O Gamer Pensador – Uma comparação entre Guild Wars e World of Warcraft
Caros gamers e leitores do Arkade, com o aumento da nossa equipe, estrearemos por aqui colunas assinadas por nossos colaboradores selecionados. O Gamer Pensador é a coluna que Marcelo Melo, game designer e pensador nas horas vagas, trará para vocês, contendo análises inquisitivas e semióticas de games e outros elementos da cultura gamer. Apresento a vocês: O Gamer Pensador.
-Raphael Cabrera, editor-chefe do Arkade.
Existe o consenso de que a literatura de Tolkien inspirou muitas das representações de criaturas fantásticas que conhecemos hoje em dia. A cultura de jogos, digitais ou não, recompôs esses mitos da maneira mais conveniente, sempre oscilando entre o respeito à tradição e o impulso criativo. Mas, entre as sagas da Terra Média, os halflings de Dungeons and Dragons e os Pandas de Azeroth, muito mudou.
Não apenas nos acostumamos às adaptações contemporâneas do folklore europeu, mas também essas imagens e construções se moldaram aos nossos interesses. Ao escrever “nós”, refiro-me à indústria que desenvolve games com esses conceitos e, secundariamente, aos jogadores que propagam essas franquias; é preciso enfatizar que não cabe, nesse artigo de opinião, a discussão sobre se é a indústria que nos oferece o que queremos ou que passamos, por falta de opções, a querer o que a indústria nos traz.
Dentre essas complexas relações entre imagens, conceito e cultura de consumo, venho tratar comparativamente de dois conjuntos de representações da Fantasia Medieval que, mesmo sendo contemporâneos, interpretaram de maneiras bem diferentes a representação tradicional dos habitantes de um mundo medieval e fantástico. Hoje, temos Guild Wars comparado ao World of Warcraft, sob uma perspectiva de conceitos das espécies
Observemos que, no Guild Wars e no WoW, há quatro estereótipos comuns: a espécie belicosa e adaptável, a espécie inventiva e esperta, a espécie selvagem e a espécie harmoniosa e prudente. Podemos seguramente elencar como representantes dessas idéias, em ordem: os Humanos, os Gnomos e Asura, os Orcs e Charr e os Elfos da Noite e Sylvari.
A espécie humana, sempre diversa, auto-predatória, sofredora e com grande capacidade de adaptação. Não me espantam que sejam esses os valores que a mídia quer associados à nossa própria espécie, visto que os mesmos refletem vícios e virtudes de nossa realidade. De fato, acho que o maior defeito das representações humanas nos dois jogos mencionados é a aparente indiferença aos eventos, geralmente traumáticos, que permeiam as narrativas de ambos os jogos. A humanidade no Guild Wars e no World of Warcraft parece estranhamente confortável diante de tantas tragédias.
Agora, ao conceito bestial e selvagem: tanto os Orcs quanto os Charr têm uma visão expansionista de mundo. Conquistadores por excelência, são vistos como os vilões das narrativas, iniciadores dos grandes conflitos que assolam Tyria e Azeroth. Representam, creio, a bestialidade que abrigamos. São a lembrança de que o ser humano também é do corpo, e que a razão não pode suprimi-lo. Curiosamente, a progressão de ambas as narrativas coloca-os em uma posição de agentes submissos às circunstâncias. Isso exime o jogador de partilhar do pecado, da culpa que os permeava. Os Orcs estavam sob influência da Legião Flamejante, e os Charr, reagindo a uma agressão iniciada pelos humanos.
Nada como uma alteração na narrativa em nome de uma maior base de jogadores!
Vamos então às criaturinhas pequenas e engenhosas, os Asura e os Gnomos! Certo, eu não esqueci dos Goblins, mas os vejo como uma adaptação do conceito de inventividade à Horda, com uma apresentação mais transloucada e imprudente.
Tais seres têm apresentações muito parecidas, em essência. Mesmo sendo os Asura mais arrogantes e menos simpáticos que os Gnomos, ambos são os representantes do progresso material, os que fazem as coisas explodirem. A excentricidade simpática dos Gnomos não muda o fato de que eles, assim como os Asura e os Goblins, são aceitos interespécies por seus resultados, e não por sua companhia agradável.
Parece-me que os três conceitos se dão de tal forma para lembrar-nos das maravilhas e perigos da ciência humana, que inventou vacinas e também bombas. Mais especificamente, os Asura do Guild Wars parecem representar a transmutação, a transformação do solo – visto que são seres subterrâneos – em objetos de desejo. Já os Gnomos me evocam a idéia do engenheiro da Revolução Industrial, que dá ordem e forma a metais e gera energia a partir do vapor. Finalmente, os Goblins representam a caricatura da alquimia, com suas poções perigosas e pouco testadas.
Por último, temos o conceito da espécie sábia e integrada. Tanto os Sylvari – isso é uma tentativa de plural latinizado? – e os Elfos da Noite reconhecem a necessidade de comunhão com a natureza. Além disso, desdenham – assim como os Elfos de Tolkien – as decisões ruins que a espécie humana vive tomando. Representam, penso, a razão e a prudência, em contraposição aos sentidos e à impetuosidade, características dos Orcs e Charr. Em outro aspecto, seu ideal de harmonia com a natureza contrapõe-se ao cientificismo predatório dos Goblins e Gnomos e, em certa medida, dos Asura.
Fiz essas quatro menções para fundamentar as seguintes frases: ambos os jogos não estão inventando nada de novo, mas modificando conceitos já existentes. A apresentação estética do Guild Wars é, entretanto, mais criativa e menos hereditária do que a do World of Warcraft, que não se intimida ao reproduzir Tolkien. Um dos pontos é: não faz diferença se o seu personagem é um elfo ou um ser-planta, saiba que os valores narrativos que ele representa são quase os mesmos.
Ademais, podemos novamente inferir que a Fantasia Medieval não está realmente inventando nada, mas repaginando velhas ideias. Isso não é realmente um problema, pois a imitação se torna danosa quando não acrescenta absolutamente nada, criando uma cópia pouco interessante.
É também bom ver como a passagem do tempo cria reinvenções das mesmas, velhas estórias. É até bonito, sabem. Talvez possamos até dizer que somos sempre os mesmos, mas de maneira diferente; que os jogos, por serem produtos humanos, reflitam isso. Lembrem-se que isso não é uma tentativa de comparar os dois jogos valorativamente: cada qual com sua leitura, e o WoW com os pandas que quicam (bouncy) e lutam wushu.
Tudo bem, eu não aguentei.
E vocês? Se o que escrevi for verdade, algo muda em suas escolhas de raças? A escolha de uma raça em um MMO não vai muito além de uma experiência estética?