Análise Arkade: Marvel’s Avengers – o capitalismo venceu os Vingadores
Antes tarde do que nunca, chega nossa análise completa de Marvel’s Avengers, o jogo dos Vingadores que causou polêmicas, e comprova que nem os maiores heróis do mundo podem vencer o capitalismo!
Contextualizando…
Só para constar: gostaria de lembrar que, para compensar o atraso desta análise completa, temos um preview detalhado do game, com base no que pudemos testar durante a fase beta. Um pouco do que eu disser aqui, já foi dito lá, então, recomendo que dê uma lida.
Bom, recado dado, vamos lá: ao longo da última década, vimos a Marvel se consolidar em Hollywood e nos apresentar alguns dos melhores filmes de super-heróis já produzidos. Os heróis da empresa dominaram a cultura pop nos últimos anos, especialmente os Vingadores, que encerraram com chave de ouro uma grande epopeia cinematográfica que se espalhou por mais de 20 filmes, em um grandioso universo compartilhado (e interconectado) como nunca se viu nos cinemas.
Curiosamente, o sucesso dos personagens nas telonas não foi capitalizado no mundo dos games. Ok, tivemos jogos tipo Lego Avengers e um novo Marvel Vs. Capcom, mas estava faltando aquele jogo grandioso, cinematográfico, o legítimo Triple A que enche os olhos da gente.
Pois bem Marvel’s Avengers até tem um pouco disso… mas o que poderia — merecia, na verdade — ser uma experiência memorável afunda em um jogo repetitivo, com toneladas de loot e um sistema de monetização que beira o ridículo.
A tragédia do Dia A
O início de Marvel’s Avengers é incrível. Ele nos apresenta a uma jovem e deslumbrada Kamala Khan que está tendo o melhor dia da sua vida, ao participar de uma grande celebração aos Vingadores, que estão para anunciar uma nova fonte de energia revolucionária — o Terrigen.
Kamala está entre as finalistas de um concurso de fanfics (?!) dos heróis, em um evento cheio de atividades bacanas que parece um grande parque de diversões em homenagem aos Vingadores. Ela representa milhões de fãs reais pelo mundo, e suas primeiras interações com seus heróis são maravilhosas (destaque para o encontro dela com o Thor). A simples e bela relação de Kamala com seu pai é muito bem construída nos primeiros minutos da história.
Infelizmente, o que deveria ser um dia de festa e celebração torna-se um pesadelo quando o Quimera — a nova aeronave dos Avengers, movida por Terrigen — sofre um atentado. Enquanto os heróis estão ocupados enfrentando Taskmaster e seus capangas na famosa ponte Golden Gate, o gerador do Quimera explode, derrubando a aeronave e (supostamente) matando o Capitão América. Os Avengers levam a culpa, são tidos como perigosos, e isso literalmente acaba com o grupo.
Cinco anos depois, o mundo ainda sofre com os efeitos colaterais do Dia A: a radiação do Terrigen matou muita gente, mas também deu superpoderes (ou causou mutações) em uma parte dos afetados. Kamala está entre os afetados — chamados Inumanos –, e seu corpo agora é super elástico e pode mudar de tamanho.
Sempre fanática pelos Avengers, Kamala acaba descobrindo evidências que indicam que o fatídico Dia A não ocorreu como todos pensam. Ela então parte em uma jornada para reunir os Vingadores, que precisarão de todo seu poder para enfrentar as máquinas da AIM, uma corporação bélica que “assumiu o controle” dos EUA na ausência dos heróis.
É uma história com bastante potencial, que tem a maior pinta de uma grande saga nos quadrinhos, e poderia quem sabe render um bom filme dos heróis. Colocar a novata Kamala como protagonista foi um baita acerto narrativo, pois a garota esbanja carisma e personalidade. E o melhor: ela não tira o brilho dos Vingadores mais famosos, e ao longo da campanha vamos reencontrar (e controlar) o Hulk, o Iron Man, o Thor, e por aí vai.
Uma mistura inconstante
O menu incial de Marvel’s Avengers deixa claro que existe uma campanha principal, com foco na história, e uma tal de Iniciativa Avengers, que corresponde ao conteúdo pós-game, focado em missões cooperativas e coleta de loot.
Em partes isso é até verdade, e há momentos da campanha — fases mais lineares, pensadas na experiência single player — que são sensacionais. Todo aquele já famoso trecho na ponte Golden Gate, nosso primeiro encontro com um Tony Stark desequipado e menos egocêntrico… tudo isso é muito legal, e corresponde aos pontos altos da campanha.
Os problemas começam quando ganhamos acesso à Mesa de Estratégia/War Table. É aí que o jogo começa a trazer missões genéricas cooperativas, que em muitos aspectos lembram os piores momentos de Destiny: vague por um mapa grande, defenda uma estrutura por alguns minutos (enquanto hordas de inimigos atacam), assuma o controle de pontos de interesse espalhados pelo cenário, e por aí vai.
Esse tipo de conteúdo — que deveria estar restrito ao pós-game — invade a campanha sem cerimônias. Ainda que seja possível evitar boa parte deles e focar-se nas missões principais, esse tipo de fase está lá para “engrossar” uma campanha que merecia ser maior — e melhor.
Sem contar que, se resolver ignorar as missões cooperativas, evoluir seu time de maneira uniforme torna-se um problema, visto que vamos angariando os personagens ao longo da campanha. Assim, quando o Thor chega, bem pra lá da segunda metade da história, ele está no level 1, enquanto sua Kamala provavelmente já vai estar acima do level 10. Se quiser upar todos de maneira uniforme, dá-lhe grinding e repetição de fases… ou você pode usar o macete da sala de treinamento.
Pancadaria formulaica
Refazer fases para “grindar” não seria um problema se o gameplay de Marvel’s Avengers fosse bom… mas ele não é lá essas coisas. Na prática o que temos aqui é um beat ‘em up bastante simples, com combinações pouco inspiradas de botões e habilidades especiais que são o que dão um tempero extra para cada herói.
Mecanicamente, os combos lembram a antiga série God of War, com algumas variações de combos acionadas por diferentes combinações de quadrado e triângulo (no PS4). Todos os personagens também possuem algum tipo de ataque à distância, que pode tanto ser um soco elástico da Kamala, um tiro de repulsor do Iron Man, ou mesmo um arremesso de pedra gigante com o Hulk.
Não me entenda mal, o gameplay funciona… ele só não é divertido, não é gostoso de jogar. É tudo muito básico, sem criatividade. Tirando o fato de que alguns personagens voam e outros não, não há grandes diferenças entre jogar com o Hulk ou com a Viúva Negra. As mecânicas são essencialmente as mesmas, o que muda é só “a skin” do personagem e as animações dos golpes.
Como o jogo tem esse lado “game as a service”, com infinitas missões e toneladas de loot, o que deveria sustentar a experiência seria o gameplay… mas quando ele é chato e formulaico, fica difícil não acabar entediado após destruir pela enésima vez os mesmos tipos de inimigos. Eventos cíclicos como as Zonas de Guerra premiam o jogador com loot de melhor qualidade — mediante o cumprimento de certos desafios, tipo “matar 15 inimigos com tal ataque” e outras coisas genéricas.
Destiny também sofria disso, mas com uma diferença crucial: o gameplay dele é maravilhoso, macio, responsivo e bem calibrado. Sem dúvida um dos melhores FPS para consoles. O primeiro Destiny foi um dos games que mais joguei nessa geração, e era sagrado eu me reunir todas as noites com 2 amigos para cumprir contratos, assaltos e desafios do tipo. Era repetitivo? Sem dúvida. Mas o gameplay era bom!
A busca pelo loot (holográfico)
Esse lado mais capitalista do jogo é agravado por um dos sistemas de loot mais sem graça dos últimos tempos. Em jogos como Borderlands ou mesmo Destiny, coletar loot torna-se viciante porque isso muda o visual do seu personagem, lhe concede armas diferentes e mais poderosas… você vê (e sente) a diferença daquele novo equipamento.
Em Marvel’s Avengers, não há nada disso. Para começar, os equipamentos coletáveis alteram apenas o poder do personagem (e podem conceder buffs elementais), mas não mudam a aparência dele. É como se o loot fosse “holográfico”, você equipa ele no seu herói, mas não pode vê-lo de fato. Em alguns casos, isso faria sentido, se não fosse ridículo: no Hulk, é como se estivéssemos alterando a estrutura óssea dele!
Para piorar, sem um grande sistema de combate, não é como se você se sentisse de fato mais poderoso. A mudança mais perceptível é que o numerinho que salta para indicar o dano dos seus golpes vai passar a mostrar um valor mais alto… Você está causando mais dano, mas não há o feeling desse poder, nem uma grande recompensa por isso — nem mesmo visual.
Como em Destiny, os acessórios possuem diferentes níveis de raridade divididos por cores. E, também como em Destiny, além de centenas de baús espalhados pelas fases, aqui existem Facções, que lhe passam objetivos secundários. Cumpri-los aumenta o seu nível com aquela Facção… o que lhe permite comprar mais peças de loot “holográfico” daquela turma. Gente, são os Vingadores, não um bando de caçadores de recompensas! Esse lance de Facções nem faz sentido, pra começo de conversa.
Bom, mas voltando ao loot holográfico: talvez isso seja uma questão contratual — a Marvel pode não querer que acessórios alterem o visual de seus heróis –, mas não deixa de ser algo bizarro, que tira boa parte do apelo de um jogo baseado em loot. Mas, se é mudar o visual dos personagens que você quer, prepare-se, pois a coisa piora!
O capitalismo vence no final
Como tem todo o lado multiplayer, Marvel’s Avengers é um jogo que lhe permite customizar o visual do seu herói, com uniformes e emotes que vão fazer o seu personagem se diferenciar dos demais jogadores. E alguns destes trajes são realmente legais, saídos diretos das páginas dos quadrinhos.
O problema é que você precisa pagar por eles. Você pode pagar com tempo, ou com dinheiro, a escolha é sua. Todo personagem tem um Challenge Card, com desafios específicos que, quando cumpridos, sobem o nível do cartão e lhe rendem créditos. Estes créditos são o que se usa para comprar as roupinhas mais legais.
A questão é que cumprir todos os objetivos demanda muuuito tempo, e dá uma recompensa pífia que te permite comprar, no máximo, um traje novo — que custa 1400 créditos. A loja in-game vende “packs” de créditos por preços bem inflacionados. Um pacote de 2 mil créditos, por exemplo (que te permite comprar basicamente um traje e ficar com um troco) custa mais de R$ 80 na PSN brasileira! É como se CADA uniforme do jogo custasse cerca de R$ 60! Os emotes mais legais custam 1 mil créditos — algo em torno de R$ 40, em conversão direta da moeda do jogo para a real.
E sabe o que é pior: eles sabem que você quer ter, pelo menos, o visual clássico dos heróis. Então, o Thor que você libera na campanha não usa o traje tradicional do personagem, ele chega de jeans e camiseta. Quer aquela armadura maneira do início do jogo? Só comprando.
O Hulk é a mesma coisa: o visual padrão dele (que desbloqueamos automaticamente) é uma versão barbuda, com o corpo cheio de “hematomas”. Não é o Hulk que a gente conhece. Se quiser o bom e velho Hulk todo verde, sem barba de shorts roxo, vai ter que pagar — com dinheiro ou tempo.
Sendo justo, cada herói possui uma trilha de missões na campanha que libera um traje lendário. Mas, boa parte dessas missões envolve grinding: para encará-las você precisa de tempo e determinação para subir seu nível de poder através de level ups e equipamentos mais poderosos. E como eu já disse, a repetição até não seria um problema se o gameplay fosse bom… mas ele simplesmente não é tudo isso.
Esse tipo de microtransação é meio que normal em jogos free-to-play, e nesses casos a gente até releva: o jogo foi de graça, então tudo bem ter que pagar por uma roupinha maneira. Mas esse não é o caso aqui: Marvel’s Avengers custa salgados R$ 250 reais em sua versão mais básica. Colocar esse volume obsceno de transações em um jogo deste porte é sinal de que o bom senso simplesmente saiu de cena, e deu lugar à ganância.
Ok, você não PRECISA gastar dinheiro nenhum se não quiser, mas colocar preços tão altos em trajes — algo que jogos como Marvel’s Spider-Man te dão aos montes enquanto você joga — é uma prática abusiva ao extremo. E, é aquilo: o Thor de calça jeans e camiseta nunca vai ser tão legal quanto o Thor de armadura (e há varias armaduras diferentes do Deus do Trovão no jogo… todas bem caras).
Audiovisual
Eis aqui um ponto que causou preocupação logo que o jogo foi apresentado, mas que no fim das contas acabou ficando bom. O visual do jogo é incrível, e conta com cutscenes super detalhadas, suporte a HDR e ótimos efeitos de iluminação. O design dos personagens está muito melhor resolvido — afastando-se deliberadamente da “cara” dos atores do MCU e criando algo que funciona em seu próprio caminho.
A qualidade das dublagens também é de primeira. Se em inglês o jogo conta com grandes nomes da indústria — como Troy Baker e Nolan North –, a dublagem brazuca não deixa a desejar em nada, trazendo inclusive os atores que deram voz ao MCU para reprisar seus respectivos papéis. Marvel’s Avengers sem dúvida fica ao lado de The Last of Us Part 2 como uma das melhores dublagens brasileiras desta geração.
Ao mesmo tempo em que se afasta dos filmes, o jogo tem uma vibe cinematográfica que combina com este tipo de história. E, é fácil identificar certos barulhinhos (como os repulsores do Iron Man sendo carregados) que fazem parte do rol de efeitos que aprendemos a reconhecer depois de anos acompanhando estes heróis no cinema.
Por fim, uma questão que eu esperava que tivesse sido melhorada do beta para cá não foi: Marvel’s Avengers “judia” do PS4 Pro. Roda bem estável no geral, mas deixa o console com a “turbina” ligada no máximo o tempo todo, fazendo bastante barulho — tanto no modo 4K quanto no modo Desempenho. Não sei como ele em roda em outras plataformas, mas se o PS4 Pro já parece que vai sair voando, nem imagino como as versões inferiores dos atuais consoles se comportam.
Conclusão
No fim das contas, Marvel’s Avengers decepciona. E o pior: o início dele é tão legal ,que acaba elevando as expectativas da gente. Mas, quanto mais jogamos, mais ele vai mostrando sua verdadeira face, e as promissoras fases lineares vão dando lugar para missões cooperativas genéricas e pela infindável busca por um loot “invisível” que, na prática, só muda o numerinho que salta dos seus golpes.
Eu não faço ideia de como foi o desenvolvimento deste jogo — lembrando que ele foi anunciado em 2017 e passou um bom tempo sumido — mas fiquei com a impressão de que houve um conflito de interesses: de um lado, um time de desenvolvedores que realmente estava disposto a fazer um jogo bacana. Do outro, empresários engravatados que só querem capitalizar ao máximo a “galinha dos ovos de ouro” que é a marca Avengers. Adivinha quem levou a melhor?
Assim que a primeira impressão passa, o que sobra é uma experiência repetitiva e sem graça, pensada para durar “ad infinitum” e ser atualizada regularmente. Afinal, ele não é só um jogo, é um “game as a service”, que vai inclusive estender sua vida útil ao longo da próxima geração.
Eu entendo o apelo desse tipo de conteúdo, e sei que tem gente que vai passar dezenas de horas upando seus heróis em troca de créditos e equipamentos “holográficos”. Mas, eu não tenho nem o tempo nem a dedicação para isso. Se o jogo entregasse ao menos uma campanha caprichada, valeria a pena e eu recomendaria com gosto. Mas nem isso: a campanha tem seus altos e baixos, mas são poucos “altos” (missões lineares e cinematográficas) para muitos “baixos” (fases genéricas, objetivos repetitivos, gameplay pouco inspirado).
Devo retornar esporadicamente ao jogo para ver os novos heróis que serão adicionados e para aproveitar o Photo Mode e tirar umas fotinhos para o meu Instagram (@gamesphotomode). Mas, por hora, largo o jogo com um gosto amargo na boca, e a certeza de que, no mundo dos games, o capitalismo venceu os Vingadores.
Marvel’s Avengers foi lançado em 4 de setembro, e está disponível para PC, Playstation 4 (versão analisada, rodando no PS4 Pro) e Xbox One.