Análise Arkade – Fury Unleashed é a mistura perfeita entre roguelike e HQs
Pensa em um ótimo game, com um trabalho artístico muito bem realizado e que consegue transportar para as telas uma experiência de histórias em quadrinhos revigorante… lembrou de Comix Zone (1995, Mega Drive), certo? Justo, já que talvez seja o maior expoente de uma descrição assim. Mas posso dizer sem medo de errar que Fury Unleashed, da Awesome Games Studio, tem tudo para cavar ser espaço também.
Estética de HQ, história sobre HQ
Metalinguagem: uma ferramenta poderosíssima (quando bem utilizada) nas mãos de bons artistas. No caso desse game, é uma metalinguagem meio torta, com crise de identidade, mas ainda assim, muito bem feita. No jogo, somos apresentados a John Kowalsky, autor em crise, que se vê não só com a incapacidade de criar novas histórias, como também percebe que suas criações passadas já não estão tão equilibradas assim. Cabe a seus heróis do passado assumirem a responsabilidade para si e tirá-lo desse buraco criativo.
Então sim, o game se trata de um quadrinista, mas são seus personagens – divertidamente customizáveis – que deverão percorrer suas criações em busca de respostas. São 4 cenários, 3 deles em criações já finalizadas: Awakening of the Ancient Gods; Operation Crinson Dusk e Earth’s Last Stand; e uma última que preferimos não revelar muitos detalhes para não entregar surpresas, mas que ainda está por ser finalizado. Cada uma dessas HQs principais é composta por 3 fases tão tradicionais quanto a própria história dos jogos, com o chefão no final.
Contudo, a organização destas fases não é tão convencional assim. Os dois primeiros níveis de cada mundo são gerados proceduralmente, o que significa que a cada novo retorno (e acredite, você deverá retornar algumas muitas vezes) seu leiaute está diferente. O level design, tal como o roguelike que é, está pautado em ambientes com inimigos, armadilhas e obstáculos, porém poucos puzzles ou momentos de plataforma mais elaborados.
Vencer esses níveis ajuda a liberar uma parte nova da história, revela novos pensamentos do autor e traz camadas para além do clichê de cada universo abordado. A proposta narrativa de Fury Unleashed não é a de contornar as convenções da sétima arte (ou dos games de ação), mas sim se apropriar delas enquanto parte da experiência. Então, sim, há entidades, nazistas e alienígenas para se enfrentar, mas são parte do caminho, não o plot em si.
O jogo funciona de duas formas: durante a passagem, é sim um game de ação contra os mais clássicos inimigos da ficção. Mas na camada narrativa, está falando de outras outras, utilizando outros símbolos. Afinal, um autor atormentado pelos próprios monstros não é algo realmente inovador, mas certamente traz uma percepção nova sempre que brinca com o conceito da realidade, do que está nas páginas, do que está na mente, e do papel, claro, que seus protagonistas desempenham nisso tudo.
Atire no que se mexer!
Quando toda a contextualização nos leva ao jogo em si, a ação começa, e funciona. Temos um roguelike dos mais clássicos, que mais parece uma versão vertical de Metal Slug. Tiros para todos os lados, inimigos aos montes e a necessidade de precisão e paciência. Uma jogabilidade fluida e absolutamente viciante, sem enroscos ou frescuras. Aqui, os desenvolvedores não mostraram amarras, e temos um dos jogos mais dinâmicos dos últimos tempos. Mortes serão constantes, mas nada de culpar o jogo que dificultou um salto ou coisa parecida. O erro é seu, e o jogo até tenta ajudar.
Como dito, Fury Unleashed não tem nenhuma preocupação em exigir saltos mirabolantes, ou timing perfeito em suas armadilhas. Claro, essas questões existem e tem seu nível de dificuldade, sobretudo quando combinadas com inimigos por todos os lados, mas são muito mais parte da composição dos ambientes do que um desafio em si. Portanto, não espere ficar travado porque não consegue subir em algo ou atravessar uma armadilha. O problema é quem (ou o quê) está esperando em cada canto, em cada pedacinho de chão.
Temos ainda um armamento bastante plural, com as básicas pistolas sendo só o ponto de partida. Com dois slots para armas, é possível coletar e compor seu arsenal de acordo com suas preferências (e um pouquinho de sorte também). É bastante comum buscar o equilíbrio entre uma arma mais ágil e outra mais pesada, mas não é uma regra. O mais importante aqui é saber lidar com as que surgem e como compensar uma possível defasagem quando tiver que comprar um item extra.
Explico melhor: cada fase tem seus baús com itens aleatórios: armas, pedaços de armaduras, itens de melhoria, poções, etc. E há também certos mercadores – o diabo é um deles, aliás – que vão oferecer equipamentos em troca de alguma coisa: orbs, dinheiro ou até sangue. São itens em diferentes níveis de raridade, e obviamente cada um tem seus custos. Mas é melhor não se apegar demais, porque em uma nova iteração, tudo começa zerado, salvo as habilidades que se desbloqueia com experiência entre uma investida e outra.
E mesmo que sejamos os melhores jogadores do universo e consigamos, logo de cara, chegar ao fim do jogo (não é o meu caso e se for o seu, parabéns), estaremos longe de ver tudo o que é possível no game. A campanha, no resumo, é curta, algo que em uma hora se termina. Mas é convidativa para se retornar muitas vezes, de várias formas. O fator replay é dos mais interessantes que já vi. E isso tem a ver com os chefes e sub-chefes do jogo.
Em resumo, temos alguns sub-chefes ao longo da jogatina, que podem inclusive ser evitados em alguns casos (com uma estrutura de caminhos possíveis, nem sempre o sub-chefe está no traçado obrigatório). Mas há vários deles em cada mundo, e nunca se encontra com todos os possíveis na jornada. Então você pode terminar o jogo sem encontrar todos os sub-chefes, e quem sabe, sem cruzar com nenhum deles. Se temos um total de 40 deles no jogo, imagine quantas vezes é possível voltar ao início e ainda se surpreender.
Os chefes principais são ainda melhores nesse aspecto. Cada mundo tem 3 possibilidades, e em cada campanha, se enfrenta um deles. Em outras palavras, na melhor das hipóteses, é necessário terminar 3 vezes o mundo para ter vencido todos os chefes possíveis. Multiplique isso por 3 mundos, e pronto, você vai zerar Fury Unleashed muitas e muitas vezes, sempre enfrentando inimigos diferentes. Principalmente porque só é possível começar pelo segundo mundo quando se derrotou os 3 chefões do anterior, então incentivos para o retorno não faltam.
Não há dúvidas que, mesmo na sua dificuldade padrão, é um jogo desafiador e intenso, algo que vai agradar os fãs de games como Contra e similares da geração 16 bits. Morrer significa voltar do princípio, do primeiro inimigo, com a primeira arma padrão. Mas significa também saber como lidar com as dificuldades, mesmo que nunca mais se encontre a mesma situação que significou a morte minutos antes. Para quem é ainda quer ir além, há níveis mais pesados de dificuldade. Para os casuais, há também um nível fácil que pode ser menos irritante para se curtir a história numa boa, naquele domingo preguiçoso. O jogo, portanto, parece comportar diferentes expectativas, e atendê-las a contento.
Fury Unleashed é, deste modo, um jogo para se retornar várias e várias vezes. Não só para poder ver tudo o que o game oferece, mas porque o sistema de progressão valoriza isso. Abrir a árvore de habilidades a cada nova investida significa retornar, sim, do começo, mas sempre um pouco melhor. Soma-se a aprendizagem pelo fracasso com o incentivo pela melhoria. A repetição pode se tornar, em algum momento, cansativa. Mas, confesso, esse momento para mim está longe de chegar.
História sobre HQ, estética de HQ
Quando falamos de histórias em quadrinhos (ou gibis, para quem gosta de entregar a idade), normalmente a primeira coisa que vem a cabeça são os super-heróis da DC e da Marvel. Nada mais natural, dada a mídia que esse gênero sempre teve, ainda mais nos últimos anos. Fury Unleashed não se encaixa bem nessa categoria, mas é evidente que permite aproximações estéticas com ela. Ainda assim, há referências outras mais fáceis de se identificar na construção estética do game, incluindo o já citado Metal Slug.
Aqui, falar de um visual mais cartunesco é tão óbvio quanto obrigatório. Cores vivas, personagens expressivos, traços bem definidos, e a espacialidade 2D são parte inerente da obra. Não espere, contudo, que o game se mantenha purista a outras produções noventistas no mesmo estilo. São gráficos de alta resolução, onomatopeias, animações muito suaves, tipografia que abusa do limite de quantas fontes diferentes podem ser utilizadas ao mesmo tempo e colorização típica das tecnologias digitais mais atuais.
A banda sonora, por sua vez, não fica atrás. Com batidas muito adequadas para cada um dos mundos – dos sons mais tribais do primeiro ao mais eletrônico do último – e uma trilha principal viciante, composta por Adam Skorupa e Krzysztof Wierzynkiewicz (ainda bem que não precisarei nunca pronunciar esses nomes) – o game oferece uma ambientação dinâmica, empolgante, envolvente. Efeitos dos tiros se somam a outros mais sutis e, de novo, temos uma convergência muito equilibrada entre referências e estilo.
O grande mérito audiovisual de Fury Unleashed é saber reverenciar aquilo que está homenageando – as boas e descomplicadas histórias em quadrinhos de ação – sem se prender aos limites da mídia. O jogo utiliza o que de melhor pode extrair dela, inclusive em termos narrativos, e cria algo novo, que também encontra no gênero de ação roguelike tão tradicional (e as vezes, desgastado) dos games para uma experiência muito autêntica, divertida e viciante. Até por ser um jogo pequeno no disco rígido, é daqueles para se manter instalado pra sempre e assim voltar sempre que sentir saudades.
Conclusão
Fury Unleashed é um verdadeiro roguelike com fortes bases estéticas e narrativas nos quadrinhos de ação. Uma aventura surpreendente e equilibrada, com fluidez, conteúdo, desafio e diversão como poucos jogos, mesmo os de grande orçamento, conseguem fazer. Mesmo com uma campanha relativamente curta, sabe como seduzir o jogador e oferecer um motivo a mais para voltar, recarregar as armas e enfrentar tudo mais uma vez.
Sim, você irá morrer várias e várias vezes, muitas delas mesmo depois de ter economizado tanta vida e perdido em 3 segundos de bobeira, mas faz parte da experiência. Aprender com os erros e, ao mesmo tempo, melhorar o personagem para voltar mais forte é tudo o que se precisa para ir até o fim. Fica, claro, aquele gosto de “quero mais mundos” ao final da jornada, mas não falta conteúdo de forma alguma. Fases diferentes a cada retorno e chefes aleatórios sempre darão um frescor a cada nova investida. E quem sabe esse quadrinista perturbado sai da crise e nos traz novas histórias para curtir no futuro…
Fury Unleashed está disponível para Playstation 4 (versão esta cedida gentilmente pela distribuidora e utilizada para a análise), PC, XBox One e Nintendo Switch. Infelizmente, o jogo não conta com textos em português.