Editorial: A polêmica sobre a dificuldade de Sekiro e os jogos da FromSoftware
Já faz algumas semanas que Sekiro: Shadows Die Twice foi lançado, o novo game da FromSoftware, cujos games já se tornaram sinônimo de dificuldade e desafio. Com Demon’s Souls, Dark Souls e Bloodborne praticamente criando um novo subgênero e levantando algo que há muito os jogadores haviam esquecido: videogames podem ser difíceis.
Há alguns anos uma reclamação que se lia e ouvia constantemente era que os games estavam fáceis demais, que ofereciam pouco ou nenhum desafio. De repente — em grande parte graças a FromSoftware — a dificuldade foi redescoberta. Não segurar mais na mão do jogador era algo que dava novo sentido aos videogames. Antigamente os jogos eram difíceis e eram bons, por que os de hoje em dia não podem ser assim também?
E assim, mais e mais estúdios foram influenciados a oferecer desafio aos jogadores, a deixar a facilidade de lado e dar ao jogador a sensação de superação ao passar por uma parte ou chefão difícil. Porém, de repente, nos vemos na situação inversa. “Os jogos estão difíceis demais, eles precisam de um Easy Mode”. Mas afinal, por que estamos falando sobre isso nos dias de hoje?
Esse é um dos assuntos mais falados atualmente por toda a internet, cada um defendendo um ponto diferente. Antes de escrever esse artigo, eu quis entender o que cada um está dizendo, os a favor de um Easy Mode e os contra, principalmente outros assuntos relacionados que acabaram sendo levantados por essa discussão (razão pelo atraso no timing deste artigo). Pode ser que no fim você concorde (ou discorde) de mim, e o objetivo é exatamente levantar essa discussão, ao invés de bater em um ponto.
O início da discussão
Sekiro é difícil, mas tanto assim pra gerar polêmica?
O assunto ressurgiu após a Forbes lançar um polêmico artigo intitulado (tradução livre) “Sekiro: Shadows Die Twice precisa respeitar seus jogadores e adicionar um Easy Mode”. O artigo comenta que a dificuldade elevada de Sekiro é um desrespeito aos jogadores que não conseguem superar seus desafios, mencionando que se houvesse um Easy Mode, mais pessoas poderiam curtir o game.
Pessoalmente, discordo dessa afirmação. Dizer que a dificuldade de Sekiro é um desrespeito é algo que não faz sentido, afinal, o principal elemento que tornou os games da FromSoftware famosos é a dificuldade oferecida. É fazer com que o jogador precise se adequar às regras do jogo, tendo a liberdade de usar suas próprias estratégias, mas dentro do limite do que é proposto pelo game.
A Senhora Borboleta, para muitos o ponto de desistência de Sekiro
Sekiro é um game mais difícil do que Demon’s Souls, Dark Souls e Bloodborne, pois, como menciono em minha análise do game, é uma experiência de aprendizado ao invés de perseverança. Os games da série “Soulsborne” consistem em enfrentar um inimigo, aprender o seu padrão e ir tentando até conseguir vencer. Sekiro também é assim, mas para superar os inimigos o jogador precisa aprender seus comandos, precisa aprender a defender e usar parry, a esquivar na hora certa e principalmente a atacar ao invés de esperar por uma chance que pode não vir. Ou o jogador se adapta às regras do jogo, ou não vai pra frente.
Cory Barlog, diretor do último God of War, chegou a comentar sobre o assunto, mencionando que em sua única conversa com Hidetaka Miyazaki (criador de Sekiro, Dark Souls e etc), soube dele próprio que a proposta de seus jogos está na descoberta, em oferecer ao jogador um mundo a ser explorado e uma história para ser montada pedaço a pedaço — algo que nós discutimos largamente em nosso artigo sobre Lore.
Além da dificuldade, o Lore é uma das principais características da FromSoftware
Porém, é inegável que, mesmo que dentro da FromSoftware a dificuldade não seja o foco, ela está lá. E se Sekiro foi criado sendo mais difícil que os últimos jogos do estúdio, é porque essa era a intenção deles. E também porque é isso o que os fãs esperavam: mais desafio, mais dificuldade. Dizer que a dificuldade de Sekiro é um “desrespeito” pode ser considerado por si só um desrespeito. É dizer que a proposta do estúdio para seu próprio game é errada, é dizer que ao entregar o que os jogadores esperam de um game da FromSoftware, eles estão errados. Isso é um desrespeito.
Até Cuphead em sua época foi criticado por ser “difícil demais”
Lembre-se, cada estúdio tem uma visão, ou um objetivo que deseja alcançar em suas obras. Simuladores têm por objetivo serem tão realistas quanto possível. Isso significa que eu posso dizer que Gran Turismo, Assetto Corsa, Project Cars e etc são um desrespeito, por não serem fáceis como um jogo de corrida arcade? Significa que esses jogos precisam oferecer um modo arcade para os jogadores que não se dão bem em simuladores? É claro que não.
Dificuldade e “desrespeito”
Se você chegou nesse boss de Sekiro, você penou pra vencer!
A dificuldade de games como Sekiro não é nenhum bicho de sete cabeças, não é um desafio impossível que somente a elite suprema da humanidade é capaz de superar. E apesar do massivo sucesso que os games da FromSoftware fazem atualmente, eles são jogos de nicho. E curiosamente, não por conta da dificuldade.
Quando falamos num RPG, por exemplo, várias opções diferentes surgem na mente. Provavelmente o primeiro nome que surja seja Skyrim, ou The Witcher. Depois os JRPGs por turno, os CRPGs e por aí vai. Os RPGs mais populares de hoje em dia são aqueles que oferecem grandes mundos abertos e liberdade quase total aos jogadores. Jogue como quiser, tome as decisões que achar melhor e tenha um mundo inteiro a sua disposição. Alguns desses RPGs oferecem muito desafio, outros menos, depende unicamente da proposta de cada um.
Mundos abertos ou fechados, o que você prefere?
E então temos obras como Dark Souls, que vão na contramão dos citados acima. Esses jogos não oferecem um mundo inteiro à disposição do jogador, não apresentam um enredo de começo, meio e fim. Não apresentam conveniências comuns como bússola, mini-mapa, menu de quests e etc. Mesmo que a dificuldade fosse mínima, ainda assim são games que fogem da “receita padrão”. Se fossemos começar a reclamar, então não sobraria uma linha de código. E isso não é justo, pois é posicionar-se contra a própria proposta da existência do game.
Ainda assim, mesmo que esses jogos sejam de nicho, eles não são exclusivos, no sentido de excluírem jogadores que não se adaptarem. Aprender e ter paciência faz parte da experiência. E se um jogador não gostar disso, significa somente que determinado game não é pra ele; existem milhares de outros que podem suprir seus gostos e expectativas. Mas também existe o outro lado da moeda.
Público e acessibilidade
A discussão sobre a elevada dificuldade de Sekiro levantou uma questão interessante: Se o game possuísse um Easy Mode, ele atrairia mais jogadores e consequentemente venderia mais. Todos sairiam felizes, já que nem todo mundo quer jogar um game para “passar raiva” ou ficar horas preso em um chefão. E assim, muito mais gente aproveitaria tais games, enriquecendo assim suas comunidades. E isso não está errado.
Na indústria dos videogames, principalmente nas produções AAA, um dos principais objetivos é atrair o público. Por conta disso, muitos games são feitos de forma a serem adaptáveis ao gosto e estilo do público, para atrair o maior número possível de jogadores. Não só em razão de números de vendas, mas também para atrair uma maior audiência, criar uma comunidade. E é claro que quanto mais pessoas jogarem um determinado game, melhor. Mas nada disso importará se no fim o jogador não for cativado.
Dark Souls II tentou ser mais fácil e linear, e acabou não sendo bem recebido
Talvez o que eu fale agora soe agressivo, ou talvez absurdo. Mas videogames não devem necessariamente se moldar aos gostos do público. Essa é outra discussão infindável não só nos videogames, mas em qualquer mídia: “Quiseram dar os que os fãs queriam e ficou ruim. Quiseram inovar demais e ficou ruim“. Nunca há 100% de satisfação. Mas tudo cai novamente num ponto já exaustivamente debatido: proposta.
Se um game deseja oferecer uma experiência aberta a todos, sem muita exigências por parte do jogador, ótimo. Se um game quer oferecer desafio e dificuldade ao jogador, fazendo-o jogar sob suas regras, ótimo também. Não há certo ou errado: se um jogo quer ser fácil ou difícil, contar ou não uma história, tudo se resume ao trabalho dos desenvolvedores, o que eles desejaram entregar. É claro, ninguém é obrigado a engolir tudo o que uma produtora faz, mas quando se deseja que a proposta mude para se adequar a todos, não é necessariamente algo bom.
The Banner Saga é um grande exemplo de game com uma proposta única
Mas isso não significa que nenhum game deve ter um Easy Mode. O argumento a favor é totalmente válido. Um Easy Mode não estragaria a experiência original, quem quer passar dificuldade e ter a experiência completa, é livre para tal. Quem não quer passar por toda a dificuldade, mas ainda assim quer jogar determinado game, poderia jogar sem problema nenhum. Esse é um pensamento que apesar de válido, é conflitante. E aí, entra um ponto de alta importância: acessibilidade.
Acessibilidade
Celeste é sem dúvida um grande exemplo sobre acessibilidade
Não há o que se discutir em questão de acessibilidade. Ela é necessária, afinal todo mundo deveria ter acesso a videogames, independente de necessidades especiais. O game usado como exemplo para este ponto é Celeste, um game realmente excelente que oferece diferentes opções de acessibilidade aos jogadores. Mas no caso de Celeste, suas opções de acessibilidade tem um significado a mais.
Celeste conta a história de Madeline, uma garota que sofre de depressão e ansiedade e tomou como objetivo para si escalar a imensa montanha que dá nome ao jogo. Ela quer fazer isso como uma prova de superação, para vencer não só a montanha, como seus próprios demônios internos. O game aborda temas complexos de uma forma bem pessoal, e nas próprias palavras de Matt Thorson, criador do game, durante a TGA 2019: “Se Celeste te ajudou a superar problemas mentais, eu só quero dizer que você merece os parabéns por isso. Essa mudança veio de dentro de você e você é capaz de muito mais”.
O discurso de Matt Thorson durante a The Game Awards 2018
Para dar esse desafio de superação ao jogador, o game oferece obstáculos que ficam cada vez mais complicados, mas satisfatórios de serem superados — e o jogo ainda vai além, com as fases extras ainda mais difíceis do modo B-Side. Mas para permitir que todos possam desfrutar do game, e inclusive atingir o público que sofre de algum problema psicológico ou físico, o estúdio adicionou as já mencionadas opções de acessibilidade, para permitir que todos possam interagir com o game como quiserem. E isso é totalmente louvável. Coisas como habilitar um dash infinito, ajudando os jogadores com dificuldade de vencer os obstáculos do game, invencibilidade e até a opção de desacelerar o tempo.
Por que então, games como os da FromSoftware e de outras produtoras não podem possuir um Easy Mode? Ou em outras palavras, opções de acessibilidade que permitam que qualquer pessoa possa jogar? Não há razão para ser contra isso, certo?
Acontece que tudo novamente cai na questão da proposta. Se um game tem o objetivo de ser difícil, se é isso que uma produtora quer entregar aos jogadores, desafio elevado, provável frustração e momentos de raiva, deve-se respeitar isso. Oferecer opções de acessibilidade não precisam necessariamente matar o desafio.
Um RPG por turnos não deve se adequar a quem gosta de Hack n’ Slash. Um game com foco em furtividade não deve necessariamente oferecer combate explosivo para atrair jogadores que não gostam de furtividade. Games arcade não precisam adicionar realismo e etc. Resumidamente, se um game tem a sua proposta, qualquer que seja, ela não é um desrespeito com quem não gosta da proposta. A razão para existirem tantos gêneros e sub-gêneros diferentes é justamente porque existem pessoas que gostam desses estilos únicos.
Hack n’ Slash, Barra de estamina, Button Mash, não existe só um jeito de criar um game
Acessibilidade não se trata de adicionar um Easy Mode pra quem não quer encarar o desafio por que não está com vontade. É permitir que quem em condições normais não é capaz de jogar um determinado game, possa. Oferecer a opção é sem dúvida algo válido, até para um jogo ser mais inclusivo, mas isso não necessariamente significa tonar o game adaptável a quem não gosta de dificuldade. Nesse caso, um Easy Mode em Sekiro seria quase como se a empresa estivesse “traindo o movimento” — que, inclusive, foi o que a fez tão famosa. Acessibilidade é oferecer essa opção para quem não é normalmente capaz em circunstâncias normais.
Conclusão
No final, esse artigo provavelmente soou muito contraditório. Oferecer um Easy Mode é bom, mas também é ruim. A questão que quero levantar é o discurso de ambos os lados, que por mais que tenham levantado questões importantes, soa errado. “Esse jogo é difícil demais pra mim. Quero um Easy Mode. Mas Easy Mode vai estragar a experiência. Mas e a Acessibilidade?”
Meu ponto de vista sobre esse assunto é o seguinte: nenhum game vai agradar todo mundo. Nunca aconteceu, nunca acontecerá. E isso é totalmente compreensível. Há quem não goste de corridas, há quem não goste de RPGs, há quem não goste de jogos fáceis e há quem não goste de jogos difíceis. Desenvolvedores e estúdios trabalham diariamente para que seus jogos possam atrair o maior número de pessoas possível, incluindo novos públicos. Porém, manter-se fiéis às suas propostas pode ser tão importante quanto angariar novos fãs.
A proposta de um game é a própria razão dele existir
A ideia de criar algo de nicho parece absurda. Por que restringir algo se você pode atrair mais público e ganhar mais dinheiro? Mas não há como mudar isso, pois games de nicho não significam necessariamente que são obras que excluem o público geral, e sim que suprem a demanda de um grupo específico. É por isso que existem simuladores, RPGs, Hack n’ Slashs, RTS, Jogos esportivos e etc. Tudo é um nicho diferente, apenas de tamanhos diferentes.
Acessibilidade acaba sendo tratada nesse assunto de dificuldade de uma forma que pessoalmente vejo como errada. Não é tratada como uma forma de permitir que quem possui necessidades especiais possa jogar, mas parece mais uma desculpa para levantar o ponto de quem não gosta de jogos difíceis, o que são coisas completamente diferentes. Se você não gosta da ideia de Sekiro, de seu gameplay, de sua ambientação, de sua dificuldade, não há problema nenhum. Mas pedir para que a própria ideia do jogo mude para se adequar a quem não gosta da ideia em si, isso sim parece absurdo.
Você não é obrigado a gostar de nenhum game, mas nenhum game é obrigado a se adequar a você
Se acessibilidade significa tornar Sekiro, ou qualquer outro game mais fácil para que quem normalmente não pode, consiga jogar, então sim, que haja um Easy Mode para que quem quiser aproveitar o game, aproveite-o. E isso não vai comprometer a proposta do game, e sim permitir que o desafio seja acessível a quem tem dificuldades.
Mas dizer que sua dificuldade é um “desrespeito”, que o game exclui pessoas que não gostam de jogos difíceis, reitero: não GOSTAM, e que precisa mudar para se adequar a quem de cara não gosta da proposta, isso eu discordo completamente. Algo que existe de sobra no mundo dos videogames é opção: se um jogo não te atrai, existe outro que melhor se encaixa no que você está procurando. Lembre-se, nunca um game agradará a todos, mas se sua proposta, seja qual for, conseguir atrair um grande público, não há necessidade, a não ser pelo desejo dos próprios desenvolvedores, para atrair quem não gosta de sua proposta.
Se um game não é pra você, não se preocupe tanto com isso, há outros que você apreciará mais
O problema no fim das contas é o discurso. Não é sobre dizer que o game precisa oferecer opções de acessibilidade. É dizer que eu não gosto dele por ser difícil demais e que por isso, o jogo é desrespeitoso. É dizer que o jogo precisa de opções de acessibilidade não para quem tem dificuldade, mas para que a proposta seja moldada a mim, que não quero passar por sua dificuldade.
Se a FromSoftware quiser futuramente adicionar um Easy Mode em seus games, mas pelas razões certas, e não somente por que “há pessoas que não jogam nossos games por não gostar de sua dificuldade elevada”, então, falando unicamente por mim, um Easy Mode seria recebido de braços abertos.
Independente de polêmicas, acessibilidade é sem dúvida importante
Para finalizar, deixo aqui alguns artigos (em inglês) para ampliar a discussão. Primeiro, temos um jornalista da PC Gamer escrevendo sobre como Sekiro é difícil demais para ele, e por isso ele nunca conseguirá terminá-lo. Um artigo interessante que fala sobre quando um game não é pra você. O segundo, temos outro artigo da PC Gamer, em que um jornalista fala que terminou o game com um mod de câmera lenta. Um artigo que pessoalmente acho desagradável, com um tom de “fiz mesmo, pois o jogo é difícil demais, por isso o jogo é idiota, e se você acha que fiz errado pode ir pra aquele lugar”. E por fim, um interessante artigo de um desenvolvedor que sofre de deficiência física falando sobre sua experiência com Dark Souls e como um Easy Mode o ajudaria a conseguir jogar o game, superando seus próprios problemas físicos.
Qual é a sua opinião sobre isso? Concorda comigo? Discorda? Achou que fui contraditório demais (e admito que fui)? Deixe aí seu comentário, para que possamos discutir esse assunto de forma inteligente e respeitosa!