Editorial: Heróis, Vilões e Anti-Heróis. Eles são mesmo tão diferentes?
Quando se fala em videogames, cinema e cultura pop, é normal que nos venham a mente heróis e vilões emblemáticos. E, claro, há também os anti-heróis. Se desenvolvidos da maneira certa, todos podem ser fascinantes, e hoje estamos aqui para falar um pouquinho não sobre personagens em si, mas sobre os arquétipos que eles representam.
O Herói
Atualmente, o herói clássico é meio difícil de ver no mundo dos games simplesmente porque ele é perfeitinho demais. É o tipo de personagem muito “preto no branco”, com conceitos morais bem definidos: ele só faz o que é certo. Sua jornada é pautada pelo altruísmo, seus motivos são nobres e ele está sempre disposto a se sacrificar pelo bem maior.
Talvez a Nintendo seja a empresa que mais nos entrega heróis em sua forma clássica, até por seus conceitos de certo e errado serem muito claros: Mario é o herói, Bowser é o vilão. Link é o herói, Ganondorf é o vilão. O tempo passa, os videogames evoluem, mas as motivações destes heróis seguem tão simples quanto seus princípios.
Há um conceito bem famoso que constrói este tipo de personagem: a Jornada do Herói. Não vou me alongar sobre ela aqui, mas na prática, tal jornada (também chamada de Monomito) consiste nos requisitos que o herói deve cumprir para se preparar para sua missão. Por exemplo: ter uma motivação forte, uma figura que servirá como mentor, passar por um treinamento, possuir um arqui-inimigo, e por aí vai.
É um modus operandi padrão que já foi utilizado incontáveis vezes no cinema, nos games e na literatura. Sem exagero, há centenas de personagens famosos da cultura pop que podem ser construídos em cima dos conceitos da Jornada do Herói. Harry Potter, Neo (de Matrix), Frodo Bolseiro, Luke Skywalker, Karate Kid, Superman… a lista é imensa. Já falamos sobre a Jornada do Herói em nossa finada coluna Filosofia Arkade, confira.
Neste padrão clássico de herói, também vemos muitos casos do personagem ser “O Escolhido“: o destino o incumbiu de algo e ele agora carrega nos ombros o fardo de salvar o mundo, a raça humana, algo assim. “O Escolhido” tem dezenas de nomes diferentes: Dragonborn, Inquisidor, Emissário, Sobrevivente, e por aí vai.
Esse clichê d’O Escolhido também acontece muito em histórias de origem de super-heróis. O cara que era o fracote, o perdedor, de repente ganha super poderes — ou se rebela, ou passa por alguma tragédia — e dá a volta por cima. Seja por intervenção divina, aranha radioativa ou por estar no lugar certo na hora certa, é comum vermos meros mortais tornado-se “Os Escolhidos“.
Nem sempre, porém, o herói se encaixa neste arquétipo: também acontece muito de ele ter que tornar-se herói por conta das circunstâncias. É o caso da Lara Croft dos games atuais, que vai parar em uma situação de vida ou morte, e precisa se virar para sobreviver. Apesar disso, ela acaba meio que tendo sua própria versão da Jornada do Herói, ainda que por razões diferentes.
O Vilão
O que seria de um bom herói sem um vilão à altura? Tão emblemáticos quanto os heróis, os vilões representam o mal, e geralmente estão dispostos a acabar com os planos — ou mesmo com a vida — dos heróis, dizimar a humanidade, tornarem-se senhores do universo… ou só raptar a princesa, como é o caso dos vilões que citei ali em cima.
Ardilosos, malignos, inescrupulosos e oportunistas, vilões geralmente não medem esforços para atingir seus objetivos, abrindo mão de trapaças e manobras escusas que vão contra os conceitos de moral e altruísmo dos heróis. Justamente por estes conflitos de interesse e personalidade, as narrativas colocam ambos em rota de colisão — spoiler: quem vence geralmente é o herói.
Ainda que seja fácil assumir que o vilão representa “o mal”, é fato que boa parte disso deve-se ao fato de que as histórias geralmente são contadas do ponto de vista dos heróis. Ou seja, são evidenciadas as piores características dos vilões, justamente para que eles sejam totalmente o oposto dos heróis. É importante que eles sejam “odiados”, que não despertem a empatia do público.
Li em algum lugar a frase “o vilão não sabe que é mau“, e acredito que haja verdade nessa ideia. Veja bem: salvo notáveis exceções, o vilão não está fazendo “o mal” propriamente dito, está tomando atitudes que irão tornar seu objetivo possível. Talvez esse objetivo seja moralmente questionável, mas nem sempre isso é verdade absoluta. O vilão puramente malvado acabou virando coisa do passado simplesmente porque seu arquétipo é simplório demais.
Quer um exemplo recente de vilão “desconstruído”? Thanos. Em Vingadores: Guerra Infinita, o titã quer dizimar metade do universo por uma causa nobre: evitar a escassez de comida e recursos. E ele nem quer escolher qual metade vai deixar de existir, é aleatório, e o personagem recebe tal atenção narrativa que é impossível a gente não criar alguma empatia por ele, por mais abomináveis que sejam suas ações.
Thanos vai até as últimas consequências para executar seu plano, mas na cabeça dele, isso é justificável, pois está fazendo o que julga certo. Ozymandias, de Watchmen, é outro bom exemplo de vilão que “faz o mal para fazer o bem”. Cada vez mais a cultura pop vem nos brindando com personagens que não conseguimos simplesmente não gostar, mesmo sabendo que, moralmente, eles são os “errados” da história.
Vilões bem desenvolvidos são muito populares especialmente porque fica difícil não nos identificarmos com eles. Walter White/Heisenberg de Breaking Bad é outro bom exemplo: a gente sabe que ele não ficou “mal” porque quis, mas porque a vida o levou a isso. Como sabiamente disse Harvey Dent, “Ou você morre como herói, ou vive o bastante para se tornar o vilão“.
Vilões puramente maus são rasos, ao passo que vilões bem construídos tornam-se tão (ou mais) interessantes que os heróis — e podem acabar virando anti-heróis (já falaremos mais sobre eles) e protagonizando suas próprias histórias. Até a Disney se rendeu ao charme destes personagens, transformando uma de suas mais emblemáticas vilãs em anti-heroína — me refiro à Malévola.
Isso é bem diferente de um Sauron ou de um Shao Khan, que parecem ter interesse somente em angariar mais poder e conquistar mais territórios, esmagando todos que ousarem se opor no processo. Quase nunca há uma motivação nobre por trás de suas ações, nada além de alimentar de subjugar e destruir para saciar seus egos psicóticos.
A cultura pop também é boa em criar coadjuvantes que acabam se tornando tão icônicos quanto os vilões em si. Darth Vader inicialmente era “apenas” um general privilegiado do Império, mas acabou virando um dos maiores ícones de Star Wars. Vaas era um mero capanga em Far Cry 3, mas se tornou o favorito dos fãs — e um dos personagens mais emblemáticos da saga.
Vilões nem sempre são personificados, eles também podem assumir a forma de entidades e/ou instituições. Jenova é a real vilã de Final Fantasy VII, e é justamente ela que leva seu “filho”, Sephiroth, à loucura. Quando o suposto vilão é na verdade um peão na mão de alguém acima dele, ele na verdade é um antagonista. Sephiroth, Vaas e Darth Vader entram neste arquétipo: alguém que se opõe ao protagonista (e comete lá suas atrocidades), sem, contudo, ser o “idealizador” de todo o plano maquiavélico.
Não podemos esquecer também dos vilões que são maus porque estão possuídos por alguma força maligna. Sou um grande fã de Stephen King, e suas obras são cheias disso, com destaque para Jack Torrance, de O Iluminado. No mundo dos games, jogos como Silent Hill e Alan Wake exploram bem este conceito de “entidade maligna”, mas há diversos outros exemplos.
O Anti-herói
Este conceito de “vilão bem desenvolvido” meio que deu origem a um outro tipo de personagem: o anti-herói. Que fique claro, ele não é um vilão… mas também não se encaixa no padrão do herói clássico e altruísta que vimos lá em cima, pois é propenso a passar a perna nos outros para chegar onde quer e tomar outras atitudes moralmente questionáveis.
Ele não está interessado em “salvar o mundo” ou “salvar a princesa”: o anti-herói normalmente é movido por alguma motivação egoísta, e, embora suas ações possam acabar sendo benéficas para os outros, esse geralmente não é seu principal objetivo. Não há real nobreza em seus atos, apenas a determinação cega, muitas vezes alimentada pela vingança.
O Kratos de antigamente é um dos melhores exemplos de anti-herói do mundo dos games. Raivoso e de poucas palavras, ele não quer saber de nada além de vingança. É uma máquina de matar insaciável que — sempre é bom relembrar — está descontando no mundo um erro que ele mesmo cometeu, afinal, foi ele quem se vendeu ao Ares, para começo de conversa.
Conforme as narrativas de videogame se desenvolveram, ficou impraticável manter o herói como bom moço o tempo todo, especialmente porque o jogador toma partido em suas decisões. A liberdade que certos games nos dá permite que façamos coisas erradas pelos motivos certos… ou vice-versa. Aí entram as famosas narrativas emergentes que já debatemos aqui, e há inclusive jogos com medidores de honra e karma que controlam as ações do jogador.
Pegue John Marston por exemplo: ele tem um passado sombrio, mas decidiu largar dessa vida por sua família… até algo dar errado e ele ter que voltar a matar. Repare que essa descrição também se encaixa em personagens como John Wick e Justiceiro (personagem cuja tradução do nome original, Punisher, é totalmente equivocada).
Outras motivações movem o Wolverine, e, se pararmos para pensar, até nosso querido Seu Madruga pode ser enquadrado como anti-herói! Gente como John Marston pode arrumar uma briga no saloon, assaltar uma diligência ou amarrar uma mocinha na linha do trem e ainda ser quem salva o dia no final.
Anti-heróis naturalmente tem uma pinta mais “bad ass” que o herói, e isso é algo que fascina o público. Não por acaso, Han Solo e Rorschach são tão queridos. Essa dissonância de personalidades é bastante explorada pelos roteiristas, especialmente quando um anti-herói é colocado ao lado de um herói (tipo Tony Stark e Steve Rodgers): eles até podem trabalhar juntos, mas não sem antes trocarem algumas farpas.
Agora é com você!
Ficou claro no decorrer deste artigo que o mundo dos games e a cultura pop em geral já nos entregaram heróis, vilões e anti-heróis que se tornaram lendários. Mesmo aqueles que nem são os personagens principais de uma obra podem cativar os fãs — um de meus exemplos favoritos aqui é Gus Fring, de Breaking Bad — e isso só comprova o valor de uma construção de personagens bem feita.
Ao longo deste texto mencionei alguns dos meus personagens favoritos de todas as categorias, mas quero saber de você: quais são os seus heróis, vilões e anti-heróis favoritos? Comenta aí!