reações de mais de 3 mil jovens expostos regularmente a jogos violentos, buscando traços de comportamento antissocial ou violento. Novamente, nenhuma associação foi confirmada. O estudo está disponível no Science Direct.

Lá em 2016, um outro estudo — publicado pela American Psychological Association — feito com mais de 300 jovens com idade média de 12 anos também não comprovou nenhuma ligação entre aumento de comportamentos agressivos e envolvimento com videogames. E esses são só 3 exemplos recentes,dezenas de outros estudos semelhantes foram realizados nas últimas 2 décadas, quase sempre com resultados semelhantes. 

Claro que estes estudos por amostragem — que pegam um número X de indivíduos para estudar de forma generalizada um padrão de comportamento — não são absolutos, mas há um fato constante: em nenhum deles, a exposição a jogos violentos pode ser diretamente relacionada a comportamentos violentos e antissociais.

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Manhunt: de tão violento, foi banido de alguns países

Na verdade, esse tipo associação é furada pelo simples fato de que assassinos e psicopatas são seres humanos. Pode ser que eles joguem videogame? Sem dúvida. Mas eles também escovam os dentes, dormem, bebem água, respiram… enfim, fazem coisas que qualquer pessoa faz.

Se é para fazer associações com atividades comuns, cadê os estudos sobre isso? Cadê algo tipo “assassinos tomavam café preto” ou “usavam redes sociais”? Porque o videogame é sempre o bode expiatório nessas horas? Não há violência explícita sendo compartilhada livremente pelo WhatsApp ou Facebook? É só através dos videogames que temos acesso a isso?

Voltando ao caso de Suzano: na busca por entender “os motivos” dos assassinos, descobriu-se que a dupla frequentava lan houses e jogava Counter-Strike. O que isso prova? Absolutamente nada. Milhões de pessoas jogam Counter-Strike todos os dias, e a grande maioria delas não sai por aí fuzilando inocentes. Mas né, a mídia está querendo crucificar alguém, e nessas horas, sempre lembram dos videogames.

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No Russian: um dos momentos mais controversos da série Call of Duty

Há uma diferença enorme entre a violência artificial perpetrada em um videogame, e a violência real de um massacre como o de Suzano. Um gamer até pode ter um conhecimento maior de armamentos, mas isso não faz dele um assassino. Empunhar uma arma no videogame é completamente diferente de empunhar uma arma real. E, convenhamos, é possível aprender tudo e mais um pouco sobre armas na internet, sem nunca botar a mão em um Counter-Strike ou Call of Duty da vida.

Classificação etária pra quê, né?

Outra coisa que é levianamente ignorada pelo nosso vice-presidente e pela mídia em geral é: games têm classificação etária. Jogos que envolvem violência, drogas, sexo, etc., são recomendados para maiores de 18 anos. Se a criançada têm acesso a estes jogos, a culpa é da indústria ou de pais relapsos que não se importam com o entretenimento que seus filhos consomem?

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Classificação etária: levianamente ignorada

Independente se os videogames influenciam as crianças ou não (e, como já dito, não há provas factuais de que influenciem), é fato que certos tipos de conteúdo não são adequados para menores. Lembra do rebuliço que foi o lançamento de Deadpool 2 com classificação para 16 anos? Há uma razão para isso: não expor a molecada a violência, piadas sujas, sexo, e tudo mais.

Sendo bem honesto, claro que existem jogos que forçam a barra. Títulos como Hatred e até mesmo Postal falham em dar um contexto decente à violência, deixando tudo muito gratuito. Mas eles são exceções. Na maioria dos casos, a violência em um videogame é justificada pela narrativa. Videogames, em sua grande maioria, se baseiam em conflitos do tipo “bem x mal”, e onde há conflito, geralmente há violência. Basta assistirmos meia hora de qualquer telejornal para vermos o quanto de conflitos violentos estão rolando pelo mundo.

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Hatred: violência sem conteúdo

Quando se trata de outras formas de entretenimento, isso até é levado (um pouco) mais a sério. Mas no caso dos games, parece que ninguém se importa. Afinal, na cabeça de muita gente, videogame é coisa pra criança, né? Então, por que limitar o acesso das crianças aos jogos? Os pais não prestam a devida atenção, as lojas também não se esforçam muito para “não vender”, e o resultado é que a classificação etária impressa na caixa de um jogo é meramente ilustrativa.

Como vimos ali em cima, não há comprovação científica de que jogos violentos estimulam comportamentos violentos. Porém, expor (ou não) crianças a certos tipos de conteúdo é pura questão de bom senso: elas não precisam ver certas coisas. E isso vale não só para violência, mas para pornografia e mais um monte de coisas que simplesmente não são adequadas para a idade delas.

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Max Payne: violência em bullet time

Então, caro Coronel Mourão, não sei qual a idade dos seus netos, mas se eles ainda não têm idade para estarem “viciados em jogos violentos”, a culpa pode ser, principalmente, dos pais deles, sabia? Que tal analisar o contexto antes de sair por aí apontando culpados?

A psicopatia é um problema real

O Brasil já é o quarto país com mais gamers no mundo — já são mais de 35 milhões de jogadores. Se cada um desses gamers fosse um assassino em potencial, o país já teria se afogado em seu próprio sangue. Ou ainda que TODO assassino jogasse videogame (algo bem improvável), poderia-se aplicar um raciocínio simples: todo assassino joga videogame, mas nem todo mundo que joga videogame é assassino.

Essa permanente associação de videogames com violência só quer culpar um elemento externo, ignorando diversos outros fatores sociais e psicológicos. Há quem diga que o bullying é um fator a ser levado em conta, mas mesmo isso é relativo: nem todo mundo que sofreu bullying sai por aí matando pessoas. Quando se trata de um caso como o de Suzano — planejado, arquitetado –, a frieza da execução denota pura psicopatia, como se vê nos mais “famosos” assassinos.

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A série Sniper Elite dramatiza ao máximo a violência com efeitos especiais

A psicopatia é um distúrbio mental que se caracteriza (entre outras coisas) por “comportamentos antissociais e amorais sem demonstração de arrependimento ou remorso” e “incapacidade para sentir empatia ou se relacionar com outras pessoas”. É algo da personalidade do indivíduo que não tem nada a ver com ele ser o MVP de Battlefield.

Com a palavra, Jesús Pujol, médico e diretor de pesquisas da Unidade de Ressonância Magnética do serviço de Radiologia do Hospital del Mar de Barcelona:

“Os psicopatas são pessoas com problemas de relação interpessoal e de gestão das emoções. Aparentemente são frios, embora não seja verdade que não tenham emoções – as têm, e muito intensas. O que não têm são remorsos, que é o que gera uma tendência à delinquência”.

O que leva um indivíduo a desenvolver esse comportamento? Há inúmeros fatores, e não vou entrar nessa área pois não sou psicólogo. Mas atribuir tudo a videogames — ou mesmo a bullying — é uma atitude leviana e incoerente de pessoas que simplesmente querem culpar um fator externo sem qualquer conhecimento de causa, ignorando diversos outros fatores.

História & Catarse

E o mais engraçado é que esse tipo de argumentação ignora até mesmo o fator histórico: videogames existem desde a década de 70 — e os jogos realmente violentos só foram aparecer alguns anos depois. Quer dizer que antes disso não havia assassinatos? Serial killers? Tudo era paz e amor no mundo?

A humanidade vem se matando há centenas de milhares de anos pelos mais variados motivos, e acho que nenhum deles pode ser relacionado com videogames. É comum vermos guerras estourando por questões geográficas, religiosas ou políticas, mas quantas guerras você viu que foram causadas por um jogo de videogame? Eu não lembro de nenhuma.

Os videogames, inclusive, assimilam muita da violência do mundo real: não por acaso os shooters realistas — baseados em conflitos reais, com armas e equipamentos reais — estão entre os mais populares, e mesmo grandes franquias como Call of Duty e Battlefield pararam de “viajar” e voltaram a se focar nas Grandes Guerras. Guerras reais, travadas por pessoas reais, que ceifaram milhares de vidas décadas antes dos videogames sequer existirem.

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Battlefield: guerra pautada por eventos reais

Isso não é realmente um problema: para pessoas normais e bem ajustadas mentalmente, videogames acabam sendo um cano de escape. Depois de um dia estressante, distribuir uns pipocos online é uma forma de relaxar, extravasar. É ali — no ambiente artificial e simulado do jogo –, que fazemos coisas que jamais faríamos na vida real.

O tão famoso quanto criticado GTA é um baita exemplo disso: há um efeito catártico em metralhar, socar e atropelar inocentes no mundinho do game. Mas essa simulação nos basta. Infringimos regras no jogo, e só. Não precisamos levar o que “aprendemos” para o mundo real simplesmente porque não somos assassinos. E que faz isso e coincidentemente joga videogame, certamente tem distúrbios mentais bem graves, e que não necessariamente são agravados por jogos.

Quando isso vai parar?

Ainda é cedo para dizer, mas podemos apostar que esse raciocínio retrógrado tende a diminuir conforme as novas gerações — que crescem jogando videogames, inseridas em um meio onde há games literalmente na palma da mão — forem envelhecendo e levando esse hábito consigo com o passar do tempo.

Videogame ainda é uma mídia relativamente recente, e as pessoas que não cresceram com eles têm uma tendência meio natural a não gostar, problematizar. Lembra da sua avó falando que o videogame estragava a TV? Pois é, isso é simplesmente por aquilo ser algo que ela não conhecia, e o desconhecido sempre causa medo.

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A destruição catártica de GTA

Agora pense em você, que passou boa parte da vida jogando videogame: daqui a 30 ou 40 anos, você vai dizer para os seus netos que videogame estraga a TV? Claro que não. Conforme as gerações avançam, velhos hábitos vão ficando para trás, simplesmente porque os tempos mudam. O mundo evolui, e nós evoluímos com ele.

Enquanto isso não acontece, porém, vamos ter que lidar com gente como Trump e Mourão, apontando seus dedos nervosos para algo que não é comprovadamente associável a violência, e ignorando diversos fatores — inclusive discursos de ódio e governos favoráveis à posse de armas — que deveriam ser levados em conta.

Não temos como vencer essa “guerra”, mas se esse tipo de discurso também te incomoda, compartilhe este artigo nas suas redes sociais, e nos ajude a difundir informação e fomentar o debate. Ignorância se combate com fatos, argumentos, provas. Isso nós temos, enquanto eles só têm um discurso vazio e retrógrado, que tende a se perder com tempo.

#Somosgamersnaoassasinos

Rodrigo Pscheidt

Jornalista, baterista, gamer, trilheiro e fotógrafo digital (não necessariamente nesta ordem). Apaixonado por videogames desde os tempos do Atari 2600.

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