Depois do Fim: a história (com spoilers) e as polêmicas de The Last of Us Part II
Estamos em 2013. The Last of Us chega para coroar o fim do ciclo de vida do PS3, e conseguiu a façanha de agradar a todos. Público e crítica foram unânimes ao ovacionar o game, e o fato dele ter sido eleito o melhor jogo da década pelo Metacritic sem dúvida é um atestado de suas muitas qualidades.
A jornada de Joel e Ellie trouxe uma nova camada de profundidade na construção de personagens e das relações humanas, algo muito mais complexo do que a Naughty Dog havia feito com sua outra franquia de destaque naquela geração, Uncharted, muito mais voltada para uma ação descompromissada e uma aventura canastrona.
Certamente, o legado do primeiro The Last of Us para a desenvolvedora e para o mundo dos videogames foi grande… e gerou expectativas igualmente grandiosas para o futuro do jogo em uma nova geração, e para a nova história que seria contada.
O ódio fora do jogo
Corta para 2020. A mesma empresa, enfim lança uma sequência deste jogo tão querido e premiado, também para marcar o início do fim da carreira do PS4, que em breve dará lugar ao PS5.
Ainda que a crítica esteja, novamente, ovacionando a produção (leia aqui nossa análise sem spoilers), a recepção que o novo título recebeu de uma boa parcela do público, não é nem de longe tão calorosa quanto a do jogo original. Ou melhor, há muitos argumentos acalorados por aí… mas eles são de jogadores revoltados, que estão reclamando do game, da sexualidade de personagens do game (?!), se sentem traídos pela Naughty Dog, afirmam que odiaram o jogo, a nova história que a empresa decidiu contar e o fim que ela deu para alguns personagens.
No Metacritic, tradicional site agregador de notas, vemos que a mídia especializada adorou o game, tendo sido “aclamado universalmente” e ostentando uma bela média de 9.5. Já nas análises dos usuários, temos mais de 80 mil opiniões “geralmente desfavoráveis”, e uma média de 4.6 — que chegou a um valor ainda mais baixo nas primeiras 48 horas após o lançamento, chegando a 3.3, momento onde essa onda de raiva e desaprovação começou a ganhar notoriedade nos fóruns e redes sociais.
Não que essas médias sirvam para muita coisa: no dia de lançamento já estavam pipocando notas baixas de pessoas que sequer tinham jogado o game, mas estavam vendo compilados de cutscenes pelo Youtube, descobrindo pontos chave da história e realizando um “linchamento virtual” para exacerbar sua revolta. Isso só mostra o quanto atribuir notas é um sistema falho, quebrado, e tenho orgulho por não darmos notas aos jogos aqui na Arkade.
Fato é que essa repercussão ganhou espaço e se ramificou de maneiras um tanto quanto absurdas, como a criação de uma petição para um reboot na história do jogo, fotos de discos do jogo quebrados e até a perseguição virtual à atriz que atuou como modelo de rosto para a personagem Abby, coprotagonista do game, levando para uma esfera pessoal e privada todo um movimento de descontentamento com uma produção ficcional, algo que ultrapassa qualquer limite civilizado, independentemente dos méritos e das razões para essa fúria toda. Gente, ela só emprestou o rosto para a personagem. Não sejam estúpidos.
Uma história incômoda
Voltemos ao jogo em si: The Last of Us Part II é um jogo que realmente não tem dó de seu público. Ele é dolorido, incômodo, difícil de digerir. Sua história é violenta e chocante. Não é aquela violência “divertida” e banalizada que estamos acostumados a ver em videogames. Aqui tudo é muito cru, cruel e definitivo. Não espere cenas romantizadas, despedidas comoventes no leito de morte, um último suspiro dramático, pessoas fechando os olhos dos mortos com as pontas dos dedos. Esqueça os recursos tradicionais do melodrama aqui.
Eu recebi a cópia de The Last of Us Part II para análise mais de duas semanas antes de seu lançamento, e pude jogá-lo sem pressa, saboreando cada momento. E olha, vou te falar que o sabor foi bem amargo na maior parte do tempo. Levei pouco mais de 30 horas para zerar a campanha (ao longo de uma semana), e achei a experiência como um todo muito desgastante, psicologicamente falando.
Sempre que desligava o PS4, me sentia mal pelo que tinha acabado de testemunhar (e fazer). Me sentia triste e revoltado pelos caminhos que foram tomados sem que eu pudesse fazer nada — este não é um jogo de escolhas, afinal. Só há uma história, só há um final, e pelo teor do jogo, seria ingenuidade esperar por um final feliz, uma redenção, ou qualquer coisa do gênero. Jogamos, mas não temos controle sobre a narrativa. Acompanhamos a história que a Naughty Dog decidiu contar.
E que história, meus amigos. Foi ela — a história — o que me fez ligar o PS4 de novo e de novo, para mergulhar mais e mais na sangrenta saga de vingança de Ellie. Eu já terminei o game há vários dias, mas ainda penso nele… em tudo que poderia ter sido diferente… e em como ele definitivamente não parece ter sido feito simplesmente para agradar aos fãs do primeiro jogo.
Atenção: a partir daqui, começaremos a tratar de spoilers da história do jogo. Se você NÃO QUER saber detalhes da trama, o destino dos personagens e o final do jogo, pare de ler!
Ainda está aqui? Ok, então prepare-se para tomar spoilers. Depois não diga que não avisamos…
A queda de um ídolo
Vamos tirar o elefante da sala de uma vez: Joel morre em The Last of Us Part II. De maneira bem brutal, aliás, sendo espancado com um taco de golfe, enquanto Ellie, subjugada, é incapaz de fazer qualquer coisa além de assistir, impotente.
A morte de Joel ocorre bem no começo do jogo, e é, para muitos, o primeiro prego no caixão de The Last of Us Part II. Matar o “paizão”, protagonista máximo do primeiro game, que todos os fãs aprenderam a amar de um jeito tão abrupto — e violento — revoltou a comunidade, e é talvez a decisão narrativa mais controversa de um jogo cheio de controvérsias.
Podiam ter matado outro personagem? Talvez… a campanha de marketing do jogo meio que tentou nos convencer de que Dina, a nova personagem que já aparecia como interesse romântico de Ellie, seria parte desse plot, mas creio que, se fosse ela a morrer, a mensagem não teria o mesmo peso, o mesmo impacto.
Para a história funcionar, a vingança não tinha que ser apenas da Ellie, mas também do jogador. A perda tinha que ser pessoal e doída também para nós, que estamos “fora” do jogo. Se fosse Dina, Jesse, Tommy ou qualquer outro coadjuvante quem morresse para deixar Ellie com “sangue no olho”, nós, jogadores, não compraríamos a briga com a mesma vontade. Para machucar de verdade, tinha que ser Joel.
E, vamos colocar o dedo na ferida: todo mundo gosta do Joel, mas convenhamos, ele não era nenhum mocinho. Ao final do primeiro jogo, vemos que ele abre mão de uma possível cura para o mundo e aniquila toda a equipe médica dos Vagalumes para tirar Ellie, desacordada, do local. Para piorar, ele ainda escondeu a verdade dela, pautando todo o futuro daquela relação de “pai e filha” por uma mentira.
“Ah, mas ele fez tudo aquilo por amor”, é o argumento. Sem dúvida. Mas isso não muda o fato de que foi uma atitude passional, egoísta e escrota. Joel abdicou de uma possível salvação para a humanidade só para ter sua “filha” ao seu lado.
Acho que isso é o que torna o final do primeiro jogo tão poderoso: mesmo sabendo que Joel está errado, e tendo consciência do que estava em jogo, nós não conseguimos culpá-lo, nem sentir raiva dele. Provável que fizéssemos a mesma coisa. Joel não é um herói, mas a gente entende suas motivações, sabe pelo que ele passou e torce por ele.
Justamente por tudo isso, vê-lo sendo brutalmente assassinado já nas primeiras horas do segundo jogo é um soco no estômago dos fãs. E o pior: vemos ele ser assassinado por uma garota que acabara de salvar!
A nova personagem, Abby, é introduzido meio de repente na história, e mata Joel com menos de 3 horas de jogo. Isso despertou uma onda de ira dos fãs, afinal ela foi a carrasca que tirou a vida de um personagem tão amado… mas será que ela é “só” isso, mesmo?
Quem é Abby?
Claro que a Naughty Dog não criou uma personagem simplesmente para ser a vilã, a carrasca do novo game. A fortona desconhecida que muitos especularam que era a mãe de Ellie quando foi apresentada (em um trailer deveras violento) é Abby. Ela é a assassina de Joel… e também é a personagem que controlamos por quase metade da campanha de The Last of Us Part II.
Pois é: os trailers e gameplays que acompanhamos ao longo dos últimos anos nunca entregaram isso, mas The Last of Us Part II tem duas protagonistas: Ellie e Abby. Acompanhamos um recorte da história de ambas, e logo fica claro que tanto uma quanto a outra são movidas, em algum nível, pela sede de vingança.
Ao longo das cerca de 30 horas de jogo, acompanhamos cada uma delas vivendo os mesmos eventos pelos seus respectivos pontos de vista, e vemos que ambas têm suas motivações muito bem construídas, suas jornadas bem justificadas, independentemente de concordarmos ou não com as atitudes e com as ideologias que regem cada uma delas.
Ellie, obviamente, quer se vingar de Abby, por ter matado Joel. Mas e a Abby, quer se vingar de quem? Na verdade, ela estava caçando Joel, e embora não possamos saber suas motivações logo de início, conforme o jogo se desenrola, entendemos o que aconteceu, e em que momento seus caminhos se cruzaram. O roteiro do primeiro jogo só nos mostra um lado da história (o lado de Joel e Ellie), aqui, podemos ver o outro lado.
Depois que Abby mata Joel, e vê Ellie caçando e eliminando seus companheiros, ela passa a querer dar um basta nisso. Isso faz com que ela pareça ser “a vilã” da história. Mas isso é The Last of Us, meu caro: aqui não há realmente heróis nem vilões, apenas pessoas/grupos com perspectivas, ambições e motivações divergentes, lutando para sobreviver em um mundo caótico, cruel e violento.
As motivações de Abby
Quando The Last of Us Part II “obriga” o jogador a jogar com Abby, da metade do jogo para frente, é absolutamente normal que role uma raiva. Não gostamos dela! Não queremos saber dela, nem de seus amigos! Queremos é ter o prazer de ajudar Ellie a enfiar uma faca na garganta dela!
Porém, novamente, relembro: isso é The Last of Us. E se tem algo que a Naughty Dog quis demonstrar com este jogo, é que toda história tem dois lados. E a produtora faz isso de maneira brilhante, revisitando (e ressignificando) o final do primeiro jogo. Foi dali, das atitudes de Joel, que o ódio de Abby surgiu.
O pai de Abby, Jerry, era o chefe da equipe de médicos que iriam realizar a cirurgia de Ellie. Era um dos caras (até então sem nome) que Joel assassinou antes de fugir do hospital com Ellie desacordada nos braços. Jerry foi uma das vítimas do amor cego e egoísta de Joel. E é por isso que Abby quer ver Joel morto.
Pelo que podemos ver da vida de Abby — através de flashbacks –, Jerry era um homem bastante decente. Era um pai amoroso e um sujeito querido por sua comunidade, ajudava as pessoas e os animais, e estava buscando a cura para um mundo destruído não só por um vírus, mas também pelo que restou da humanidade, que se dividiu e continuava se matando. Vemos inclusive que ele hesitou muito na decisão de sacrificar Ellie, mesmo não tendo qualquer ligação pessoal com ela e sabendo o que estava em jogo. Só aceitou seguir com o procedimento pela responsabilidade que assumiu junto aos seus.
Analisando friamente, as motivações da Abby são tão justificáveis quanto as da Ellie. Botando na ponta do lápis: Jerry precisava sacrificar Ellie para sintetizar uma cura, e Joel matou-o por isso. Abby, então, quer se vingar matando Joel. Ao fazer isso, ela mata o “pai” da Ellie, que passa a querer matar Abby. É um círculo de vingança alimentado por ódio, pesar e violência.
Claro que fica difícil da gente “gostar” da Abby por conta de todo o background que temos do primeiro jogo, da linda relação que vimos florescer entre Ellie e Joel. Mas, aí é que está: antes, só tínhamos um lado da história. Agora pudemos ver o outro. O que Joel fez era justificável para ele. O que Abby faz é justificável para ela, e ela se preparou a vida inteira para isso, algo que transparece na sua construção física e emocional.
Abby não está aqui para ser “gostável”. Ela tem suas motivações, seu lado da história, e isso tudo a coloca no papel de antagonista de Ellie, mas não de vilã. E Ellie, que está caçando todos os responsáveis pela morte de Joel, se torna a antagonista de Abby, quando vemos a história pelo outro lado.
Ellie e Abby estão em rota de colisão o jogo todo, ainda que a maneira como a narrativa nos é apresentada não dê muitas pistas disso até perto das 20 horas de jogo. A segunda metade do jogo, onde controlamos Abby, é um choque para muita gente, e todo o tempo que passamos com ela vai ser especialmente incômodo para quem decidiu simplesmente odiá-la desde o início por ter matado Joel.
Redenção & Vingança
Porém — e sei que essa minha opinião é um tanto polêmica — vejo muita gente odiando Abby pelo que ela fez, sendo que, durante o jogo, a evolução dela como personagem acaba sendo muito mais positiva que a da Ellie. Suas escolhas, inclusive, são muito mais palpáveis, muito mais maduras.
Nas primeiras 15 ou 18 horas, vemos a degradação de Ellie. Ela vai até o fundo do poço, cega pelo ódio, deixando um rastro de corpos para trás. Ellie é implacável, tortura pessoas para conseguir informações e, ainda que se sinta mal por isso, não para. Não ouve os amigos, ignora aqueles que a respeitam, e não vê outro caminho que não aquele que decidiu tomar. Ela não vai parar até estarem todos mortos.
Em um dos momentos mais chocantes do jogo, vemos Ellie assassinar uma jovem grávida. Foi legítima defesa, e ela nem sabia da gravidez, ok, mas ainda assim é algo hediondo, e a Naughty Dog faz questão de esfregar na nossa cara o quão longe a personagem foi capaz de ir. E como agora todos os inimigos têm nome, fica claro que estamos matando pessoas que se conhecem, indivíduos de um grupo, não apenas “capangas genéricos”.
Ellie não é mais uma garotinha. Virou uma mulher endurecida pela vida e pelo ódio, uma mulher que vai até as últimas consequências para alcançar seus objetivos… uma mulher que invariavelmente se torna tão violenta e impiedosa quanto os tais assassinos que ela caçava. E, temos que admitir, ela se tornou muito boa nisso.
Na outra metade da história, acompanhamos alguns dias na vida de Abby, imediatamente após ela conseguir sua vingança contra Joel. E a vida dela continuou. Ela não está se deleitando com a morte de Joel, nem caçando ninguém… está seguindo sua rotina, contribuindo com sua comunidade e com seus amigos.
Pela visão de Abby, vemos parte do grupo que Ellie está caçando, conhecemos melhor os personagens (até os cães!) que, no controle de Ellie, aniquilamos. E como toda história tem dois lados, da perspectiva de Abby o “grupo de bárbaros que ajudaram a matar Joel” são pessoas comuns, que, como tantas outras, estão tentando tocar a vida em um mundo virado pelo avesso.
Conforme avançamos na história de Abby, vemos a garota questionando seus superiores, ajudando crianças de uma tribo inimiga — os Serafitas –, superando seus medos e colocando a própria vida em risco para ajudar pessoas que ela não só não conhecia, mas que sempre lhe foram apresentadas como inimigas.
No derradeiro confronto das duas, mais uma vez fica claro que Abby tem mais empatia e compaixão do que Ellie. A grandalhona poderia ter matado tanto Ellie quanto Dina… mas não fez isso. Aliás, ela poderia ter feito isso bem antes, já quando eliminou Joel, mas escolheu deixar tanto Ellie quanto Tommy vivos, exatamente porque sua vingança tinha um único rosto, um único culpado.
E mesmo depois de toda a matança de seus amigos, ela preferiu poupar a vida das duas, deixando Ellie avisada para que nunca mais se encontrassem novamente. Mesmo tendo perdido todos os seus amigos para o ódio de Ellie, Abby não a matou, e simplesmente foi embora.
Falsos Finais
Não sei você, mas eu fiquei com a impressão que The Last of Us Part II poderia ter acabado em mais de um momento. Contei umas 3 ou 4 ocasiões em que o jogo parecia que ia acabar, e se tivesse acabado por ali, estaria até que bom. Seria um final “quase” feliz, dadas as circunstâncias.
O primeiro desses momentos é depois da luta no teatro. Se o jogo acabasse ali, com Ellie arrebentada e Abby indo embora, dizendo para Ellie nunca mais procurá-la, estaria quase tudo bem, e ainda reforçaria (mais uma vez) a mensagem de que Abby não é o monstro sem compaixão que muita gente pensa que ela é. Talvez pareceria ser um final em aberto que deixaria as portas escancaradas para um terceiro jogo… mas isso é assunto pra outra ocasião.
O segundo momento é quando Tommy vai até a casa de Ellie e Dina, reacender a chama de vingança de Ellie. Eu adoraria que ela tivesse dito “não, valeu, tenho uma família agora”, e deixasse pra lá. O jogo acabaria naquela cena dela com JJ no trator, contemplando o horizonte. Seria um final lindo… mas provavelmente agridoce demais para a jornada tão desesperançosa desenvolvida até então.
Por fim, acho que o jogo poderia ter acabado quando, já em Santa Barbara, Abby e Lev conseguem contato com Vagalumes através do rádio. Isso não só seria um (merecido) final feliz para os dois, como ainda deixaria um gancho para, quem sabe, um conteúdo standalone da dupla, no estilo do DLC Left Behind.
Santa Barbara
Mas, a Naughty Dog ainda não tinha acabado, e foi mais fundo. Depois de controlarmos Ellie e Abby por 20 e poucas horas, o jogo continua, agora em um novo ambiente — a ensolarada Santa Barbara. Ellie, mais uma vez se mostrando como uma força irrefreável e atormentada pelos próprios demônios, largou Dina chorando em casa com o filho para ir atrás do rastro de Abby, disposta a terminar aquilo que começou.
Apesar da compaixão demonstrada no teatro, Abby deve morrer, e Ellie mostrou que está mais do que disposta a abdicar de uma vida “tranquila” para concluir sua missão… o que é mais um indicativo de como ela já se perdeu em sua própria jornada, não sabe o que priorizar, e segue disposta a ir até as últimas consequências para ter o que quer.
Apesar de, a essa altura do jogo, eu estar bem estar triste com a determinação cruel de Ellie, meio que entendo porque ela não consegue parar. Como vemos no decorrer do jogo — até os últimos instantes, na verdade — sua relação com Joel ficou bastante abalada depois que ela descobriu a verdade sobre o dia em que ela foi entregue aos Vagalumes.
No último flashback do jogo, na noite da festa em que rolou seu beijo com Dina, Ellie diz a Joel que não conseguiria perdoá-lo, mas estava disposta a lhe dar uma segunda chance… mas aí a Abby foi lá e matou o coitado. Então, a vingança aqui não é apenas sobre Abby ter matado Joel… é também sobre ela ter tirado de Ellie a chance de perdoá-lo. Ellie vai ter que conviver com o amargor de suas últimas palavras para Joel, sem jamais ter a chance de acertar as coisas com ele. E essa culpa também serve de combustível para seu ódio.
Voltando à Santa Barbara: aqui temos contato com um novo grupo de sobreviventes — os Cascavéis –, que aprisionam Abby e dão um bocado de trabalho para Ellie. Mas Ellie não vai parar. Ela dá cabo destes novos inimigos (que são bem barra pesada) e acidentalmente inicia uma rebelião dos prisioneiros deste grupo. Os ex-prisioneiros dos Cascavéis estão mais do que dispostos a um acerto de contas com seus captores… pago com sangue, claro. É o ódio de Ellie deflagrando ondas de ódio e caos ao seu redor.
No fim das contas, Ellie encontra Abby, enfraquecida e moribunda, presa à um pilar na praia. Ela até ajuda a rival a fugir… mas, logo em seguida, em um golpe baixo — ameaçando a vida do inconsciente Lev –, convence-a a lutar. Um último confronto, mano a mano. Ellie não quer ser covarde, quer uma briga justa. E o confronto final das duas é quase tribal, na base da porrada, com ocasionais facadas, afogamentos e mordidas.
Ellie poderia ter colocado um ponto final na história, e dado cabo de Abby. Mas, no último momento, ela hesita. Talvez por arrependimento, talvez por saber que não era isso que Joel iria querer, talvez por não ter, afinal, se deixado corromper por completo pelo “lado sombrio”. Ou talvez porque Abby ainda tinha uma missão, ainda tinha um motivo para seguir em frente. Lev estava quase morto, no barco, e ele precisava de Abby. Ou ainda porque tenha enxergado a si mesma nos olhos de Abby, e não tenha gostado do que viu.
Assim, Abby entra no barco e parte com Lev rumo à neblina, enquanto Ellie, mutilada e desamparada, volta para sua casa e encontra o lugar abandonado. Dina e JJ foram embora (voltaram para Jackson, provavelmente). Ellie, mais uma vez pega seu violão — um elo tão importante de sua ligação com Joel — e percebe que, por ter perdido dois dedos em seu confronto final com Abby, não pode mais tocá-lo.
Ellie está quebrada fisicamente, mentalmente e emocionalmente, e a solidão desta última cena é uma bela (e triste) metáfora do estado de espírito da protagonista.
E agora?
Bom, embora Ellie e Abby tenham passado o jogo todo caçando uma a outra, a verdade é que, ao final de The Last of Us Part II, ambas estão vivas. Não sabemos para onde Abby foi com o barco, mas talvez ela tenha seguido com seu plano de encontrar os Vagalumes (ou o que sobrou deles).
Já Ellie… pela lógica, ela voltaria para Jackson, tentaria fazer as pazes com Dina e viveria o resto de sua vida em relativa paz. Mas eu não sei se acredito nisso. Por tudo o que fez, me parece que Ellie não se encaixa mais em uma comunidade, uma vida social estável. Afinal, todos de quem ela se aproxima acabam morrendo. Se afastar talvez fosse melhor para ela — e para os outros. Pensando agora, eu apostaria que ela virou uma sobrevivente nômade do tipo “lobo solitário”.
O fato é: depois que sobem os créditos, ambas estão vivas, e não dá para saber o que acontecerá. Pode ser que tenhamos um The Last of Us Part III na próxima geração, mas não sabemos se o game realmente abordará as consequências do fim da jornada que acabamos de viver.
O diretor, Neil Druckmann, afirmou recentemente que “teríamos que descobrir como criar uma nova experiência que corresponda ao impacto emocional dessas histórias, e não sei que experiência é essa”. Ou seja, ele não quer fazer um jogo só por fazer. Quer algo tão significativo e impactante quanto o que vimos até aqui.
Pessoalmente, eu gostaria muito de ver o universo da franquia sendo expandido em spin offs. Só vimos os resultados da infecção pelo Cordyceps nos Estados Unidos, então acho que seria legal vermos como outras partes do mundo lidaram com a situação. Imagina que louco um The Last of Us contando a história de um grupo de sobreviventes no Japão? Ou na Índia? Ou aqui no Brasil, porque não?
Você prefere fan service ou história?
Bom, mas isso é só piração da minha cabeça. Quem decide o que fazer com a história é a Naughty Dog (e a Sony, que certamente está feliz com o sucesso comercial do jogo, que bateu 4 milhões de cópias vendidas em apenas 3 dias). Ela é a dona da IP, dos personagens, e de todo o universo criado ao redor deles. Se vamos ver novas histórias nesta franquia, depende exclusivamente dela querer contar novas histórias. O resto é tudo fanfic.
Aliás, é bizarro ver o quanto de gente está indignada com o jogo não pela sua qualidade, mas pela história que a Naughty Dog decidiu contar, ou por abordar temas como homossexualidade, pragmatismo religioso ou violência. Há um pessoal com a visão tão turva pelo fanatismo (ou pela ignorância), que se acham donos da verdade, da história e dos personagens, que estão execrando o jogo sob a absurda alegação de que a produtora foi desrespeitosa com o legado que ela mesma criou.
Caríssimo, veja bem: eu também joguei o primeiro The Last of Us. Também me apaixonei pela relação de Ellie e Joel e também fui massacrado pelo novo jogo, pelo que acontece com personagens queridos e pelos rumos tenebrosos que a história tomou.
Mas, se essa é a história que a Naughty Dog resolveu contar, quem sou eu para achar que eles estão errados? A história é deles. Ressaltando que, se a história fosse ruim, acho que seria super válido reclamar. Mas não é o caso: temos uma história boa, uma história dolorida, mas muito bem roteirizada… que está repercutindo negativamente pelos motivos errados.
Então, sim, é claro que me doeu ver o Joel morrendo daquela maneira. Mas achei ótimo ter tido a chance de conhecer Abby e suas motivações. Fico satisfeito que o roteiro tenha nos apresentado todo esse ódio e essa violência dentro de uma história densa, intensa e surpreendente.
É muito bom que ainda existam produções que fogem do óbvio, do lugar comum, do conforto de um final feliz, ou de simplesmente ignorar fatos contemporâneos. Claro que o “final feliz” de Uncharted 4, com casa na praia, filhos crescendo, sorrisos e um belo pôr-do-sol tem seu valor. Mas a vibe do jogo é outra. The Last of Us Part II não combina com um final feliz clichê.
Não dizem que a verdadeira arte é aquela que faz a gente sentir algo? Pois The Last of Us Part II conseguiu. Ele incomodou, gerou raiva, frustração e rancor dos fãs mais xiitas, mas também gerou reflexões para quem ousou experienciar o jogo de mente aberta, sem rotular personagens como heróis ou vilões. É triste — e injusto — ver como a revolta desses fãs “traídos” se transforma em críticas vazias para um grande jogo, que conta uma grande história.
Esses fãs xiitas… bom, eles precisam aprender a desapegar. Precisam entender que não são donos de uma obra. Eu achava que obras como Lost, Game of Thrones e The Walking Dead já tinham deixado o povo meio vacinado para o fato de que personagens importantes podem morrer (muitas vezes de forma abrupta e inesperada).
O fã não é dono da história, nem dos personagens. A Naughty Dog foi corajosa demais ao entregar um jogo desses, mesmo sabendo que ele ia causar revolta. É preciso ter coragem para matar personagens tão queridos e, fica claro ao final da jornada que a empresa fez o jogo que ela queria, não o que os fãs esperavam. E eu a respeito ainda mais por isso.
Então, RIP Joel, mas longa vida ao pessoal da Naughty Dog, e à sua coragem em contar histórias.