O programa de e-Residency da Estônia mostra como o país mais digital do mundo enxerga a tecnologia
Desde a sua independência, em 1991, a Estônia transformou a sua república, obtendo um impressionante crescimento econômico nos anos 90 e 2000, culminando com sua entrada na União Europeia, em 2004. Hoje, conhecida como “o país mais digital do mundo”, os estonianos colhem os frutos do que foi plantado nas últimas décadas.
Entre os avanços, o grande destaque do governo estoniano é o e-Residency. O programa promove identidade digital para que todos possam aproveitar o ambiente de negócios no país, usando do trabalho remoto, que cresceu mais do que o esperado após a pandemia de covid-19, que é um meio de trabalho que, de acordo com especialistas, se tornou em um caminho sem volta.
O e-Residency, além da identidade digital e possibilidade de trabalho remoto, também permite abertura de empresas com base na União Europeia, uma vez que a Estônia faz parte do bloco. Não é preciso, inclusive, estar fisicamente no país, já que o negócio pode ser gerenciado 100% de forma online.
O Brasil, inclusive, está entre os 30 países que contam com mais aplicações para o programa. São Paulo conta com um ponto de retirada do cartão ID de e-Resident, sendo o único da América do Sul, e um dos 52 disponibilizados pelo Governo da Estônia.
O programa é um dos que abraçam de vez a revolução digital, e que oferece a pessoas de diversos países a possibilidade de se desenvolver profissionalmente em vários campos, incluindo os dos games. A Estônia possui uma história interessante nos games, e tem seus sucessos, como Mushroom Wars e o premiado Disco Elysium. O game, que foi o que recebeu mais prêmios na TGA 2019, embora tenha sido publicada pela britânica ZA/UM, tem como nome principal um estoniano: Robert Kurvitz.
No mundo da tecnologia, o país também tem muito a oferecer, sendo um celeiro de unicórnios. Três exemplos famosos de cases estonianos envolvem Bolt, Skype e Wise. Ou seja: o país mais digital do mundo busca mentes e talentos digitais, para os mais diversos campos da tecnologia, que abrange da comunicação até os videogames.
Para entender mais sobre o programa, a Estônia e sua história recente, além de saber um pouco mais de como empreendedores de todo o mundo — incluindo os brasileiros — podem contar com boas oportunidades de negócios. Especialmente quando falamos do mundo dos videogames, cujo mercado nacional conta com diversos talentos, mundialmente reconhecidos, uma forte rede educacional, mas que sofre com vários problemas, entre eles a grande burocracia.
Falamos com Lauri Haav, CEO do e-Residency para a Estônia. Onde, na conversa, nos foi apresentado mais sobre o programa, além de entendermos mais sobre o contexto estoniano e a visão do país em relação a negócios e tecnologia.
Arkade – A Estônia é conhecida por contar com o governo mais digital do mundo. O que isso significou para o país, em meio a um mundo que já passava por transformações digitais antes da pandemia, mas que depois viu um mundo que acelerou mais seus programas digitais para atender uma demanda cada vez mais global de empreendedorismo?
Lauri Haav – Após a restauração da independência em 1991, a Estônia decidiu reconstruir o Estado de uma forma mais sustentável e eficiente. Junto com a transformação digital, a Estônia também garantiu que os serviços e a infraestrutura fossem seguros, transparentes e resilientes em crises como a atual pandemia global.
Temos experiência na construção da sociedade digital nos últimos 25 anos e, embora tenhamos tido sucesso, também houve muitas lições e desafios ao longo do caminho. Entretanto, a estreita colaboração entre os tomadores de decisões políticas e os pioneiros visionários das TIC posiciona hoje a Estônia como um dos especialistas em liderança digital mais proeminentes.
A crise global de saúde da COVID-19 resultou em restrições que atingiram em todo o mundo empresas e freelancers de forma inesperada e dramática. A fim de lidar com esta nova realidade, a adaptabilidade e as soluções inovadoras se tornaram uma necessidade inescapável para todos.
Como 99% dos serviços governamentais da Estônia já estavam acessíveis on-line antes da crise de saúde global, o país estava melhor preparado para as transições sociais durante a pandemia da COVID-19. Com base em nossa experiência, a transformação digital de mais países em termos de serviços públicos é a chave para uma maior resiliência à crise no futuro.
Com suas plataformas digitais, a Estônia também tem ajudado empreendedores em todo o mundo, mesmo antes do impacto da COVID-19. Com o programa estoniano de e-Residency, a Estônia se estabeleceu como pioneira no fortalecimento do empreendedorismo remoto sem fronteiras, que permite a todos continuar sua gestão de negócios e transações durante o lockdown global de forma acessível e sem burocracia excessiva.
A e-Residency é a primeira startup governamental do mundo estabelecida em 2014 que proporciona uma identidade e status digitais fornecidos pelo governo na forma de cartão de identificação digital. Isto, por sua vez, proporciona aos não-residentes acesso digital aos serviços comerciais digitais confiáveis e transparentes do país e, portanto, um acesso ao mercado da União Europeia também.
Com um cartão de identidade digital para residentes eletrônicos é possível estabelecer e administrar uma empresa na Estônia 100% online, assinar digitalmente documentos legais, tramitar impostos eletrônicos e fazer transações bancárias online – tudo o que é necessário para administrar um negócio completamente independente da localização. No momento, pessoas de mais de 170 países já solicitaram a e-Residência e a Estônia tem quase 90 000 e-residentes.
Até o momento, os residentes eletrônicos criaram aproximadamente 20.000 empresas estonianas (e da UE) na Estônia. O número de empresas estabelecidas através da e-Residency aumentou durante a pandemia, refletindo a mentalidade empreendedora que abraça soluções inovadoras e busca novas oportunidades para implementar ideias, mesmo em tempos de dificuldades externas.
Em 2021, o Brasil teve o maior número de candidatos à e-Residência na América do Sul e este ano o Brasil mostrou o maior crescimento em solicitações de e-Residência (com um impressionante +85% em comparação com o ano anterior).
Através da disponibilização da e-Residency ao maior número possível de pessoas, a Estônia espera servir de exemplo para fornecer aos empreendedores um kit de ferramentas digitais abrangente para combater a crise econômica pós-pandêmica e as restrições de viagem.
Arkade – A Estônia também é conhecida por ser um “celeiro de unicórnios”. O que o país tem feito para manter esse status, e como os estonianos enxergam a sua colaboração com todo o mundo em meio as medidas de digitalização que o país tem tomado?
Lauri Haav – Pequena, mas poderosa é uma frase usada para descrever tanto a Estônia quanto numerosas startups de impacto global cujas raízes estão neste país – Skype, Wise, Playtech e ID.me para citar algumas.
Recentemente, a Estônia classificou em sexto lugar entre os ecossistemas de startups emergentes do mundo no Global Startup Ecosystem Report 2021, a pesquisa sobre startups mais abrangente e amplamente lida do mundo. O relatório, que engloba 275 ecossistemas de startups de todo o mundo, destacou o alcance como a característica mais forte do mercado estoniano.
Toda vez que a maioria das empresas estabelecidas por residentes eletrônicos se foca no desenvolvimento de software comercial e soluções FinTech, a e-Residency também desempenhou um papel na construção de uma forte rede de mentes inovadoras e de uma comunidade global de empreendedores.
Os residentes eletrônicos estão entre os fundadores de quase um terço das startups da Estônia – isto demonstra que as pessoas de todo o mundo consideram a Estônia como um próspero centro de inovação para o lançamento de novos empreendimentos comerciais.Em 2017, a Estônia também lançou seu programa de vistos para startups, permitindo que cidadãos de fora da UE não apenas sejam empregados por startups locais, mas também se mudem ou criem seus próprios negócios na Estônia.
Hoje, uma em cada cinco startups estonianas é criada como resultado deste programa de vistos, e uma em cada dez empresas o utilizam para atrair talentos internacionais.
Arkade – A revolução digital acontece em meio a um país que consegue ser extremamente digital e prático em suas questões envolvendo negócios, mas que mantém suas raízes históricas intactas. O futuro aprendendo com o passado é a lição estoniana para esta evolução acontecer da melhor maneira possível?
Lauri Haav – A história da e-Estônia ilustra o processo de construção da confiança entre um governo e seus cidadãos. Para a comunidade local de TIC, as conquistas digitais da Estônia são uma questão de grande orgulho nacional, enquanto continuam os esforços para levar esta história de sucesso ainda mais longe.
O reconhecimento global da Estônia, por outro lado, ajuda a dar uma voz mais ouvida a um pequeno país entre os gigantes. A fim de evoluir, os empreendedores e as empresas iniciantes da Estônia fixam suas metas ambiciosas e pensam globalmente desde o início.
De certa forma, as raízes da expertise digital da Estônia estão no início dos anos 60, quando o núcleo intelectual de toda a pesquisa cibernética da União Soviética estava baseado em Tallinn, a capital da Estônia. Portanto, podemos dizer que utilizamos a pesquisa e os conhecimentos das gerações anteriores para criar a realidade da sociedade digital como a experimentamos hoje.
Além disso, tendo um país muito pouco povoado, os estónios estão muito felizes por passar muito tempo na natureza, e a maioria da população tem uma casa de campo ou cabana em áreas remotas ou na floresta. Graças aos serviços digitais, podemos votar, estabelecer nossas empresas, fazer nossos impostos ou se comunicar com nosso governo de qualquer outra forma completamente remota, sem perder tempo com burocracia e papelada. Isto possibilita um estilo de vida bem equilibrado.
Para acelerar a digitalização no mundo todo, a e-Residency ajuda a conectar e capacitar os empreendedores globalmente, enquanto a e-Estônia continua a compartilhar as lições aprendidas com outros países que estão passando por transformações digitais.
Arkade – O brasileiro sempre foi reconhecido como muito criativo no que diz respeito a empreendedorismo e o mundo digital, mas sabe-se das muitas dificuldades que o brasileiro conta para empreender. O que as pessoas do Brasil sentirão de diferente, ao levar suas ideias com o e-Residency?
Lauri Haav – A E-Residency da Estônia fornece aos candidatos uma identificação do governo digital e segura, que permite aos residentes eletrônicos acessar todos os serviços governamentais digitais da Estônia. Cada e-resident da Estônia recebe uma carteira de identidade digital que fornece acesso aos mesmos serviços empresariais que são acessíveis aos estonianos através de uma carteira de identidade nacional – eles são capazes de abrir e gerenciar uma empresa on-line, assinar documentos legais, pagar impostos e fazer procedimentos bancários. A única diferença é que os residentes eletrônicos não podem usar seu cartão de identidade digital como um documento de viagem, e também não representa uma autorização para viver ou um visto.
Ao estabelecer uma empresa na Estônia, os brasileiros podem aumentar sua base de clientes internacionais sem se deslocarem. Eles terão uma entidade empresarial no Espaço Econômico Europeu (EEE), o que significa livre circulação de mercadorias, funcionários e serviços dentro da União Europeia. Além disso, o Brasil é uma economia muito atraente e vibrante com um espírito empreendedor muito forte, e a e-Residência permite aos empreendedores brasileiros estabelecerem iniciativas de negócios em parceria com sócios fundadores.
Por exemplo: A empresa de consultoria de marketing digital transfronteiriça MansionTech OÜ, fundada por Ian Ayan, com sede no Brasil, e Georg Klausner, com sede na Áustria através da e-Residency, é um exemplo de como tais negócios podem ser administrados globalmente em diferentes mercados e permanecem resilientes através das restrições de viagem relacionadas à COVID.
Considerando que a digitalização extensiva está ocorrendo no Brasil com novas soluções sendo desenvolvidas constantemente, a e-Residency pode acrescentar uma dimensão internacional aos empresários brasileiros sem que eles tenham que sair de seu país. Com um processo fácil de solicitação e implementação, a e-Residency oferece uma alternativa simples aos altos níveis de burocracia. Todos os documentos necessários para se tornar um residente eletrônico e estabelecer uma empresa baseada na UE são apresentados on-line e depois analisados pela
Polícia Estoniana e pelo Conselho da Guarda Fronteiriça, sem que os candidatos tenham que tomar nenhuma ação adicional. Após receberem o status de residente eletrônico pelo Governo da Estônia, eles podem pegar seu cartão de identidade digital (ID) em São Paulo ou escolher outro local de coleta no mundo mais próximo a eles. O cartão de identidade apresenta os mais altos níveis de segurança cibernética dentro da UE e lhes permite estabelecer uma empresa na Estônia em menos de uma hora.
Arkade – Gostaria de saber um pouco mais sobre o mundo dos videogames. O que um desenvolvedor brasileiro ganharia, de forma prática, ao levar seu talento e sua ideia para ser aplicada dentro do e-Residency?
Lauri Haav – A E-Residency abre as portas de um mercado global com mais possibilidades de colaboração e desenvolvimento de idéias, em conjunto com parceiros internacionais.
O estabelecimento remoto de uma empresa na Estônia possibilita aos desenvolvedores brasileiros contratar trabalhadores qualificados e talentos do exterior sem burocracia e complicada papelada.O programa também oferece acesso a investidores e oportunidades para a captação de recursos no mercado da UE.
Com um alcance global, abre uma nova base de clientes, enquanto acrescenta mais estabilidade, uma vez que todas as principais transações comerciais são feitas em euros.
Principalmente, o programa dá flexibilidade – todo o trabalho para tornar suas idéias uma realidade é realizado on-line. Crescendo junto com as tendências globais em termos de trabalho remoto, a e-Residency está trabalhando para encontrar as melhores soluções para desenvolver produtos e fazer negócios on-line em alinhamento com as necessidades dos empreendedores de hoje.
Arkade – Os videogames já contam com números relevantes em projetos, ideias e profissionais dentro do e-Residency?
Lauri Haav – Mais de 60% das empresas criadas por residentes eletrônicos operam na área de TI ou soluções digitais. Não sabemos o número exato de profissionais que trabalham na indústria de videogames através de e-Residency, mas com alguns exemplos – como Nerds Monkeys em Portugal e histórias compartilhadas por residentes eletrônicos que prestam serviços independentes de localização-, vemos que o programa é utilizado para implementar projetos de inovação e criatividade digital em todos os campos de negócios, incluindo a indústria de videogames.
Arkade – A Estônia já possui uma indústria de games interessante, com Disco Elysium fazendo muito sucesso, através de Robert Kurvitz. Como a Estônia tem visto o mundo dos games na Europa e no mundo? E como a indústria dos videogames pode usufruir positivamente do sistema estoniano de gestão digital?
Lauri Haav – Através da e-Residency, o sistema de gestão digital estoniano é acessível aos criadores do mundo inteiro, eliminando fronteiras e burocracia no desenvolvimento de projetos em escala internacional e com alcance global. O fato de as pessoas poderem operar independentemente da localização tornou-se mais proeminente não apenas no campo de TI e inovação digital, mas também uma necessidade para muitos outros campos no mercado de trabalho. A criação de empresas através de um programa que tem ferramentas seguras e completamente testadas para trabalho e empreendedorismo remotos é um aspecto vital na realidade atual.
Por exemplo, é possível morar no Brasil, montar uma empresa na Estônia, contratar um arquiteto de software da Hungria e um chefe criativo de Portugal. Reunir estes diferentes tipos de habilidades, portfólios e capital social ajuda a projetar idéias com um usuário final global em mente, independentemente de sua região ou pertença cultural. Dessa forma, a indústria de videogames é o campo perfeito para melhor utilizar as oportunidades que uma sociedade verdadeiramente digital tem através da e-Residency.
Arkade – É interessante, também, ao falarmos de programas como este, sobre o intercâmbio de ideias, entre estonianos e cidadãos dos mais diversos locais do mundo. Como a Estônia vê esta mistura de ideias entre pessoas de tão diferentes culturas?
Lauri Haav – A e-Residency permite que empreendedores e freelancers façam parte de uma rede global de empreendedores e prestadores de serviços digitais. Isto dá às empresas a oportunidade de colaborar com um espectro muito mais amplo de parceiros internacionais e fornecer seus bens e serviços a uma gama muito mais ampla de clientes potenciais. Isso possibilita que as habilidades e conhecimentos viagem muito além de sua localização física e fronteiras.
Ao construir sobre os pontos fortes de cada um, a e-Residency facilita a comunidade de empreendedores globais com diversas perspectivas para compartilhar suas experiências e know-how. Para um país com uma população pequena, a diversidade através de um espaço virtual é necessária para aprender com o outro e intensificar a colaboração.
Ela proporciona um melhor entendimento recíproco e ajuda a engajar diferentes atores na solução de algumas das maiores questões que as pessoas estão enfrentando globalmente. Todos têm sua visão e experiência que podem ajudar a construir um futuro melhor quando trabalham juntos.