Editorial: Contratos abusivos entre estúdios e distribuidoras
Video games são parte ativa das vidas de muitas pessoas ao redor do mundo, mesmo daqueles que não jogam nada. Isso acontece pois esse brinquedo que surgiu na década de 70 hoje é uma gigantesca indústria multibilionária que movimenta tecnologias, recursos e pessoas.
Felizmente essa não é uma indústria fechada, em que apenas quem está no topo da montanha pode “brincar”. A verdade é que qualquer um pode se aventurar por esse mundo que cria diversões, experiências e por que não, arte?
Dos estúdios AAA até desenvolvedores solos criando games dentro de suas próprias casas. Mas há uma estrutura básica por trás disso, que é bem fácil de se identificar, ficando bem clara quando falamos de games multiplataformas: A relação entre desenvolvedoras e distribuidoras.
Antes de mais nada, é importante deixar claro que não possuo conhecimentos sobre como contratos funcionam na prática, nem como a indústria de video games funciona. Esse artigo é escrito do meu ponto de vista, o de um observador externo, em reação aos vários casos que vieram à tona em relação ao assunto.
Entendendo o sistema
Entre agora na Steam, PS Store, Microsoft Store, e-Shop ou qualquer outra loja, digital ou física, de games. Rapidamente você identificará que todo game listado à venda possui informações de desenvolvedores (developers) e distribuidoras (publishers). As vezes ambas são a mesma produtora, mas na maioria dos casos são empresas diferentes.
O que acontece é que criar um game é um longo processo. Vai desde seu código de programação, artes conceituais, modelagem 3D ou 2D, animação, uso ou criação de engines e muitos processos até enfim “ir a Gold”, ou seja, concluir sua produção. E com o game pronto, o que falta? Distribuí-lo.
Seja distribuí-lo gratuitamente ou colocá-lo à venda, essa é a parte talvez mais importante de todas. Afinal, chegou a hora de seu trabalho chegar até os jogadores. E na maioria dos casos, uma empresa terceirizada é quem faz esse trabalho, que talvez não pareça, mas é bem complexo.
Uma distribuidora tem como função, entre outras coisas, ajudar no marketing de um game, negociar com plataformas para o game aparecer em suas lojas e até mesmo fazer o port para essas outras plataformas. Inclusive chegando a investir dinheiro para ajudar em sua produção.
E para que tudo isso ocorra, é obviamente necessário que haja um acordo formal entre as partes, na forma de um contrato. Agora me diga, você já parou pra pensar em como esses contratos são feitos? Ou o que esses contratos dizem?
Provavelmente a resposta é não, pois para o jogador, esse tipo de informação acaba nem passando pela mente. E uma das principais razões sobre isso é porque quase nunca se fala sobre isso na mídia, exceto em anúncios de que tal distribuidora venderá tal game, ou de forma bem mais intensa, quando casos realmente absurdos vem à público. E só aí temos um breve vislumbre de como é parte de “business” dessa indústria, mas esse vislumbre vem sempre da parte ruim.
Da Frogwares a People Can Fly
Se você acompanha a Arkade há um tempo, então provavelmente acompanhou a enorme briga judicial pelos direitos de The Sinking City (E se não acompanhou, recomendo dar uma lida nos artigos sobre essa história), que começou em agosto do ano passado.
A história começou quando a Frogwares, desenvolvedora do game, entrou na justiça contra a distribuidora Nacon, por não pagar os royalties das vendas para eles, os criadores do game. Por conta disso, a Frogwares alegou quebra de contrato e entrou na justiça para exigir o pagamento e o término total do acordo entre as duas empresas.
A Nacon se defendeu, alegando ter pago tudo e dizendo que a Frogwares estava agindo de má fé. Tudo “normal” até aí. Mas a situação “descarrilou” quando, após a Frogwares exigir que The Sinking City fosse removido das lojas para impedir que a distribuidora continuasse a lucrar com suas vendas, que não estava repassando através dos royalties, a Nacon respondeu literalmente pirateando o game e o recolocando a venda.
A Nacon alegou que o contrato de distribuição contém uma cláusula que diz que, caso a Frogwares não cumpra com sua parte (no caso em questão, lançar atualizações pro game), a Nacon podia simplesmente se apossar da propriedade intelectual e fazer o que bem entendesse com ela, incluindo piratear o game e contratar outra desenvolvedora para cuidar da IP.
Esse caso foi gigantesco e até então não está resolvido, sem nenhuma nova notícia sobre há alguns meses. Mas evidenciou uma atitude incrivelmente controversa partindo da Nacon: Nós temos o direito de tomar a propriedade intelectual de sua criação, se assim bem quisermos, pois está em contrato.
A Frogwares ainda passou por outra situação difícil com outra distribuidora, a Focus Home Interactive pelos direitos da franquia de games de Sherlock Holmes. O contrato de distribuição entre as partes estava prestes a vencer e a Focus Home Interactive, ao invés de devolver todos os direitos da IP, que era a ação correta a se fazer, simplesmente tirou todos os games da série das lojas, impedindo que a Frogwares vendesse seus próprios games.
Enquanto eu estudava e pesquisava essas histórias, o caso de Duke Nukem Forever veio à mente, pois passou por uma situação parecida. O game levou 14 anos para ficar pronto, e em meados de 2010, a Take-Two Interactive, que tinha os direitos de distribuição do game, processou a 3D Realms por “falhar em entregar o produto prometido”. Na ocasião, ambas as partes chegaram a um acordo, após a 3D Realms declarar que a Take-Two tinha apenas direitos sobre a distribuição, não pela IP.
A coisa piorou após o lançamento de Duke Nukem Forever em 2011. A Gearbox tornou-se detentora legal dos direitos da franquia, segundo eles através da compra da IP da 3D Realms. Porém, a 3D Realms alegava que jamais havia vendido a IP, e que a Gearbox se apossou dela ilegalmente, quebrando o contrato de distribuição de Duke Nukem Forever para se apoderar de toda a franquia.
Isso, após a 3D Realms acusar a Gearbox de não pagar os royalties das vendas do game. A produtora perdeu na justiça a briga por esses pagamentos e a própria justiça americana ficou do lado da Gearbox, dando a eles controle e posse total de toda a franquia Duke Nukem. Mas, para todos os fins, a Gearbox legalmente comprou os direitos da franquia na ocasião e as acusações da 3D Realms jamais conseguiram gerar reações legais.
E então, recentemente o caso da People Can Fly veio à tona. Um caso completamente diferente e que não chega nem perto de todas essas brigas, mas nos mostra de forma muito mais clara como contratos funcionam, e como eles tendem a não ser exatamente uma via de mão dupla.
A People Can Fly é o estúdio que produziu Outriders, lançado em março deste ano com distribuição pela Square Enix. O game foi bem recebido pelo público e crítica, apesar de seu lançamento conturbado pela presença de bugs e problemas de conexão. E segundo a própria Square Enix, o game foi uma “agradável surpresa” para eles, por conta de seus grandes números de vendas.
A situação num geral era positiva para todos, mas há alguns dias uma revelação inesperada surgiu: A People Can Fly revelou que ainda não recebeu o pagamento de royalties pelas vendas do game. Mas a própria Square Enix não declarou publicamente que estava feliz pelos números de vendas? Então o que aconteceu? E que números são esses? Nem a People Can Fly sabe.
E logo um detalhe interessante sobre o contrato de distribuição veio à tona: A Square Enix pagaria os royalties das vendas do game, se esses valores existissem. Ou seja, se o game der lucro, o estúdio será pago. Se não der lucro, não haverá pagamento.
Fica claro que essa é uma cláusula bem entendida e que não é contestada pela People Can Fly. Mas a questão do porquê do pagamento não ter sido feito é que continua no ar. A Square Enix comemorou os números de venda, que especula-se estar entre 2 a 3 milhões de cópias vendidas. No entanto, aparentemente esse bom resultado não foi considerado bom o suficiente para o pagamento de royalties.
O CEO do estúdio, Sebastian Wojciechowski, especula que os números de venda e o possível baixo lucro de vendas ocorreram por culpa das próprias ações da Square Enix, que lançou o game no Xbox Game Pass no dia de lançamento do game.
Que fique claro, não tenho qualquer informação sobre os lucros e movimentação financeira que ocorrem com o Game Pass (e creio que ninguém mais, fora a própria Microsoft e os estúdios, tenham essas informações). Porém, a situação dá a entender que não houve lucro nas plataformas Xbox (console e PC) pois os jogadores já tinham acesso irrestrito ao game pelo Game Pass.
O ponto principal de atenção aqui é que o contrato de distribuição de Outriders dava à Square Enix total autonomia de distribuição sem o envolvimento da People Can Fly, que apenas produziu o game e mantém seus serviços online. Além disso, o estúdio depende da Square para ter acesso a dados de vendas, com a People Can Fly acusando-a de falha por não divulgar esses dados quando solicitados.
É interessante comparar esse caso ao de Biomutant. Recentemente a Embracer Group, empresa que distribui o game e inclusive comprou o estúdio que o produziu, a Experiment 101, divulgou que o game vendeu 1 milhão de cópias, superando os custos de produção e aquisição do estúdio combinados.
Se usarmos matemática básica, podemos chegar a uma estimativa de valores. Games AA e AAA normalmente são lançados no valor de 60 dólares (ignorando conversões). Imaginemos que a parte das revendedoras seja 30%, assim o valor que chega até a distribuidora é de 42 dólares (ignorando diversos outros fatores, como transporte, impostos e etc). Biomutant então teria gerado um lucro de 42 milhões, se considerarmos preço cheio e ignorarmos promoções e descontos. Nesse cálculo, se imaginarmos que Outriders vendeu no mínimo 3 milhões de cópias, estamos falando de 126 milhões de dólares.
Ainda assim, contratualmente, se a Square Enix considerasse esse valor insuficiente, talvez baseado em alguma estimativa no acordo (não sabemos), ela não é obrigada a pagar os royalties, pois assim determina o contrato, ao que tudo aparenta.
Mas seriam esses casos isolados? Como será que é a realidade desses contratos com estúdios de diferentes tamanhos? Desde os já citados, que são estúdios grandes ou relativamente grandes, até os menores, ou até mesmo desenvolvedores independentes que trabalham sozinhos.
Não posso e não vou de forma alguma, generalizar a situação. Mas não apenas com esses casos citados, muitos outros vieram à tona recentemente mostrando duas facetas do “corporativismo” dessa indústria: A faceta realista e não-glorificada. E a faceta hostil e predatória de contratos com grandes distribuidoras.
Contratos predatórios contra desenvolvedores pequenos
Há alguns dias, o site PC Gamer publicou um artigo interessante, que fala sobre um desenvolvedor indie que rejeitou um contrato de meio milhão de dólares.
Após os casos da Frogwares e da People Can Fly, esse artigo foi a peça que faltava para colocar luz sobre essa situação, mostrando que infelizmente ações predatórias como essas são práticas muito comuns na indústria dos video games.
Jakefriend_dev, que está desenvolvendo o game Scrabdackle, comentou sobre o caso em sua conta no Twitter, que é realmente surreal. Ele comentou que uma distribuidora o ofereceu um contrato de 500 mil dólares para a distribuição de um game. Porém, o contrato não traria absolutamente nenhum benefício a ele, mesmo com essa enorme quantia oferecida. Nem mesmo uma divisão de lucros de 50/50 ou sequer 60/40. Era 100/0 para a distribuidora, que ele se recusou a revelar o nome.
Hey #indiedev #gamedev, I turned down a pretty big publishing contract today for about half a million in total investment (I'm a solo dev). They genuinely wanted to work with me, but couldn't see what was exploitative about the terms. I'm not under an NDA, wanna talk about it? ? pic.twitter.com/h4mvP8Avbt
— jakefriend (@jakefriend_dev) August 13, 2021
O contrato dizia que, ele só seria pago após o game vender mais de 24 mil cópias e gerar um lucro de 250 mil dólares. Porém, qualquer problema legal ou qualquer quebra de contrato (mesmo que ambígua), significaria que a distribuidora teria o direito de tomar toda a IP para si, tendo total controle das vendas do game e efetivamente cancelando todos os royalties do desenvolvedor. E se a distribuidora quebrasse qualquer termo do contrato, nada aconteceria com eles.
E para piorar, como a distribuidora tomaria controle da IP, ela poderia controlar sua produção do jeito que bem entendesse, e as custas do desenvolvedor. Ou seja, Jakefriend ficaria sem os direitos do game que ele mesmo criou, sem pagamento, e devendo a mesma quantia do contrato para a distribuidora – 500 mil dólares, pois eles poderiam judicialmente exigir a devolução de qualquer valor pago antecipadamente.
E ainda não acabou! O contrato exigia a implementação de propagandas in-game e, se o desenvolvedor se recusasse, a distribuidora poderia contratar uma empresa de terceiros para fazer isso, também as custas de Jakefriend. Os pagamentos de royalties tinham um prazo de “até 30 dias após o fim do quadrimestre”, ou seja, mais de quatro meses para receber qualquer pagamento.
E se ele reclamasse na justiça que os pagamentos não estavam sendo feitos, nada aconteceria, pois o contrato protege a distribuidora de pagar quaisquer multas, inclusive de pagar o que deve legalmente a ele.
Em outras palavras, o contrato, de acordo com a descrição de Jakefriend, é quase como um sequestro. Com a assinatura dele, a distribuidora tiraria tudo dele, game, dinheiro, etc. E ele ainda ficaria devendo dinheiro a eles.
Ele conta que ao expor suas preocupações com essas várias cláusulas do contrato, representantes da distribuidora ficaram genuinamente surpresos. Como se não pudessem perceber o quão terrível era o contrato, e surpresos dele recusar um contrato daquele valor.
Após essa revelação, outros desenvolvedores vieram a público comentar situações parecidas. Incluindo gente de grande nome na indústria, como Paul Ehreth, que atualmente é designer chefe do game Control da Remedy. Comentando sobre um contrato que ele recusou, em que uma das cláusulas era permitir que a distribuidora literalmente investigasse os arredores de sua casa e/ou local de trabalho por 5 anos para garantir que o trabalho estava sendo feito.
I was once asked to sign an NDA which granted the company permission to “conduct regular searches of your premises to ensure compliance at any time for a period of 5 years.” I did not sign it.
— Paul Ehreth ? (@bacon_sanwich) August 14, 2021
Outro que se manifestou foi Jonathan Blow, criador de Braid e The Witness. Ele comentou que essa “surpresa” das distribuidoras quando um desenvolvedor não assina um contrato é mentira, pois eles sabem muito bem que esses contratos são predatórios. Ele comenta ainda que esses contratos só existem pois infelizmente muitos desenvolvedores independentes os assinam, por não saberem negociar.
The reason these contracts exist is because so many indies are bad at business and sign them.
— Jonathan Blow (@Jonathan_Blow) August 14, 2021
That said, the “we are shocked you won’t sign these terms” is a lie. They know how bad the terms are, they’re just playing dumb because most indies, presented with that response, sign.
Infelizmente casos assim não são incomuns e com toda a certeza são péssimos precedentes para quem almeja entrar no mundo do game design. Não é preciso mencionar que a assinatura de qualquer contrato exige muita leitura e interpretação, melhor ainda acompanhamento de um advogado para instruir os desenvolvedores a tomar a decisão que seja melhor para eles. Ainda assim, casos assim continuam a ocorrer.
Como os contratos são normalmente?
Antes de falar sobre como normalmente esses contratos são feitos, vale a pena entender o cenário de sua aplicabilidade, principalmente no cenário independente.
É indiscutível que o cenário indie floresce com mais poder e liberdade nos PCs, graças à própria Steam e a plataformas como a itch.io. Nos PCs os desenvolvedores possuem muitas opções de plataformas para publicarem seus games, podendo fazer esse trabalho por conta própria.
Na Steam, por exemplo, existia o programa Greenlight para a publicação de games independentes. Atualmente, esse programa foi desativado em favor da Steam Direct, um canal direto para que desenvolvedores publiquem seus games na plataforma, passando por alguns processos de validação de identidade, tarifas e análise feita pela Steam antes do game a ser publicado.
Já há muitos anos há uma grande discussão sobre as porcentagens de lucros cobrados pela Steam, permanecendo há anos em 70/30 em favor do desenvolvedor. Apesar dessa divisão ser o padrão na indústria, sempre houve rejeição a isso, que tem se intensificado muito mais nos dias de hoje, principalmente após a estratégia da Epic Games em cobrar somente 12% dos valores de venda, além é claro de sua enorme campanha de investimentos em estúdios independentes, que não só garantem exclusividade de seus games, como indiscutivelmente beneficiam muito esses desenvolvedores (porém tendo a característica de proibir que o game seja lançado na Steam por no mínimo 12 meses).
O caso da Steam contra a Epic é muito mais extenso e detalhado que isso, e vale lembrar que essa oferta para indies da Epic (De 12% de cobrança), apesar de ser aberta, não significa que os enormes investimentos na produção de um game serão para todos, como já ficou bem evidente, como no caso de Darq.
E fora desse cenário, há a existência de contratos de distribuição, cada um sendo único e partindo de uma grande gama de acordos, desde simples acordos de distribuição em plataformas, até investimentos na produção de um game indo até o pós-venda.
Há contratos, por exemplo, para levar algum título indie lançado independentemente nos PCs para os consoles. Parte do acordo está no trabalho de portar o game para diferentes sistemas, muitas vezes sendo algo que o desenvolvedor não consegue fazer sozinho, seja por não possuir dev kits ou não conhecer o funcionamento dessas plataformas.
E há aqueles contratos, como o de Outriders, que englobam todo o processo de criação. Normalmente esses contratos são como se fossem, falando de forma leiga, como uma encomenda. Um exemplo é a franquia Ratchet & Clank, ela foi criada e é produzida pela Insomniac Game, mas pertence à Sony.
De qualquer forma, e para não divagar ainda mais, um padrão nesses contratos é que eles são baseados em risco, sendo o mais óbvio o lucro possível de suas vendas.
Quando um contrato é firmado, o desenvolvedor permite que a distribuidora manipule a IP de acordo com suas regras estabelecidas (que DEVEM ser discutidas e revisadas antes de qualquer acordo), normalmente envolvendo os direitos de distribuição, contratação de outras empresas para criar ports e em alguns casos atualizações, marketing e etc.
Em alguns casos pode ou não haver divisão da posse da IP, com a distribuidora mantendo parte dos direitos. Esse ponto é extremamente delicado e precisa de atenção total de qualquer desenvolvedor. A propriedade intelectual permanecerá 100% sua ou haverá divisão? Esse é um ponto crucial que influencia muito na divisão de valores.
A verdade é que nenhuma distribuidora faz caridade. O mundo dos negócios funciona assim e sempre foi assim, ambos os lados precisam fazer dinheiro. Mas no caso de desenvolvedores e distribuidoras, a distribuidora é quem vem primeiro, justamente por ser aquela que lida diretamente com dinheiro, plataformas e etc. O dinheiro chegará primeiro para eles, para depois chegar nas mãos do desenvolvedor.
Em casos como o citado assim, as negociações partem da premissa que o desenvolvedor receberá uma quantia já decidida (como por exemplo os 500 mil citados), mas o lucro ficará com a distribuidora. A partir daí o desenvolvedor necessita de inteligência e aconselhamento. O pagamento de royalties vem mediante condições, ou “milestones”. Tendo um valor mínimo a ser atingido para que o investimento seja pago, para aí sim ser transformado em lucro.
O mesmo para o valor inicial acordado, ele é pago em parcelas, mediante milestones: lançamento da versão alpha, beta, versão final, lançamento, etc. Dessa forma, o desenvolvedor recebe o dinheiro a que tem direito de acordo com seu progresso.
Muitas vezes, o balanceamento desses contratos depende de concessões feitas pelo desenvolvedor para que possa receber mais. Como por exemplo a questão da propriedade intelectual, abrir mão de parte dela tende a gerar mais lucro ao desenvolvedor, mas ao custo de ter menos controle sobre sua própria criação. E até que ponto essa troca é realmente válida ou justa?
O mesmo ocorre no mundo da música. Um artista escreve uma letra, cria sua melodia e compõe a música. Porém, ela foi gravada dentro de uma gravadora, e a gravadora se apossa de 100% dos direitos de toda a música, da letra, da melodia e até da voz do artista que está gravada. Esse é um caso que infelizmente é normal nessa indústria e se repete constantemente (sendo uma das razões para as absurdas regras de copyright no Youtube, por exemplo).
Podemos até mesmo ampliar a discussão até grandes empresas comprando estúdios inteiros, como a Tencent e a Microsoft tem feito atualmente. Ao comprar esses estúdios, tudo dentro deles agora pertence a quem comprou, e essas companhias mães são quem passam a mandar em tudo.
Pense por exemplo no caso da própria Activision Blizzard, o estúdio que criou Diablo, Warcraft e tantos outros games não é mais um estúdio movido a paixão e desejo de criar games. Mas em custo-benefício, investimentos, médio e longo prazo. Além de estar sofrendo enormes processos por denúncias de assédios e abusos.
O mesmo com a Bungie, que pertencia à Microsoft, e não tem direitos sobre a série Halo, que eles criaram. E inclusive no caso de Destiny 2, que tinha tanta influência mercadológica da Activision que a Bungie tomou a decisão de se tornar independente e ir atrás dos direitos da IP.
É claro que o crescimento é um processo natural de qualquer negócio, inclusive no mundo dos games. Pode chegar um ponto em que ter tanto dinheiro pode significar ter que gastar mais dinheiro, o que leva a necessidade de ter que lucrar mais. E não estou ignorando ou deixando de lado a ganância corporativista ou o capitalismo selvagem. Mas, acontece. Os AAA não são assim por mero acaso.
Mas fica claro que no ambiente de salas de reuniões, papéis e canetas, nunca a briga é justa. Desenvolvedores criam seus games, os games que querem que todos possam jogar. Mas muitas vezes precisam de ajuda para que isso aconteça. E essa ajuda pode custar muito mais caro e ser o completo oposto do esperado, se faltar inteligência para quem tem a caneta na mão, e se houver pura malícia em quem oferece o papel a ser assinado.
O que fazer, então?
Mais uma vez, quero deixar claro que meu conhecimento prático sobre contratos é muito limitado. Distribuidoras não são demônios tentando oferecer um pacto em troca da alma do desenvolvedor. Apesar de não ter dados concretos para afirmar isso, acredito que há sim distribuidoras que são bastante amigáveis. Mas, às vezes é realmente ruim assim como nos casos citados. E é essa característica que não é uma exceção e definitivamente não é incomum que me motivou a escrever esse texto.
Seja você um desenvolvedor de games ou não. Seja você um criador solitário ou parte de um estúdio pequeno, médio ou grande. Tenha a inteligência para não cair em armadilhas. Usando até mesmo Dark Souls, uma de minhas franquias favoritas como exemplo, tenha cuidado com os Mímicos, os baús de tesouro suspeitosamente convidativos que podem acabar te devorando vivo.
Muitas vezes, por desespero ou desinformação, alguns podem não ter saída a não ser entrar em contratos predatórios, mas saiba que nunca a armadilha é perfeita, você pode e deve identificá-la. Não se trata de manter um pé atrás com todos, mas ter a sabedoria de ler, reler e pedir ajuda e aconselhamento quando preciso.
Todos os problemas da indústria dos video games estão muito bem expostos em nossa era. Abusos, assédios, racismo, misoginia e práticas escusas em negociações não são coisas pequenas e com toda a certeza estamos só vendo a ponta do iceberg. Mas as vítimas finalmente estão se levantando e mudanças estão acontecendo. E que elas não parem nem esfriem.
Muitas vezes as pessoas não tem a escolha de recusar uma proposta ruim, por diversos motivos. E infelizmente por ter pessoas que não tem escolha, ou por não prestarem atenção, é que muitos se aproveitam da situação. O que você pode fazer, e isso é realmente algo óbvio, é entender no que você pode estar se metendo. Leia, releia, se possível peça aconselhamento jurídico. Se não tiver condições para contratar um advogado, busque ajuda e conhecimento por outros meios amigáveis. Mas mantenha a sua integridade, a de sua empresa e a de seu trabalho.
Talvez essa seja uma das razões pela grande popularidade de campanhas de crowdfunding. Através delas, desenvolvedores independentes ou até estúdios grandes podem apresentar um conceito e pedir por investimentos diretamente do público para a criação de seus games. Muitas vezes esses investimentos podem até mesmo bancar custos de ports e de distribuição, permitindo que todo o projeto seja tocado internamente. Mas é claro que isso depende muito do quanto um projeto arrecada.
No fim, fica a lição de que contratos jamais darão 100% de benefícios ao desenvolvedor. E muitas cláusulas, apesar de parecerem ruins, infelizmente são o “normal”. Tudo depende do longo prazo, em como esse contrato beneficiará ambas as partes. E o quão íntegro é o contrato e as empresas que estão em processo de firmá-lo. Negociar é muito importante para que qualquer contrato seja o melhor que pode ser, mas que seja benéfico a todos, não só para um lado ou para outro.