Análise Arkade – sombras e (muitos) puzzles definem Tandem: A Tale of Shadows

23 de outubro de 2021
Análise Arkade - sombras e (muitos) puzzles definem Tandem: A Tale of Shadows

Vez ou outra, nos deparamos com algumas propostas de jogo que nos surpreendem ao pegar uma série de elementos que já foram explorados anteriormente, misturá-los, ressignificá-los, e transformá-los em uma outra coisa. Muito provavelmente, ao jogar Tandem: A Tale of Shadows, você reconhecerá suas mais diversas referências e, ainda assim, perceberá uma experiência inventiva e bastante inovadora, daquelas que bagunçam algumas das certezas que acreditamos ter ao ler a sinopse da produção da Monochrome Paris, cuja publicação foi realizada pela Hatinh Interactive. E sair da zona de conforto, aqui, é essencial.

Uma história de brinquedo

A trama central que move toda a jornada de Tandem: A Tale of Shadows nos coloca na pele de Emma, uma garotinha de 10 anos de idade que está buscando descobrir os mistérios por trás do desaparecimento de Thomas, herdeiro da família de ilusionistas Kane, e decide investigar o caso sozinha pelas ruas de uma Londres vitoriana do final do século XIX. Ela só não previa um despretensioso encontro com o ursinho de pelúcia Fenton, que acabara de cair de uma carruagem que, ao que tudo indica, pertencia aos pais do menino desaparecido, e agora está perdido. Não demora para que ambos juntem forças para que possam superar os caminhos tortuosos que vão encontrar pela frente.

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Talvez o maior pecado da estrutura narrativa do jogo seja a de nunca desenvolver a potência do plot que nos apresenta. A partir deste cenário apresentado nos primeiros minutos da jornada, pouco nos é oferecido para nos manter interessados pelo desfecho da história toda. Em dado momento, parece importar muito pouco para nós e para o próprio jogo qual é o destino, qual é o ponto final onde queremos chegar. A jornada em si, quiçá de forma proposital, se mostra muito mais importante do que o destino.

Não ajuda o fato de que todas as cutscenes, inclusive a primeira, parecem muito apressadas, e tudo passa sem muito tempo para que possamos digerir, compreender, nos envolver. Sem localização para o nosso português brasileiro, o jogo corre demais e se bobearmos, perdemos o contexto. A direção narrativa tem um problema de ritmo que conflita inclusive com a cadência da temática e com a ambientação. Mesmo os pequenos diálogos de preenchimento durante o gameplay e os pontos de interesse que podemos observar em alguns dos ricos cenários são bastante vazios de profundidade.

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Esta ausência de conteúdo é algo que se lamenta não por ser um requisito obrigatório, sobretudo quando se trata de jogos essencialmente baseados em puzzle como é o caso de Tandem: A Tale of Shadows, mas sim porque o pouco que se mostrou carregava em si um potencial e acaba nunca sendo devidamente explorado. A promessa não se realiza, a entrega se mostra insuficiente pela base estabelecida. A boa notícia disso tudo é que uma vez que este aspecto seja compreendido, é algo que simplesmente se ignora para que voltemos a nossa atenção ao que realmente importa.

Dois mundos, duas dimensões

Tandem: A Tale of Shadows tem como princípio básico de gameplay a personificação de dois protagonistas em paralelo, algo que não é especialmente novo, mas que carrega consigo um charme bastante peculiar. O modelo onde o jogador precisa alternar entre personagens com habilidades diferentes aqui é elevado a um outro patamar, e além de funções muito bem definidas, essa dupla improvável está também em planos dimensionais diferentes, mas não da forma como Stranger Things ou a série What If, da Marvel, nos ensinou. Pense mais no sentido de eixos dimensionais mesmo… enquanto um se movimenta pelo eixo X, o outro segue pelo eixo Y. Provavelmente as telas que ilustram essa análise explicam isso melhor do que as minhas palavras.

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Essa característica faz com que o jogo funcione, claro, a partir de duas perspectivas diferentes. Enquanto vemos Emma de um ponto de vista superior, o não tão comum atualmente top-down, Fenton nos é mostrado pela tradicional visão lateral. Isso influencia também nos comandos e nas funções de cada um deles, sendo que a menina caminha e manipula objetos no nível do solo, enquanto o urso pode saltar e suas passagens são muito semelhantes a jogos de plataforma mais convencionais.

Mais do que uma progressão de divisão de tarefas, algo que como dito não é uma novidade — até os jogos da linha Lego fazem isso com conforto há décadas — há uma ligação intrínseca entre o que ambos fazem, mesmo em planos separados. Isso porque o ursinho caminha e se movimenta pelos contrastes de luz e sombra, e mesmo que use bases sólidas para se estabelecer, são os caminhos gerados pelo jogo de iluminação, de responsabilidade da sua companheira, que serão determinantes para o progresso de ambos.

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Explico melhor: com uma lanterna em mãos e com outras fontes de luz, Emma pode projetar sombras em qualquer superfície sólida e/ou opaca que estiver no nível do solo. Ao criar estes artifícios, ela determina caminhos possíveis para seu parceiro, que por sua vez pode acionar dispositivos que ligam ou desligam obstáculos que impedem que ambos avancem. Em termos mais objetivos, o que um faz do seu lado influencia nos caminhos do outro, e só quando ambos trabalham em cooperação que conseguem seguir adiante e encontrar o cristal que encerra o nível.

Obviamente, que a mecânica mais objetiva seria elevada a novas proporções conforme se avança pela campanha, que não chega a ser tão longa — algo em torno de 5 a 6 horas devem bastar — e é bastante interessante como o princípio se expande ao longo dos 5 mundos que compõem o jogo. Logo estaremos manipulando pedaços gigantes de comida, encanamentos com líquido escuro, passagens secretas, e todo tipo de composição que puder ser utilizada para essa elaboração de contrastes. O jogo ainda conta com armadilhas e criaturas assustadoras, que precisam ser superadas em um sistema indireto, já que não há um sistema de combate.

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Para que um jogo com essa configuração funcione, o level design precisa ser seu aspecto mais forte. Não adiantaria criar um modelo que funcione tão bem nos planos 2D e 3D com uma iluminação tão bem desenhada sem um projeto de níveis que faça jus à mecânica. Felizmente, essa é uma das melhores qualidades de Tandem: A Tale of Shadows. Alguns designs são mais inspirados que outros, mas o game mantém uma média impressionante e sólida ao longo de todo o caminho. Há passagens realmente inspiradas e soluções bem criativas que são recompensadoras quando as descobrimos. Sem quaisquer ferramentas ou artifícios de ajuda, o desafio está totalmente nas mãos do jogador, sem atalhos.

Soturno e inconstante

O aspecto audiovisual da obra, confesso, é aquela que me trouxe os sentimentos mais conflitantes a cada novo desafio vencido, a cada nova solução encontrada. A ambientação vitoriana, com aquela mistura incômoda (no bom sentido) entre a fofura dos personagens e um clima perturbador e cheio de nuances de um terror atmosférico, traz um clima bem peculiar. Não é um daqueles jogos que se encaixe nos clichês do terror ou algo parecido, e dizer que parece algo criado pela mente esquisita de Tim Burton seria um clichê inexato e insuficiente. Particularmente, sinto que o sentimento é muito mais próximo de algo saído das páginas dos contos de Edgar Allan Poe, com o fantástico flertando com um mundo real tão bizarro quanto a ficção.

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O resultado é um visual muito bem composto dada a complexidade da alternância entre os planos, com cores intensas e quentes se mesclando com o tom mais escuro da maioria dos cenários quando estamos no controle de Emma, enquanto Fenton transita no bom e velho preto-&-branco das melhores produções noir, com direito a texturas granuladas e muitos tons de cinza. Contribuem para a ambientação uma cenografia cheia de bons detalhes, que enriquecem o mundo do jogo sem contudo poluir demais a tela, ainda que um ou outro caminho pareça tortuoso demais por esses objetos cênicos.

Como não poderia deixar de ser, contudo, é no aspecto da iluminação que o jogo merece um destaque especial. Ainda que seja o grande elemento de interação, não há aqui uma separação cartesiana só entre o que está iluminado e o que está na sombra, como um trabalho só de silhuetas, como visto em outra obra que se apropria dos mesmos conceitos, o recentemente analisado aqui Projection: First Light, e temos um trabalho muito próprio aqui, passando por diferentes fontes de luz, projeções complexas e até detalhes sutis quase caleidoscópicas como as variações da luz dentro de recipientes de vidro. São detalhes muito legais que demonstram um cuidado todo especial com esse aspecto tão central neste game.

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Esse cuidado na construção de uma atmosfera quase sempre incômoda, retorcida, também passa por uma elaboração sonora muito típica, com canções melancólicas que variam em termos de ritmo — por vezes, mais calmas e quase sufocantes, outras com uma cadência mais acelerada mas não menos opressora — e que fomentam um estado imersivo, algo ausente, como já dito, no aspecto narrativo. A sonorização que destaca a solidão (como o ruído de passos e outros de ambientação) é outro belo acerto, ainda que o trabalho com vozes não chegue a se destacar.

Contudo, é um game que fez escolhas que valorizam o seu cerne principal também no aspecto artístico. O resultado é que sempre quando vemos algo fora do gameplay, como as cutscenes ou mudanças de câmera para mostrar um ou outro detalhe, percebemos modelos bastante simplificados e alguns bugs de renderização e textura. Ainda que Emma tenha esse aspecto quase artificial propositalmente e coerente com todo o clima bizarro do projeto, ainda é meio estranho vê-la se movendo de forma robótica, sua expressão vazia e sua movimentação sem muito peso ou impacto.

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Conclusão

É evidente que Tandem: A Tale of Shadows foi totalmente projetado para atender ao seu conceito fundamental, o do trabalho cooperativo de personagens em planos diferentes essencialmente pela e para a transformação do ambiente pela manipulação das sombras. Se é verdade que em termos narrativos o jogo nunca alcança aquilo que ele mesmo prometeu e no quesito audiovisual tem seus altos e baixos, é na mecânica que ele faz seu nome e pode agradar muito os entusiastas de um bom desafio mental, apresentando quebra-cabeças desafiadores e criativos, que demandam um bom tempo de raciocínio sem parecerem pedantes, abstratos ou punitivos demais.

Ainda assim, eu gostaria de ver trabalhos estético e narrativo um pouco mais cadenciados, algo que não só ajudaria no engajamento e na compreensão do que está acontecendo, como também faria mais sentido dentro do escopo da produção. A correria e os movimentos de câmera destas passagens desvalorizam a criação. Contudo, sendo esses elementos complementares considerando aquilo que parece ser o foco da obra, são aspectos que tem um peso menor na percepção geral do todo.

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Tandem: A Tale of Shadows se mostra, na média, uma bela surpresa que funciona muito bem em tempos próximos do tradicional halloween norte-americano, sem apelar para o terror barato e para os jump scares fáceis. Traz uma bela (mas pouco explorada) ambientação, puzzles com enigmas, armadilhas e soluções criativas e desafiadores. Relativamente curto, o tempo do jogo é suficiente para garantir o interesse do começo ao fim.

Disponível para Playstation 4, XBox One, Nintendo Switch e PC (além de Playstation 5 e XBox Series pela retrocompatibilidade), o jogo foi lançado em 21 de outubro de 2021 e infelizmente está localizado, em vozes e texto, somente no idioma inglês.

Paulo Roberto Montanaro

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