Análise Arkade: o envolvente visual novel Psycho-Pass: Mandatory Happiness
Visual novels não são exatamente uma novidade no mercado. A grande comunidade que gira em torno de animes e produções audiovisuais orientais também cresce cada vez mais no ocidente, e o Brasil não fica fora disso, ainda que o mercado ainda possa ser considerado hoje, como algo mais marginal, visto que o primeiro não tem ainda o mesmo espaço midiático que tantos outros jogos e o segundo sofre para encontrar espaço dentro da grande mídia, mesmo em se tratando de TV fechada e, muitas vezes, produções voltadas a um público formado por jovens e adultos só chegam aqui por vias “alternativas”.
Contudo, mesmo com as barreiras e obstáculos, é cada vez mais comum encontrarmos produções que se destacam nesse meio. É o caso da franquia Psycho-Pass que se inicia em um anime de 22 episódios e que posteriormente migrou para as páginas dos mangás (caminho pouco ortodoxo, já que normalmente o que acontece é o contrário). Tudo isso entre 2012 e 2013. Nesse contexto, chega até nós Psycho-Pass: Mandatory Happiness, uma nova história dentro do universo contada por meio do estilo visual novel.
Para quem conhece pouco ou nunca ouviu falar desse gênero, é aquele focado em narrativas elaboradas, onde a participação do público se pauta em escolhas pontuais dentro de algumas opções oferecidas em momentos-chave da história. Ainda que possa parecer muito com as experiências interativas vistas em produtoras como a Telltale, a proposta da desenvolvedora 5pb acaba se distanciando um pouco em vários aspectos e nos faz levantar a velha (e ainda não respondida) questão: o que faz algo ser chamado — ou não — de jogo?
Bem, não vamos entrar em questões conceituais e etimológicas (pelo menos não nesse texto), mas a análise aqui tem como pretensão encontrar o equilíbrio sobre a experiência oferecida por Mandatory Happiness, que certamente é um produto que não deverá agradar o grande público. Mais do que o ‘como jogar’, buscamos o caminho de como experimentar a proposta da desenvolvedora, principalmente em se tratando de um produto derivado de algo mais amplo.
Contando uma boa história
Em termos narrativos, Psycho-Pass trata de um mundo futuro onde se tornou possível criar instrumentos que podem estabelecer um tipo de coeficiente criminal de cada indivíduo, que estabelece o potencial para a prática de crimes, possibilitando, em tese, prevenir ações antes mesmo que elas possam acontecer. Sim, certamente, a relação com o filme Minority Report acaba se tornando quase inevitável. A diferença principal do jogo está na previsão de possíveis criminosos e não de prováveis crimes como no cinema. Isso faz uma grande diferença e explico mais o porquê.
Esse tal coeficiente criminal não é um valor absoluto, já que pode variar com o tempo. A cada nova varredura feita no sujeito, essa informação irá compor o tal psycho-pass dele. Quando ultrapassa um certo limite em qualquer um dos escaneamentos, ele normalmente deverá ser detido e encaminhado a um acompanhamento psicológico para fazer o tratamento. Há um outro teto, porém, onde se avalia que nenhuma forma de contenção será efetiva e o elemento, portanto, deve ser eliminado sumariamente. Simples assim.
Ou seja, uma pessoa que passa por um evento traumático e que acaba chegando em seu limite pode deixar de ser uma vítima para um criminoso perigoso em potencial e que o sistema julga uma ameaça latente. Seja escaneado em um momento de raiva ou de frustração, portanto, e corra o risco de ser considerado perigoso para a sociedade e condenado a morte. Aí está a bifurcação moral que os humanos passam dentro deste universo onde o sistema artificial define quem merece ou não viver.
Nesse contexto, somos apresentados a um departamento de investigação que cuida do sistema Sybil, este que estabelece quem é apto a vida em sociedade e quem não é, com uma equipe que é formada por alguns dos melhores recrutas do sistema policial desse universo, os Enforcers e também por pessoas com nível alto de probabilidade criminosa, chamados cães-de-caça. A princípio, sua função é ajudar no reconhecimento e na captura de outras pessoas como eles.
Tudo é apresentado aos poucos durante o desenvolvimento narrativo de Psycho-Pass: Mandatory Happiness, já que é um pouco complexo de se entender as nuances dessa sociedade e de sua organização civil. Por curiosidade, tudo fica muito mais claro e é apresentado muito mais rapidamente no primeiro episódio do anime. Ou seja, ainda que não seja obrigatório, ter visto ao menos alguns episódios iniciais da série ajuda bastante a entrar no universo do jogo. Não é a toa que a edição física dá acesso a dois episódios, para ajudar.
Isso porque em Mandatory Happiness, há a preocupação maior em estabelecer o próprio protagonista, personagem original criado especificamente para isso. A princípio, você escolhe entre duas opções e todo o resto segue a partir do ponto de vista dele. Para essa análise, o personagem escolhido busca encontrar uma amiga de infância que, por força do próprio sistema que determinou que ela teria uma carreira completamente diferente da dele, acaba se distanciando até sumir de vez.
Tudo isso, inclusive, influencia na forma como o jogo espera que você absorva algumas informações em relação a outras. Personagens secundários, por exemplo, são apresentados de uma única vez, dificultando muito a imediata diferenciação entre eles. Na maioria dos casos, eles também estão presentes no anime, o que mostra que o jogo não prevê gastar tempo demais na construção deles. Mais um indicativo que assistir os episódios antes do jogo ajuda bastante na imersão.
Assim, o herói da história entra no CID — em tradução livre, Departamento de Investigações Criminais — com um objetivo pessoal e a narrativa se desenvolve em torno da resolução dos diferentes casos, que vão desde o sequestro de uma adolescente até outros um pouco mais pesados e, enquanto isso, se desenvolve melhor a jornada do protagonista em sua busca íntima a partir dos recursos dos quais dispõe pela sua posição privilegiada. A trama vai ganhando algumas novas camadas ao estabelecer ligações entre os diferentes casos investigados, mas o grande mistério, de fato, vem dos dilemas pessoais que o jogador enfrentará na pele de seu personagem.
De posse da Dominator, a arma que é capaz de fazer a medição do coeficiente criminal e decidir se ele deve ser somente paralisado e capturado ou de fato eliminado, fica a questão ideológica latente para o jogador o tempo todo, ainda que menos evidente que na animação: é possível, como já vimos nos quadrinhos e no cinema com o Juiz, ter o poder de acusar, julgar e executar a sentença antes mesmo de um crime ser consumado? Talvez seja nessas escolhas que realmente importam onde a franquia encontre seu verdadeiro potencial.
Participando – mas nem tanto – dos rumos da narrativa
Quem conhece o gênero não encontrará aqui nenhuma grande surpresa em termos de jogabilidade. Na verdade, o próprio termo acaba se tornando um pouco confuso, como dito logo no começo desse texto. A participação do jogador aqui se torna muito mais reativa do que interativa de fato, já que são poucos os momentos onde realmente há uma ação direta. Nesses pontos de encruzilhada narrativa, se apresentam opções que mais representam caminhos do que escolhas morais.
Diferentemente de outros formatos, não se pode escolher opções de diálogo que moldam o caráter, a personalidade ou mesmo as relações com outros personagens. Não há como ser simpático ou não com um personagem em detrimento a outro, por exemplo. Em alguns momentos, o jogador tem a chance de concordar ou discordar indiretamente ao decidir acompanhar um ou outro, ou pedir a ajuda de alguém em específico. Há, portanto, até um caminho indireto na construção das relações, mas nada que molde o protagonista, e sim sua rota dentro do contexto.
É basicamente assim que se relaciona com o jogo. Em termos práticos, se assiste muito, muito mais do que se joga. O nível de interação, portanto, é quase que 100% cognitivo, ao buscar compreender a trama, alguns pequenos detalhes de personalidade, para se fazer escolhas adequadas nas poucas chances que se terá. E, nos intervalos entre uma jornada e outra, o jogador poderá matar a vontade de interagir mais ao acessar o extra do jogo, uma versão temática do já clássico puzzle 2048.
Audiovisual
Se não há um grande atrativo em termos de jogabilidade, uma experiência como essa tem dois pilares onde depositar toda a confiança: a história e a apresentação estética. No primeiro caso, já vimos que herdou um background bastante instigante e complexo do universo onde se localiza e que se preocupa bastante com a profundidade do personagem, suas motivações e ações, estabelecendo um ambiente seguro onde a narrativa irá se desenvolver. O segundo, todavia, é um pouco mais problemático.
Ao apostar em bastante texto descritivo e diálogos longos e bem estruturados, como o próprio termo visual novel pressupõe, tanto imagem como som são responsáveis por trazer o jogador para aquele ambiente, dando-lhe suporte para uma imersão mais agradável e efetiva. Em Psycho-Pass: Mandatory Happiness, é possível encontrar alguns deslizes, ainda que o resultado final seja bastante agradável e apropriado. Em suma, a apresentação artística cumpre o seu papel, mas não consegue se destacar.
Ainda que haja evidentemente algumas exceções, a maior parte do tempo de tela é composto por um plano de fundo do ambiente (um hospital, uma biblioteca, um carro, a delegacia, etc.) e uma segunda camada onde os personagens – incluindo o próprio protagonista – ficam de frente para a tela, falando. Em termos de animação, há transições e movimentos de sincronia labial, mas é tudo muito estático e sem muito movimento. Em pelo menos 3/4 do tempo, a composição da tela é essa abaixo:
Os personagens, sobretudo os que também já estavam presentes em mídias anteriores, conseguem manter uma qualidade de design visual muito boa, ainda que não fujam da estética padrão da arte ilustrativa oriental. Não há grandes surpresas nesse sentido. Depois da descarga de informação inicial, aos poucos fica mais fácil reconhecer cada personagem e sua função narrativa. As vozes são adequadas, por mais que pareçam genéricas em um primeiro momento.
O que destoa de fato é a composição de ambiente, que acaba se tornando um pouco repetitiva e em muitos momentos age de forma contrária à ação. Há por exemplo momentos de adrenalina e perseguição que se utiliza da mesma ilustração estática usada para trechos calmos e de diálogo longo. Isso fica mais evidente em trechos de clímax, onde o plano de fundo destoa da ação, das vozes e até do drama embutido no texto. O som acompanha as limitações da imagem, sendo relegado a fazer figuração para ambiência. Não se destaca em momento algum.
Conclusão
Não há dúvidas que, dentro do escopo dos visual novels, Psycho-Pass: Mandatory Happiness consegue trazer uma história atraente e que consegue dialogar com um jogador/espectador mais maduro do que os poucos produtos audiovisuais orientais que chegam ao grande público. Tem uma narrativa densa e muito bem estabelecida, inclusive pelas outras mídias onde a franquia esteve em momentos anteriores e é bastante aconselhável que se conheça tudo isso para se aproveitar o jogo ao máximo do seu potencial.
Certamente, não é um produto que vá alcançar muita gente no ocidente. Não pelos pequenos problemas estéticos relatados aqui, algo que não é diferente do que o mercado apresenta hoje, mas principalmente pelo estilo que traz muita leitura e pouca ação efetiva do jogador nas escolhas e caminhos. Ainda que seu estilo detetivesco possa agregar um público diferente, é no nicho que até alguns anos atrás corria atrás de versões traduzidas extra-oficialmente onde encontrará o seu espaço. Uma pena ainda as distribuidoras não terem olhos para o mercado sul-americano em termos de localização, já que muita coisa faz mais sucesso em países latinos do que em origem anglo-saxã.
Psycho-Pass: Mandatory Happiness trata de questões éticas de uma forma muito mais profunda que um filme de censura livre com Tom Cruise e consegue criar nuances morais que pouco se viu em jogos — ou histórias interativas, se assim desejar — e é recomendado tanto para fãs do gênero dos visual novels, como para quem aprecia uma boa trama investigativa e até para quem quer experimentar algo diferente dos jogos mais tradicionais.
O game pode ser encontrado tanto para Playstation 4 e PS Vita como para XBox One e está previsto para PCs (via Steam) para 2017.