Análise Arkade: Etherborn distorce a gravidade para dar um nó no seu cérebro
Se você está em busca de um puzzle game diferente, com potencial de dar um nó na sua cabeça, não precisa procurar mais: Etherborn é o jogo que você estava esperando.
Um jogo quase esotérico
Etherborn tem uma história bastante pitoresca: controlamos um corpo sem voz, que acaba de “nascer” em um mundo pra lá de psicodélico, onde a gravidade atua de formas estranhas.
Neste mundo, vamos transitar pelos galhos de uma árvore colossal, enquanto somos guiados por uma voz incorpórea. Um corpo sem voz e uma voz sem corpo: já tem uma noção de onde isso vai dar, né?
Pois é, o jogo tem essa vibe meio etérea, e traz até alguns questionamentos sobre livre arbítrio, liberdade de expressão, e coisas do tipo. São bandeiras que eu não esperava ver sendo levantadas aqui, mas é uma abordagem interessante. Nada aqui está contando uma história de fato; os comentários são meio que o fio condutor que nos guia entre um desafio e outro.
Desconstruindo a gravidade
Quem joga videogame há anos sabe que as leis da física são facilmente burláveis no ambiente digital. Andar de cabeça para baixo por tetos, subir em paredes, voo, pulos duplos e coisas tipo “cair para cima” são até que bastante normais no mundo dos games.
Etherborn traz um pouco disso tudo, mas de forma diferente: aqui você pode explorar o cenário do jeito que der — de pé, de lado, de ponta cabeça, e por aí vai. A única regra é: você não pode simplesmente ir do chão para uma parede; é preciso que haja uma rampa ligando as duas coisas. A gravidade sempre irá puxá-lo para o lado que seus pés estiverem apontando, sem que isso seja necessariamente “embaixo” ou “no chão”.
O mesmo princípio se aplica para diversas outras finalidades: você pode cair por uma beirada comum, mas se o terreno acaba em uma curva suave, seu personagem vai simplesmente continuar se movendo sobre aquela superfície, de formas que desafiam a lógica (e a gravidade). Pense nos planetinha de Super Mario Galaxy — é mais ou menos por aí.
Quebrando a cabeça
Porém, enquanto Super Mario Galaxy era um jogo de exploração e plataforma, Etherborn é um jogo de puzzles. Enviromental puzzles, para ser mais exato. Ou seja, os enigmas geralmente envolvem a locomoção pura e simples, e o desafio consiste em saber como chegar até certos lugares — valendo-se da gravidade flexível e distorcida que rege aquele mundo.
E isso é mais difícil do que parece, meu caro! Sabe aquele tipo de percepção “quadridimensional” que certas pessoas têm para montar um cubo mágico? É mais ou menos isso que Etherborn demanda: os cenários são super compactos, mas como podemos explorá-los na horizontal ou na vertical, por cima ou por baixo, precisamos aprender a lidar com tudo isso, e (o mais complicado) descobrir onde devemos ir — e como ir até lá –para estarmos na “posição” certa para prosseguir.
O mundo do game possui orbes, que devem ser coletados e posicionados sobre grids para que certas coisas aconteçam (plataformas se movam, passagens se abram, etc.). Chegar até esses orbes vai ficando cada vez mais difícil, e quando você já estiver com ele, ainda vai precisar descobrir como fazer para chegar até o painel onde ele deve ser utilizado!
Esse é o tipo de jogo difícil de explicar em palavras, então vou deixar um breve vídeo de gameplay aí embaixo, para você entender o drama:
Sacou? Pois é, estamos sempre dando voltas nestes pequenos mundos, construídos com esmero e dedicação para dar um nó na cabeça da gente!
Bastidores do jornalismo gamer
Vamos abrir um parêntese aqui para trazer uma informação dos bastidores: muitas vezes, os jogos que recebemos para analisar vêm acompanhados de um guia de review, que pode tanto ser um apanhado de dicas gerais quanto um passo-a-passo detalhado de como proceder no jogo.
Etherborn foi um destes jogos: junto com o código, o desenvolvedor nos enviou uma série de links com walkthroughs em vídeo de cada fase do jogo. Sabe como é, para o caso de ficarmos empacados em algum trecho. Vi isso e pensei “pfff”. Meu objetivo era zerar o game na raça!
O jogo é composto por apenas 5 fases. Se você souber exatamente o que fazer e para onde ir, cada fase mal dura 10 minutos. Ou seja, uma partida completa, jogada sem erros por um “profissional” não duraria nem 50 minutos. Moleza, né? Só que não: Etherborn é tão complexo, que é bem pouco provável que alguém consiga terminá-lo tão rapidamente.
Eu passei das duas primeiras áreas “na raça”, mas fique tanto tempo travado em uma parte da terceira fase, que recorri ao guia do desenvolvedor. Aí veio a quarta fase e me deixou empacado por mais umas duas horas. Recorri novamente ao guia. Esta quarta fase em particular demanda um conjunto tão específico de manobras para ser superada que eu acho bem pouco provável que alguém consiga passar dela sem uma ajudinha online. É simplesmente muito difícil.
Quer dizer, não duvido que vai ter gente zerando o jogo já no primeiro dia, mas essas pessoas sem dúvida serão exceções. Porém, até que outros walkthroughs comecem a pipocar online, eu realmente acredito que muita gente vai desistir de Etherborn ali pela quarta fase. Eu jamais teria passado dela sem os guias.
Aí é que está o drama: eu estava jogando antes do lançamento, mas felizmente, tinha um guia dos próprios desenvolvedores. Mas esses vídeos são privados, e eu não posso compartilhá-los aqui. A quem for encarar Etherborn nos próximos dias, e resolver fazer isso sem um guia, eu só posso desejar boa sorte, do fundo do meu coração.
Não é o mesmo tipo de dificuldade de Sekiro, por exemplo, nem mesmo aqueles puzzles obtusos dos tempos da LucasArts. É esse lance da gravidade e da percepção espacial que são os pilares aqui. Eu costumo me viram bem com isso em jogos 2D — tipo Shift Quantum ou Dandara — mas descobri que não tenho “esse tipo de inteligência” quadridimensional. Espero que você seja melhor do que eu, neste aspecto.
Audiovisual
Apesar dessa dificuldade que pode ser altamente frustrante, Etherborn nunca é punitivo, nem opressivo. Seu visual é sempre claro e luminoso, e a trilha instrumental suave concede um tom onírico e relaxante ao game. A morte nunca retrocede demais nosso avanço, e o reaparecimento é quase instantâneo, eliminando a chateação da espera.
O level design deste jogo é diabolicamente primoroso, e eu tremo só de pensar no trabalho dos desenvolvedores que maquinaram tudo isso: em tempos onde o procedural é o queridinho dos indies, o pessoal da Altered Matter construiu cada pixel à mão — o que certamente deu um trabalho e tanto, dadas as diferentes possibilidades de exploração que o jogo oferece.
No geral, é um visual low poly colorido e que até poderia ser zen… se o jogo não fosse tão complicado. Ah, e devo acrescentar que todas as viradas malucas de câmera e perspectiva me causaram um leve mal estar em alguns momentos.
Conclusão
Etherborn é um jogo realmente diferente. Como eu disse lá no início do texto, a gente já cansou de andar por tetos e paredes do mundo dos games, mas ele traz um viés novo a estas ações, transformando cada cenário em um enorme puzzle que é um deleite em termos de design, mas uma tortura para ser compreendido e superado.
Acho que desde Fez eu não via um jogo brincar com perspectiva espacial de formas tão diferentes e criativas. Este é um mérito que não pode ser desmerecido… mas ao mesmo tempo acho que os devs pesaram a mão na dificuldade, criando um jogo que me parece quase impossível de ser zerado “na raça”.
Eu tenho a humildade de admitir que pedi arrego, e recorri ao guia em mais de um momento da terceira fase em diante. Talvez você seja mais esperto do que eu. De qualquer modo, será divertido ver como “a internet” reage ao jogo. Em uma época onde dificuldade é sinônimo de “Souls-like”, é interessante vermos um jogo tão pacífico (e sem combates) entregando um desafio tão cabeludo.
Então, se você gosta de puzzle games que pensam fora da caixa, dê uma chance para Etherborn. E boa sorte. Você vai precisar.
Etherborn está sendo lançado hoje (18/07), com versões para PC, Playstation 4, Nintendo Switch e Xbox One. O jogo possui menus, vozes e legendas apenas em inglês.