Filosofia Arkade: Jogamos muito sem zerar nada?
“Interrupção, incoerência, surpresa são as condições comuns da vida” (Paul Valéry). A mente humana moderna se alimenta de estímulos passageiros e constantemente renovados. Podem os jogos atuais acompanhar essa tendência e se transformar em algo sempre inacabado? Venha pensar conosco em mais uma Filosofia Arkade!
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade Líquida, examina como se deu a passagem de uma sociedade “pesada” e “sólida” para uma modernidade “leve” e “líquida”, fazendo uma analogia com a propriedade dos estados da matéria — isso mesmo, sólido, líquido e gasoso.
Sabemos que líquidos e gases podem sofrer facilmente alterações, enquanto que os sólidos tendem a preservar suas formas quando uma força é aplicada sobre eles. Ou seja, enquanto os líquidos podem ser deformados, os sólidos tendem a ser resistentes.
Fazendo essa analogia, Bauman afirma que a modernidade que vivemos hoje é líquida: altamente dinâmica, pois não possui forma específica. O que conta para ela é o tempo, não o espaço que ocupa (uma ocupação passageira, por sinal). Tudo deve ser ágil e propenso à livre mobilidade.
O que é líquido é fluido; tudo contorna, escapa e se esvai. Vemos isso como algo leve e associamos essa leveza ao movimento, ao dinamismo. Você deve estar se perguntando: mas o que tem a ver a modernidade líquida com games?
A dinâmica da sociedade moderna atual leva a uma busca incessante por algo novo e inspirador, de modo que nada é algo plenamente satisfatório, fazendo com que essa busca se torne um vício.
Quanto mais procuramos, mais precisamos, e essa constante necessidade destrói a possibilidade de satisfação. E aqui chegamos nos jogos.
Fazendo uma interpretação do texto de Bauman sobre os objetos de desejo dos consumidores da Modernidade Líquida, podemos afirmar que os jogos de hoje são atraentes enquanto não testados. Muitos não cumprem o que prometem e, mesmo quando cumprem, isso não satisfaz o jogador, pois sempre há uma variedade imensa de opções à nossa disposição.
O que falar da enxurrada de DLCs que temos presenciado? São mesmo necessários? Isso pode ser reflexo da liquidez moderna, a necessidade de constante renovação e, claro, o aproveitamento dessa necessidade pela indústria e pelo comércio.
Muitos games, mesmo que de última geração e feitos na melhor engine existente, no momento que são experimentados se tornam obsoletos, não porque sejam ruins ou ultrapassados, mas porque têm que competir com novos e mais aperfeiçoados jogos lançados a cada momento.
Quem gosta de games que se repetem? É tentador ver uma remasterização, mas muitas apenas parecem ser feitas para vender num console new gen, sem nada acrescentar de novo ou mesmo graficamente. Então isso não é uma remasterização, é apenas a disponibilização desse game para novas compras.
Para Bauman, esse consumo é como uma corrida muito longa para alguém que não treinou: “comecei, mas não posso terminar“. Assim, torna-se satisfatório apenas permanecer nessa corrida sem fim, cujo propósito é o eterno desejar e obter, sem nunca ganhar um prêmio por completar o trajeto.
Segundo o sociólogo, nossa política de vida vem da prática de comprar: examinamos as possibilidades, experimentamos e decidimos se vale a pena adquirir. E isso vale para qualquer campo da vida.
O consumismo não mais se baseia na necessidade, qualquer que seja ela; o consumo se baseia no desejo, que por ser efêmero está fadado a ser insaciável, tornando a compulsão por adquirir um vício.
A necessidade sólida e inflexível, pois baseada na realidade do que precisamos, deu lugar ao desejo sempre fluido e expansível, relacionado à vontade do indivíduo de realizar fantasias e sonhos.
Porém, mesmo o desejo não é fluido o bastante para acompanhar tamanha agilidade e o dinamismo dessa sociedade moderna e, então, foi substituído pelo puro querer. A compra se torna casual, inesperada e espontânea.
Essa compulsão também tem a ver com a insegurança. Quando muitas pessoas estão em perigo, todos correm para o mesmo lado, mas atrás de que se corre? Atrás da segurança de se livrar da sensação de incompetência e derrota. Achamos que não vamos conseguir novamente o que temos, então consumimos mais e não experimentamos por completo o que foi adquirido antes (as Steam Sales que o digam).
E aí o ato de adquirir se torna um exorcismo. Ele não acabará com os fantasmas, mas produzirá o alívio (mesmo que momentâneo) apenas por ser realizado.
É por isso que damos tanto valor a jogos e consoles antigos — conforme a nossa idade e o conhecimento sobre eles. Pois sua durabilidade (seja ela material ou mesmo temporal) acaba tendo um aspecto de imortalidade (“longo prazo”), diferente da instantaneidade de objetos transitórios, de “curto prazo”, que tendem a desaparecer com seu uso e que associamos ao que é novo (o novo que se tornará inútil em pouquíssimo tempo).
Alguns games já estão sendo vendidos numa forma incompleta, quase uma demo. Sério que devemos obter algo inacabado? Possuir alfas e betas e nunca um jogo inteiro ao nosso dispor? É claro que compra quem quer, mas esse querer pode, na verdade, ser mais uma armadilha que um poder de escolha. E lá vamos nós comprar mais um game para, talvez, nunca zerar.
E você, joga muito e raramente zera um game? Conte para gente, porque nunca é demais entrar no roleplay. 😉
Fonte de pesquisa: Modernidade Líquida (Bauman, 2001)