Memory Card: Minha história com Resident Evil 3: Nemesis

23 de janeiro de 2021
Memory Card: Minha história com Resident Evil 3: Nemesis

Eram outros tempos. 21 anos, se minhas contas estiverem corretas. As pessoas sérias estavam preocupadas com um desastre de proporções mundiais muito diferentes do atual: naquele momento, estavam todos alarmados com o tal bug do milênio. O dólar custava na faixa de R$ 1,55 (que saudade!), o euro estava entrando em vigor na Europa e Ronaldinho Gaúcho estreava pela seleção brasileira fazendo um belo gol contra a Venezuela. Fernanda Montenegro perderia o Oscar para Gwyneth Paltrow em uma das maiores injustiças do prêmio e todo mundo assistia Terra Nostra na TV e o primeiro Matrix nos cinemas. Era um tempo em que a internet era discada, e só valia a pena depois da meia-noite.

Tudo isso, porém, parecia um tanto quanto distante para mim (menos a parte do Ronaldinho, essa eu acompanhava de perto), já que minha realidade era bem mais… simples. Enquanto trabalhava de empacotador em um supermercado de vila, ganhava meu ostentoso salário mínimo de segunda a sábado para poder aproveitar o domingo no lugar onde encontraria a minha patota: a locadora de games do Marcão, lá na rua 5.

Memory Card: Minha história com Resident Evil 3: Nemesis
Imagem ilustrativa, disponível neste link

Aqui um parênteses para você, que é mais novo e não pegou esse tempo ou para você, que viveu os anos 1990 como eu, relembrar: como já relatado pelo nosso editor Rodrigo Psheidt em seu artigo sobre Final Fantasy VII para esta mesma coluna há alguns meses, em tempos onde a distribuição digital de games era uma realidade muito distante e os jogos oficiais malemá chegavam ao Brasil (e se chegavam, custavam os olhos da cara), era nas locadoras onde tínhamos acesso aos grandes lançamentos, fosse para comprar uma belíssima cópia para jogar em casa (se fosse prensada, era mais cara, mas bem melhor), fosse para alugar o jogo por um final de semana — ou ainda, pagar para jogar por hora em um dos consoles cuidadosamente organizados em espaços que definitivamente não eram próprios para aquilo. As locadoras eram o ponto de encontro da molecada do bairro.

Pois bem, na época eu tinha acabado de me livrar do meu Sega Saturn para ajudar a comprar meu primeiro PC — estava fazendo o pioneiro curso secundarista de Processamento de Dados e precisei investir em um “poderoso” Pentium 166 com Windows 95 para poder estudar Pascal no conforto do lar — e, por isso, não tinha muito interesse (ou razão) em levar jogos pra casa. Ao invés disso, reservava R$ 2 todo domingo para passar o pós-almoço desafiando o Julinho e o Mineiro no game de futebol mais realista de todos: Winning Eleven 3! Sim, a versão japonesa, claro, que era muito mais completa.

Memory Card: Minha história com Resident Evil 3: Nemesis

Mas teve um mês que foi diferente. Finalmente, estava pra chegar o esperadíssimo Resident Evil 3: Nemesis, continuação da franquia que eu tinha conhecido lá no Saturn com o primeiro RE — indicado por um colega como “um filme de terror controlável” –, e o segundo, que eu tinha conseguido zerar usando um save na casa do Thiago, aquele vizinho rico que todo mundo tem e que junta a galera da rua pra jogar na casa dele de vez em quando. RE3 era o game mais esperado por todo mundo que ficava folheando aquela Ação Games velha e esgarçada que tinha anunciado o jogo 2 meses antes (olha só como a gente ficava sabendo que um jogo novo ia sair antes da internet!), esperando chegar a sua vez na locadora. Esse seria o maior!

Cheguei na locadora ansioso. “Fala aê Marcão! Chegou?” perguntei para o digníssimo dono do estabelecimento antes mesmo de saber se ele estava bem e se tinha melhorado de uma gripe que tinha feito com que ele ficasse fechado nos dois dias anteriores. “Chegou nada… os caras nem passaram hoje” retrucou ele, já sabendo do que eu estava perguntando. Quem eram “os caras”? Até hoje não sei, mas acho que dificilmente eram representantes oficiais da Capcom. Talvez uns sacoleiros que iam buscar produtos no Paraguai

“Põe então duas horas do Uinelévi pra mim” pedi, um tanto quanto decepcionado com o atraso, mas sem imaginar perder a viagem e o dinheirinho da semana. “Quem sabe semana que vem…” pensei. Só que não tinha máquina livre. Tinha que esperar, mas aí encontrei a melhor surpresa daquele dia: a Ação Games do mês estava lá toda largada e, surpresa, ela trazia o detonado completo de RE3! Hora de estudar.

Memory Card: Minha história com Resident Evil 3: Nemesis
Capa da lendária Ação Games 145 de novembro de 1999 com o detonado de RE3: Nemesis

Sim, eu lia todo detonado nas revistas. Como eu disse, eram outros tempos. Eu não me importava com spoilers da história. Na verdade, eu nem as entendia direito a história enquanto jogava. Esforçava-me no inglês focado em entender o que precisava saber pra seguir em frente — achar uma senha nos documentos, saber onde usar um item, coisas assim. Só sabia mesmo do que o jogo falava depois, se alguma boa alma resolvesse escrever sobre na Super Game Power ou alguma outra publicação. Eu só queria abrir a próxima porta, descobrir o próximo puzzle, vencer o próximo chefe. Então estudei, tomando o cuidado para pular as fotos que mostravam a solução dos quebra-cabeças. Não poderia fazer isso comigo mesmo, não poderia roubar. Não nesse aspecto. Mas seria ótimo saber para onde ir e evitar ficar andando a esmo pelo cenário procurando o próximo passo. Afinal, cada hora de jogo me custaria suados R$ 1. Fazia diferença saber para onde ir.

Foram 20 minutos até a TV da próxima máquina desligar. Era a minha vez. Já tinha lido o detonado 2 vezes, mas só até mais ou menos a metade, até porque não era fácil lembrar de cada passo. Estava pronto, mas só para a semana seguinte, se “os caras” fizessem o trabalho deles em levar o jogo pro Marcão.

A primeira incursão

E, caro leitor, foi uma semana bastante longa. Ou teria sido, na verdade, porque eu trapaceei. Na quinta-feira mesmo eu dei uma passada lá na minha hora de almoço do trampo só pra descobrir se já tinha chegado. Nem precisei perguntar. “Chegou, Lemão” gritou lá do outro lado da rua o dono do nosso pequeno templo. Eu tinha uma hora e meia de almoço. Acredite: nunca comi tão rápido.

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Consegui chegar faltando pouco mais de uma hora pra voltar ao trabalho, mas ainda estava sem os R$ 2 da semana. “Joga aê… domingo você vai ter que voltar mesmo” disse Marcão. Pois é… minha primeira hora jogando Resident Evil 3: Nemesis foi minha primeira conta fiada, minha primeira dívida pessoal da vida. Colocamos o jogo, tela de abertura, cutscene clássica que mais era um trailer empolgante do que viria a seguir. Anunciamos, eu e o narrador oficial: “RESIDÂNT ÍVOU” (ele não disse “TRI” nem “NEMESIS” e nem “LAST SCAPE” como o jogo é conhecido no Japão. Mas eu disse. Com 16 anos, fiz a voz mais macabra do mundo… pelo menos na minha cabeça.

Começa a correria. Estava lá a Jill, a mesma pistola patética de todo começo de jogo, e um bando de zumbi pegando fogo. Economizar bala e sair correndo era a escolha mais madura a ser tomada, mas… eu já disse que tinha 16 anos na ápoca, certo? Maturidade, que piada… “tomem chumbo, otários”. Uma porta, ótimo, as balas acabaram e eu não tinha acabado nem com metade dos malditos. Corri, encontrei uma maluco dentro de um caminhão da Batavo, conversei um monte de coisa, não entendi quase nada, mas estava adorando. “Cara, isso está perfeito, são pessoas reais mesmo!”

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“Pessoas reais”

Passou a adrenalina… “tem uns escritos aqui de granada e pound e sei lá o que, mas nem deve ser importante. Pula, pula pula” e aí começa a exploração de verdade. Eu me lembrava do próximo passo: tem uma salinha em algum lugar com uma chave. Eu estava mandando muito bem até aqui, já dominava os comandos, já sabia abrir as portas, os controles eram basicamente os mesmos. No mundo real, um carinha aleatório que passava de bicicleta na rua e desceu pra dar uma olhada. Eu era o único que não estava jogando futebol naquela quinta-feira, hora de almoço. Acabou atraindo uma incrível plateia de 2 pessoas. Felizmente, eu estava mandando bem.

Certo, passei por alguns corredores, coletei algumas preciosas ervas, uns potinhos de pólvora que eu não sabia direito para que serviam, dois sustos ridículos e uma fuga sem pudores do monstrão na porta da delegacia — “ainda bem que me deixaram escolher“. Eu já estava começando a me sentir confiante para desvendar os segredos do jogo… aí pisca um aviso na tela “desligamento programado em 5 minutos”. Não era possível, eu tinha acabado de começar, não tinha nem esquentado! Mas o relógio de parede atrás da TV confirmava a realidade: minha horinha já estava acabando. E aí começava o maior desafio de todos até então: achar a máquina de escrever para salvar meu progresso antes do tempo acabar.

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“Marcão, empresta aquele memory card rapidão?”. Estava na gaveta, o cara era profissional. Cheguei na única máquina de escrever que eu lembrava ter visto, ufa, dois minutos de folga. Só não contava que não haveria mais espaço para salvar o meu jogo. Alguém tinha feito o favor de salvar Gran Turismo e ocupar 5 dos 8 slots. “Pode apagar esse daí” afirmou o dono da coisa. Não questionei. Apaguei e consegui salvar minha primeira jornada. Eu estava em êxtase. A televisão desligou.

No caminho de volta, uma dúvida me veio à mente: se eu fui autorizado a apagar o progresso de alguém, será que o mesmo poderia acontecer comigo? Alguém apagar meu suado progresso? “Não, o Marcão não faria isso comigo”, me consolei. Mas… ele fez isso com outra pessoa, ele deu o aval dele para eu apagar o progresso de algum jogador menos afortunado. Bem, seja o que tiver que ser. Já estava atrasado para o trabalho, não tinha o que fazer. Por mais que pareça um tanto ridículo hoje, isso era tudo o que importava para mim naquele momento. Escola, trabalho, isso tudo era rotina. Resident Evil 3 era o que fazia sentido. E descobrir como eliminar o tal de Nemesis era o que me definia.

Segundo round

Sexta, sábado e, enfim, domingo. Chegou o dia: até tomei banho depois do almoço. Fui à locadora duas ruas longe da minha casa como se estivesse indo a uma cerimônia de formatura. Duas horas devem ser o suficiente para avançar bastante, quem sabe chegar até a metade do jogo. Então mais uma semana e eu consigo zerar, dá uns 5 reais. Eu já disse que cada real contava naquela época? Cheguei, tinha fila. A revista com o detonado estava lá, já bem surrada. Dei uma conferida se estava indo bem. E até que estava… já tinha andado 5 quadrinhos da página. Era o dia de chegar a uma torre de relógio.

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Peguei o memory card 4 e espetei no console amarelado do canto enquanto o jogo iniciava. “Tomara que não tenham apagado”. Antes de eu perguntar, meu carma foi limpo pelo chefe do lugar “aquele Gran Turismo lá era meu, mas já tinha largado mão”. Certo, eu não estraguei a vida de ninguém. E meu save do RE3 estava lá, intacto. Hora de recomeçar a jornada. E tudo estava tão fresco na mente como se tivesse jogado minutos antes.

Descobri para que servia o pólvora, precisei misturar algumas vezes, fiz munição de pistola que mais tarde acabou sobrando, mas eu já estava dominando aquilo tudo. Minha plateia era maior naquele dia, a locadora estava lotada e acho que ninguém mais aguentava ver os outros jogando futebol. O Fabinho estava com a revista na mão e ficava gritando “que parte é essa daí?”. Eu não respondia, primeiro porque estava concentrado, segundo porque não saberia responder mesmo que me dedicasse a isso. E nem sinal do qualquer torre ou qualquer relógio…

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Tudo o que vinha a seguir era impressionante e fazia sentido. Inclusive procurar uma chave de boca pelo mundo destruído para conseguir apagar o fogo de uma passagem e conseguir seguir em frente. Aqueles becos eram assustadores e eu já tinha entendido: o Nemesis vai pular de algum lugar na minha frente quando eu menos esperar, então vou estar preparado o tempo todo. Nem precisou… bastou me enroscar em um canto desprevenido, com munição de shotgun faltando, para sair de lá me arrastando. Precisava de uma ervinha verde, pelo menos até chegar no baú e usar o spray. Mas a vida não era fácil. Nemesis surge na minha frente, dá aqueles 3 passos pesados na minha direção e um tapão na fuça. Vai lá, bonzão, carrega o jogo de novo.

Não sei se você consegue visualizar a dimensão do problema, caro leitor, mas quando você tem duas horinhas contadas para jogar, perder 20 minutos de progresso é de uma sensação de fracasso total. Imagine quando você tem 4 pessoas assistindo a você ser derrotado e só escuta aquele “nosss…” na nuca. Porque diferente do bom e velho fliperama de boteco, quando as pessoas estão te secando porque quanto mais rápido você perde, mais rápido chega a vez deles, aqui tanto faz se quem vem antes está ganhando ou perdendo, porque o tempo de espera é o mesmo. E se tem que esperar, eles torcem para ver o que vem adiante, não ver a mesma coisa de novo. Aqueles estranhos conhecidos estavam decepcionados, e a culpa era minha.

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Nada de desanimar: eu estava preparado para aquilo. Já tinha apanhado de zumbis mais ridículos no primeiro RE, já tinha sido devorado por simples cachorros no segundo. Perder para o chefão não era tão humilhante assim. E agora eu já sabia onde estavam as peças para apagar aquele beco, já sabia chegar lá. Espero que a tal torre esteja do outro lado. Peguei tudo, sem descanso, evitei a multidão, montei a torneira, apaguei o incêndio, estava com munição. Aprendi a esquivar finalmente, e vi o bicho cair de joelhos pela primeira vez. Eu era invencível… mas só pra garantir, melhor sair correndo e salvar o jogo de novo.

Bichos bizarros, gafanhotos gigantes, hordas eletrocutadas e explodidas com os providenciais barris vermelhos, ou ainda assadas com um tiro certeiro no encanamento em um corredor qualquer. Estava até sobrando munição. Eu era um gênio, eu tinha conquistado minha plateia novamente, eu estava andando pela cidade todo pimpão, até tirando sarro de zumbis que saíam de dentro dos carros de polícia. Já estava em uma garagem, não tinha nenhum grunhido macabro, tudo na boa.

De repente, bum, buraco no chão. Escolha na tela: sobe ou desce? Melhor subir! eu dominava o que estava lá em cima, mas o que fica dentro de um buraco no chão, quem sabe…

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Anda, encontra corredores, o Nemesis começa a aparecer com mais frequência, agora já sei o que fazer… corre, corre, corre, dá um pipoco, corre corre de novo. Esquiva só se der coragem; nem sempre dá. Mas tudo bem, saldo positivo, nenhuma morte desde aquele primeiro encontro. Tem uns soldados meio suspeitos, uns caras mortos, paciência. Vamos em frente. E aí aparece outro buraco, e desta vez não tinha escolha. Descubro que aqueles subterrâneos tinham um problema grave com vermes. Confesso… lá se foi quase toda a minha munição antes de descobrir que o esquema era achar como acionar as escadas. Deveria ter estudado melhor.

Ok, paciência. Sobe, chega até o trem, encontra os soldados mal encarados, vai e volta até fazer funcionar. Finalmente, estou chegando em algum lugar diferente. Nemesis não me deixava em paz e encheu as paciências até num vagão em movimento. Derrubei, mas não adiantou. E aí alguém se explode pra ajudar, o trem descarrila e… tá lá. Uma torre com um relógio. Missão cumprida. O que acontece depois eu nem tinha lido no detonado, nesse momento tudo o que eu tinha aprendido naquela revista parecia não ter feito muito sentido. Agora sou eu, por minha conta. Mas antes… espero que tenha uma máquina de escrever no saguão, senão tudo isso vai embora. Faltam 15 minutos para minhas duas horas acabarem e eu não podia pedir meia hora a mais, já tinha uma fila enorme. E sim, consegui salvar. Meu progresso estava garantido.

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A semana seguinte passou tão lenta quanto você pode imaginar. Até me vi furando a hora do almoço novamente, mas a bronca que tomara da minha mãe na primeira vez já tinha sido suficiente e eu estava em condicional. Melhor manter a paciência, degustar o que tinha feito, saborear a vitória parcial, e repassar todas as cenas que tinha vivido. Naquele momento, claro, não havia a internet abundante, não havia canais para repercutir o jogo, não havia lives. Se muito, conseguia baixar um wallpaper “enorme”, em 640×480, para decorar a área de trabalho do meu importante PC.

A terceira jornada

E finalmente chegou o domingo de novo. Cheguei na locadora, tinha fila de novo. Essa molecada almoçava cedo demais, pelo jeito. Esperei, mas desta vez não peguei a revista (já sem capa, coitada). Foi nesse momento que decidi não ver o que tinha adiante, talvez a primeira vez onde decidi, conscientemente, que não queria saber de spoilers de algo, décadas antes desse termo se tornar popular. Pelas minhas contas, já estava perto do final, então não se justificava a ansiedade. 40 minutos depois, estava eu totalmente acomodado em meu trono de plástico diante um telão de 20 polegadas. Estava chique, tinha até conseguido o disputado controle com vibra e botões analógicos. Save carregado, jogo iniciado. Hora de terminar o que tinha começado!

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Escadaria, móveis antigos, estátuas, portas para todos os lados, cães zumbis, uma biblioteca, um jardim macabro, aranhas gigantes… acho que já vi isso em algum lugar. E fui subindo, e até toquei uma música bonita em um dos puzzles mais marcantes do jogo. Pelo jeito, já estava conseguindo dar conta. Claro que um certo monstro insistente tinha que voltar a aparecer, mas nada que um belo choque não resolva. Agora, tenho mais algum tempo antes dele voltar novamente… mas não. Parece que ele não quer descansar como antes. Consegui me livrar do cara.

Meu público voltava a aumentar, eu sentia. Claro, fingia que não estava nem aí, mas no final, estava me exibindo. Isso era ótimo quando acabava com alguns zumbis, menos bom quando empacava em um puzzle com relógios e pedras, mas, na minha cabeça, eu estava fazendo história. Estava indo bem. Engrenagem no lugar, jogo salvo para garantir, e vamos em frente. O relógio está funcionando, tudo está perfeito. O que será que vem pela frente? Já se passou quase uma hora e meia, coisas boas estão vindo.

Saí da torre, começa a cutscene. Finalmente, o resgate chegou. Câmera lenta no melhor estilo cinematográfico, sorriso. Finalmente, acabou, era hora de voltar para casa, provavelmente explodir tudo com uma bomba na cabeça do Nemesis. Uma cena de 15 segundos que, bem, se vocês conhecem a história de Resident Evil 3, já sabem como vai acabar.

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A coisa desanda, boss fight, 20 minutos no relógio. E tome tentáculo na fuça antes de qualquer reação. A sorte, naquele momento, foi a de que achando que estava no final do jogo, abandonei a pistola no baú antes de salvar e levei tudo o que tinha acumulado. Sim, estou falando do lança-granada com todas as experimentações feitas. Foi dos combates mais rápidos do jogo. Olhando em retrospectiva, era meio óbvio que o jogo não tinha acabado. Havia um monte de pontas soltas, coisas para usar, e tudo mais. Mas aquela cena brega realmente nos dá uma sensação de que tudo estava bem. E no final, era só o gancho para aí sim desencadear o último terço da jornada.

Veneno, resgate, Jill na capela e um novo protagonista para controlar. Mas minha preocupação maior era outra: cadê o ponto de save? Sim, o tempo tinha se esgotado, e 5 horas não foram suficientes. Vai ficar para outro dia. E ficou. Tinha mais um encontro marcado para a semana seguinte. “Zerou Lemão?” perguntou Marcão com um certo sarcasmo, já sabendo da resposta. “Quase” disse ao entregar o pagamento e o memory card nas mãos dele, como se entregasse a aventura de toda uma vida a um guardião sagrado.

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Outra semana lenta e lá se ia um mês de lançamento do jogo. Se nesse tempo, hoje, facilmente damos conta de um RPG épico e de centenas de horas em uma campanha densa, naquele momento minha jogatina de 5 horas parecia uma eternidade. A sensação de dever cumprido da semana anterior dava lugar a um misto entre frustração por não ter conseguido manter a meta e uma certa satisfação em saber que ainda tinha mais.

Mais um domingo

Um novo domingo, uma nova jornada. Desta vez, eu teria que terminar. E Carlos ter uma metralhadora logo de cara pareceu-me um prato cheio. Sem miséria, sem misericórdia, os desmortos foram caindo como moscas. Não tenho mais tempo a perder. Tinha um sino em algum lugar, achei. E do outro lado, tinha voltado à cidade, mais especificamente algum tipo de hospital. Mas tinha algo diferente. E era muito mais poderoso do que estava lá antes.

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Não importa. Já tinha entendido que a missão era achar uma cura pra Jill. Um hospital parecer o lugar certo pra isso. Cartão pra lá, corpos pra cá, Hunters saindo de tudo quanto era lado, uma treta com o cara do cabelo branco, um monte de zumbis e de caixas para empurrar e tá lá, uma ampola de alguma coisa, devia ser o que eu precisava. Mistura uns negócios em uma sala bizarra com uns sapões dentro de cápsulas (alguma dúvida de que eles vão quebrar tudo e sair dali?) e hora de voltar. Claro, não antes de explodir a coisa toda, porque sim. E se o caminho estava difícil pra voltar, que tal encontrar o Nemesis, agora ainda mais nojento e cheio de tentáculos?

Juro, nesse momento, ouvi a molecada que assistia a coisa toda atrás de mim mastigando um salgadinho barato e acompanhando como se estivesse no cinema. Os sustos deram lugar a um quebra pau de ação bastante intenso, e o maior medo era o de morrer e perder o progresso. Talvez a jornada toda tenha sido assim, mas foi naquele instante, em que as bolinhas de queijo craquelavam na boca de alguém, que me vi jogando uma aventura de ação no melhor estilo da Tela Quente, algo que destoava da solidão e do terror mais puro dos RE anteriores. E, bem, também percebi que estava curtindo demais!

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Antídoto aplicado, Jill salva! Ah, se as coisas fossem tão simples assim no mundo real, não é mesmo? Dois passos com a verdadeira protagonista e tome Nemesis de novo. Morre logo, diabo! Hora de acessar uma área que eu nem imaginava que apareceria a essa altura, o parque da cidade (com direito a um bando de sapos gigantes enchendo o saco). Esgoto, cemitério, uma cabana podre (o pacote tradicional, claro) e mais um encontro com o cara do cabelo branco. Mas algo estava estranho… tinha muita munição e muita pólvora. Minha primeira hora tinha ido embora e talvez estava na hora de terminar as coisas de uma vez por todas. Só que não.

Saindo da cabana, o tal verme gigante (com uma aparência fálica que jamais passaria despercebida por adolescentes) do qual eu tinha fugido antes, voltara. Talvez o maior de todos os inimigos da franquia até então, o bicho era encardido demais. Pois é… morri. Sorte que a cabana estratégica e o save preocupado estavam lá, para garantir que eu pudesse retomar a jogatina sem prejuízo em termos de progresso — e principalmente de tempo. “De hoje, não pode passar” martelava eu em minha mente.

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Enfim, vitória na segunda tentativa — decorar padrões é o mínimo que se deve fazer quando se é derrotado — e hora de abrir um portão com um cadeado enferrujado. Pois é, eu tinha uma metralhadora e um lança granadas em mãos, mas foi necessário matar um verme gigante para abrir esse portão estragado. Lógica que só os games podem nos ensinar. Quando Nemesis aparece de novo, só empurrar já é um alívio. E entrar em uma estação científica e tecnológica me parece um bom presságio de que finalmente as coisas estavam caminhando para o fim. Eu ainda tinha 45 minutos. “De hoje não passa!”.

Puzzles, água no joelho, Carlos aparecendo sabe-se lá de onde, dispositivos, gafanhotos gigantes… A coisa está caminhando bem. A essa altura, no mundo real, já estava chovendo lá fora, e a molecada estava ainda mais aglomerada dentro da locadora (saudade de uma aglomeração, né, minha filha?). O barulho até estava alto, mas eu estava focado na minha meta e vivendo aquela experiência como se não houvesse amanhã. Na verdade, não havia nem meia hora a mais. E aquele quebra-cabeça desgraçado tinha dado mais trabalho do que eu gostaria de admitir. E finalmente eu consegui sair daquele prédio. Quando salvei, meu tempo estava se esgotando. Eu nem sabia o que faltava, mas certamente não caberia em 10 minutinhos.

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Nesse exato momento, só vejo um braço com o controle da TV do meu lado. No cantinho da tela, aqueles 10 minutos subiram para 40. “Mais meia horinha pra você aí, Lemão” disse Marcão. Ninguém reclamou (provavelmente porque tinha máquina livre… estava chovendo e não estava mais lotado, e havia uma galera que só estava mesmo assistindo). Talvez nesse instante tenha subido a trilha sonora de ação, ou isso era só na minha imaginação, mas eu estava pronto pra terminar a coisa toda.

Pega documento, arruma munição, acaba com uns zumbis perdidos que tinham ficado para trás. Duas portas adiante e um contador de 5 minutos pipoca na tela, com aquela voz de computador (nos anos 1990, todos os computadores nos filmes e nos videogames tinha uma voz feminina gentil e ameaçadora ao mesmo tempo) dizendo “Warning”. Eu entendia pouco de inglês na época — ainda menos do que hoje — mas já dava pra sacar que a coisa estava pra piorar: contagens regressivas nunca são um bom sinal. Aparece Nemesis de novo pra atrapalhar ainda mais. Ele caiu. Eu só não sabia que era a última vez antes da aparição final.

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Cartão pra cá, mais bichos estranhos pra lá, resolve umas últimas coisas acolá, tem uns zumbis pelados ainda para atrapalhar, aparece a bazuca e a treta com o Nicolai — finalmente tinha prestado atenção no soldado do cabelo branco — acaba mal pra ele. Salva mais uma vez, a meia hora se torna 20 minutos e nada de terminar. Aí descubro uma arma gigantesca, e claro, precisa encaixar umas baterias para fazer funcionar. Mas antes, meu adversário brota de novo de lugar nenhum, só que desta vez ele estava realmente hediondo: devorou um cadáver de Tyrant que estava jogado ali no canto e se tornou um “carrapatão” pernudo bizarro de verdade. Ok, entendi, era o chefe final da coisa toda.

Corre, atira, explode, gasta o que tem de munição, toma ácido na cara, usa o que sobrou de ervas de cura, encaixa as benditas baterias. Era só fazer a criatura entrar na linha de frente da bagaça e BOOOM. Fim. Ele ainda se mexe. O game ainda tem a pachorra de perguntar se quero exterminar o dito cujo ou se quero ignorar e sair dali. Provavelmente, eu seria arremessado na calçada se fizesse a escolha errada naquele momento. Não fiz. Helicóptero chega, Raccoon City explode, fim de história.

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O Fim

Finalmente, eu era o herói. Zerei o jogo, passei por tudo, morri menos do que achava, levei mais tempo do que esperava. A expectativa tinha valido a pena, Jill era realmente a melhor protagonista da história e Nemesis o vilão mais marcante. E eu só tinha zerado o jogo fazia 10 segundos quando conclui tudo isso. Com a cidade destruída, a trama tinha terminado de vez e eu tinha acabado de testemunhar a história acontecendo. Na verdade, eu era o centro disso tudo. Todo mundo viu, e certamente estavam todos orgulhosos de mim.

Quando finalmente olho pra trás, a platéia já havia dispersado: uns assistindo alguém jogando Winning Eleven 3 enquanto o dono da locadora estava enxugando a água da chuva que tinha entrado. Só aí ele percebeu que eu tinha terminado o jogo. “Foi?” ele perguntou, pouco interessado. “Já era”, respondi todo arrogante. “É isso aí”. disse ele ao retornar ao trabalho. Ainda tinha 5 minutos, dei uma olhada no que tinha aberto no menu, me levantei, sai andando na chuva e fui pra casa. Talvez todos eles nem estivessem torcendo para mim de verdade, só na minha cabeça. Mas essa é a magia da nostalgia: as coisas geralmente parecem mais legais na nossa cabeça do que realmente foram.

Essa obviamente não foi a única vez que terminei o jogo. Na verdade, depois de alguns anos, finalmente comprei um PSOne (quando o PS2 já era velho) e obviamente tinha minhas cópias — prensadas, claro — da trilogia Resident Evil. Devo ter zerado todos umas, sei lá, 7 ou 8 vezes cada, em uma época onde sobrava tempo e faltava opção por conta de dinheiro. Mas esta foi a única vez que me arrisquei a zerar um game de ação na locadora: antes ou depois disso, só jogava jogos de luta ou esporte, que eram curtinhos e aceitavam 2 players.

Memory Card: Minha história com Resident Evil 3: Nemesis

Talvez Resident Evil 3: Nemesis nem seja um esplendor enquanto jogo. Pra grande maioria, nem é o melhor da trilogia original. Mas confesso, ainda é o meu jogo favorito da vida, e não sei explicar exatamente o porquê disso. Mas certamente essa experiência que relatei aqui — que duvido muito que represente a realidade para todas as demais pessoas que citei, já que certamente para todas elas isso não deve ter tido qualquer importância — é aquilo que me fez ser a pessoa apaixonada por games que sou hoje, já perto dos meus 40 anos de idade.

Ah, e finalmente comprei o remake de Resident Evil 3 essa semana… para seguir a tradição, estou esperando o domingo pra começar a jogar. 🙂

Continue?

Acha que este é o fim? Não necessariamente: outros membros da equipe já compartilharam histórias de jogos que marcaram suas vidas: o Rodrigo falou de Final Fantasy VII aqui (e aqui), e o Renan explicou de onde veio todo seu amor por Metal Gear Solid aqui (e aqui também).

Somos apaixonados por videogames, e nossa vida foi marcada de muitas maneiras por alguns deles! A Memory Card é uma coluna que está aí pra isso: nos permitir viajar no tempo, para revisitarmos épocas e games marcantes em textos diferentes, pessoais e nostálgicos!

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Paulo Roberto Montanaro

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